Crónica

Vítor Oliveira Jorge

A propósito do fado, delicioso mistério de Lisboa…mas não só!

30 de Dezembro, 2022

Imagem: Reinterpretação da obra “Fado“, de José Malhoa

Dando continuidade à sua notável série de textos para o Artéria dedicados a grandes temas definidores do “carácter” de Lisboa, o leitor Vítor Oliveira Jorge entrega-nos agora um ensaio sobre a canção da cidade. Culto e pertinente, como sempre, esmiúça o fado na sua natureza social, histórica, antropológica e metafísica. Afinal, que mistério é este?

Confesso, desde já, a minha ignorância: pouco frequentei locais onde se canta o fado, só recentemente despertei para o tema e seu imenso interesse, embora desde miúdo, evidentemente, como toda a gente que possuía em casa ao menos uma “telefonia”, um aparelho de rádio, tivesse sido desde sempre “embebido” em fado. Nasci em 1948, em Lisboa. E, claro, sempre tenha admirado, entre a plêiade imensa de intérpretes, a grande Amália Rodrigues, que tinha mesmo de se tornar “grande”, universal, admirada em todo um mundo, símbolo entre outros de Portugal, e cujos restos mortais repousam hoje no Panteão Nacional.

Porque Amália foi uma genial cantora, que metamorfoseava por completo tudo o que cantava, dando aos versos e à melodia uma força e um impacto dignos da “grande arte”. E, nesse sentido, representa bem esta tendência moderna por excelência, ligada à tecnologia de difusão do som e imagem em toda a parte, que é a “música popular de cidade”, transversal a todas as classes sociais, capaz de unir multidões e de, democraticamente, permitir a fama – e o proveito, bem devido – a muitas pessoas que, frequentemente, provinham dos setores mais desfavorecidos da sociedade.

E também de trazer para a cidade a “música do campo”, a música de tradição oral, rural, por vezes muito antiga, ou manifestação de tradições “inventadas” mais ou menos recentemente, numa mescla tão grande, numa mistura de géneros tão subtil e secretamente miscigenada, que torna difícil e até talvez espúrio o velho debate sobre a “origem última”, ou archè, do fado. Porque, evidentemente, não querendo, nem podendo, aqui sequer resumir tudo o que se tem investigado neste campo da musicologia, ou aludir a toda a mitologia que também o envolve, há que ressaltar que são milhares os criadores e intérpretes deste género musical, e infinitas as influências que sofreu e as misturas criativas a que deu origem, revelando bem que se trata de um fenómeno vivo e em pleno desenvolvimento, aliás muito apreciado por pessoas de todo o mundo, que, mesmo nada entendendo da nossa língua, ficam, ao ouvi-lo, totalmente fascinadas.

E, algumas dessas, não só tentam também interpretá-lo, como até estudar eruditamente a sua história e a sua antropologia, sociologia, entre outros factores, procurando abarcar, sem nunca definitivamente conseguir – e ainda bem -, as suas inúmeras facetas e metamorfoses. O fado, sendo em geral conhecido como lisboeta, é bem um “fenómeno social total”.

Num vídeo que é projetado para os visitantes, no Museu do Fado em Lisboa (mais concretamente em Alfama; ver: https://www.museudofado.pt), surgem vários fadistas ou estudiosos e amantes do fado, homens e mulheres, a quem é feita a pergunta embaraçosa: o que é para si o fado?… E, na verdade, assim de repente, têm dificuldade em responder. Alguns falam de alma, dizem que o fado exprime, liberta, expõe a “alma” da/o fadista…outra diz que o corpo lhe dói todo quando canta…outro refere que, quando interpreta o fado, fecha os olhos, e como que se liberta de si, como se o que canta passasse a ter uma certa autonomia em relação ao corpo que, simplesmente, lhe serve de veículo.

