Crónica

Francisco Mouta Rúbio

Cidade velha, ano novo e tudo igual

2 de Janeiro, 2023

Tinta por uma linha.

A décima terceira crónica de Francisco Mouta Rúbio, acompanhada pela ilustração do artista dualgo.

1. Lisboa, 1 de janeiro de 2062. Bons tempos os idos em que se dizia catástrofe e a cidade amparada neste oceano, mergulhada no próprio Tejo, navegando navios por Algés. Lembram-se dessa fronteira, onde os mortos não contavam como lisboetas? O túnel da João XXI como piscina municipal permanente, Alcântara um porto para pequenas embarcações, desistimos dos carros quando as garagens se alagaram. Habituávamo-nos a ser água. Por agora o dia de chuva define o feriado nacional. Assim sabemos quando a cidade se escreve por linhas de água. Esse dia, em que chove, chove perdidamente, e a cidade, siamesa do Tejo, se transforma rio, recordamos o que resta ao planeta. O tempo que nos resta, já em 1980 nos avisavam. Eram só balelas vindas do Norte. Mais um ano passou e o fósforo a crepitar pela dura realidade: um dia chove, o resto do ano seca. Flamejam ondas de calor pelo passeios nocturnos de verão e o ecrã a indiciar os 38 graus à solta pelas onze horas da noite. Poucas vezes volto à nossa antiga cidade. Lisboa, meu berço. Inabitável. Sobrinha de quem outrora foi. Seca, sequíssima. Sem pinga de ficção científica (nem as Crónicas Marcianas poderiam adivinhar este estado), a antiga capital vulcanizou-se, vítima do progresso.

2. Último dia do ano, Rosa sente que o país perdeu a cinzentude. Lisboa sabe, como ela, que a vida sorri sempre como desejamos. Sonhamos, planeamos e puff! concretiza-se logo. A cidade, nessa esperança de final de ano, atafulhou-se de doidos clandestinos, turistas desenfreados e esqueceu a organização. A mulher morena compra cigarros e ignora a tosse do dia seguinte. Caminha livre, mini-saia, mini na mão inspira o cheiro a festas-de-artifício que invadem as vilas da cidade. Desde as janelas de Alfama ribombam sorrisos, piropos, bitaites. Ouvem-se tilintares de copos, gargalhadas de vidro. Desfraldam-se bandeiras, gracejos picantes pela Graça. Os painéis de azulejo reflectem a sombra grave dos fogos coloridos. Entre desconhecidos há abraços na colina da Penha de França. A rapariga, tornada mulher noites lisboetas adentro, desce pelo Rato em puta descontração, vento a descobrir os vazios entre os fios de cabelo. A despoetização em curso pela urbe (no parlamento, nos noticiários, nos gabinetes, nos tribunais) faz uma pausa e deslinda o insólito. Sob este precipício ela encontra-se perante a euforia colectiva. Esquece a timidez lisboeta, escondida no passado triste e descalço dos bairros construídos a chapa e tijolo, outrora quintas e hortas, e beija na boca o primeiro homem que prende o seu vestido no Princípe Real. Francês, o homem e o beijo. Perde a vergonha do lucro resultante do turismo oportuno pelo seu corpo e embebeda-se nas notas de euro, ienes e rublos ao enrolar-se ao ritmo das doze badaladas. É a isto que sabe um final?, pergunta-se depois das tontas luzes vermelhas, do vestido rasgado junto às coxas e do sabor a malte destilando na sua língua. No fim, em casa sozinha, liga o aparelho que nos amedronta. Acende o último cigarro e apercebe-se do verso à solta pelos telejornais noticiosos. Sorri perante o anuário absurdo, antevendo outro final:

  • Vaca à solta pela segunda circular
  • Presidente da Câmara falha tentativa de iluminar a árvore de natal
  • Idosa morre afogada numa cave, depois de salvar o marido
  • Outra senhora morre do coração (morrer do coração deve ser doloroso, mas é bonito. Fica poético. A morte, tal como a chuva, a dor, as catástrofes, são uma constante da vida, mas continuemos a desviar o olhar. É a vida)
  • Homem encontra nove milhões de poemas escondidos e é preso
  • 14 toneladas de pêra encontradas no Rio Tejo
  • Desmantelada sociedade marginal que ocupava os prédios devolutos na Baixa
  • Pelas vielas nocturnas da Madragoa…

3. Há época mais paradoxal que o Natal?, ainda pensas. Combates o materialismo com donativos e inquietudes sobre os pobres e depois, apoiado no teu subsídio (és o chamado sortudo), compras roupas vegan, livros do género foi-o-consumismo-que-matou-o-ocidente, bebidas 100% naturais nas Amoreiras (vês o deputado de extrema-direita, é ódio à primeira vista). Acho uma graça, ouves dalgum lado. Cumpres o esperado e caminhas pendurado em sacos de compras. Sabes de tudo mas insistes em não ter coragem. Lembras-te que és adulto e deves pagar as contas. (Contribui!) Esperas sentado que algo mais aconteça. Não encontras um canto para cumprir os desejos vagos de chorar baixinho, como o poeta. É Natal? Para além dos euros transformados em produtos transformados em atenção à família, lembras-te do invísivel. Na tua família o amor sempre foi feito de regras invisíveis. Silêncios embrulhados em elogios proibidos ou gargalhadas, esconderijos para as agruras. O sorriso postiço da tua avó, o bacalhau demasiado salgado da tia, a carne que arriscaste cozinhar um ano, os saltos altos da tua mãe sedimentados no chão de mármore a gritar pelo teu nome. Depois, foi-se a avó, o primo, a prima, foste tu. Desvaneceu-se a palavra Natal. No centro comercial, pedes um empurrão com os olhos em forma de observação para que tudo mude. Ninguém, todos de olhos enfiados nos ecrãs. Estás no templo da desatenção. Nada muda, isso já tu percebeste. Nesta caverna, alguns nem podem olhar para os ecrãs, à espera no bolso (lá estás tu). Acho uma graça, repete a empregada da loja. Com pestanas tipo telheiros para abrigar olhos atormentados pelas funções que serão substituídas por máquinas dentro de momentos e unhas estilo pranchas de longboard, aproxima-se de ti: É o senhor que veio buscar aquele saco de esperança?

Veja mais sobre os trabalhos de dualgo em: http://instagram.com/du.algo

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