Ainda é dito por alguém, um guitarrista, que, quando toca, os seus dedos passam a ser como máquinas, independentizam-se de si mesmo, naquela magia, naquele mistério que é fazer acontecer a canção, acompanhada em geral à guitarra e à viola, no meio de outros “colegas” e do público que tem de estar ali, mas em silêncio, por momentos como uma massa anónima, indistinta, apenas sendo ouvido e atenção total. Outra artista afirma que, quando acaba de cantar, tem sempre pena que isso tenha acontecido, que lhe apetecia continuar sempre; outra ainda refere que a emoção é tão grande que depois (ou antes…entre um fado e outro…) é preciso fumar um cigarro, beber um copo de água…

“Um fingimento verdadeiro”

Ao ouvirmos isto tudo, não pode deixar de nos vir à mente o prazer sexual do orgasmo, mas também o sentimento religioso, diria quase místico, do crente, emoção que, muitas vezes, serve até para recalcar a ausência ou insatisfação sempre causada pelo primeiro… Em suma, o ser humano é um ser do excesso, ele deseja desejar, mas tem de aprender a desejar, e tem de aprender que o desejo pode ser levado a um extremo, ao extremo de causar dor, e sensação de “sair de si próprio”, de evasão total, mas que, precisamente, nunca se realiza de modo a ser definitivo/a: tem de ser continuamente reativado/a. Nós voltamos sempre a tentar repetir o que nos deu prazer, gozo.

E gozo é uma palavra que está muito presente na teoria da psicanálise do conhecido (mas nem sempre compreendido) francês Jacques Lacan, ao usar a palavra jouissance, que exprime bem isso que os/as fadistas (incluindo aqui o seu público devoto) tentam exprimir. Algo, afinal, que todos os criadores, particularmente artistas, sentem, vivenciam, quando buscam, em momentos inexplicavelmente “inspirados”, transformar em objeto – voz, texto, imagem – um afeto muito forte, excessivo, em que técnica e experiência de vida, sensibilidade muito subtil, se conjugam perfeitamente, organicamente, para produzirem como que um “corpo autónomo”. Um “fingimento verdadeiro”…

E sem dúvida é isso que nos alimenta nesta vida, em que nos “libertamos” por momentos do “biológico”, do animal que somos, para passarmos a “outra cena”. E essa outra cena, eminentemente “cultural”, pode ser até relacionada com a religião, com a fé do crente monoteísta num Outro protetor, a quem dirige o seu apelo e até o seu grito na procura de um Pai, de um teto, de um sentido superior conferido por alguém que existe, invisível, omnipresente, e que “sabe” qual é esta “razão” singular que cada um de nós pode ter para viver: porque o ser humano procura o sentido para a vida através da arte e da religião, desde os mais longínquos tempos da pré-história.

E muitas características do fado, nomeadamente do mais tradicional ou “genuíno” (tudo conceitos discutíveis, por certo), lembram a cena religiosa da igreja ou capela, como a investigadora Cátia Tuna acentuou: sala escurecida, vestuário (de quem atua) muitas vezes também negro ou próximo disso, público em silêncio absoluto, olhos fechados do/a intérprete, ou abertos e virados para o “alto”, como se todos os presentes, músicos e audiência, comungassem de algo de muito forte, que os une, entre eles e a algo superior, que os transcende. E é notório que no cristianismo católico, ao contrário do “protestantismo” que dele se separou, existe ainda, como todos sabemos, o culto da Mãe, a reprodutora, e de uma miríade de santos, seres bafejados pela proximidade do divino, junto dos quais o crente pode vir interceder uma graça.

Algo pois que entra bem na “alma” do “povo” – entendido aqui quer como uma comunidade de pessoas menos letradas, mais ligadas à vida prática e até rotineira (quando não enquadrada, nos campos, pelos ciclos da natureza), muitas vezes de poucas posses, que afogam as suas mágoas na música de tradição oral em que as raízes do fado inequivocamente mergulham, tantas vezes ligadas a uma vida oprimida, pobre; quer como uma entidade mais ampla, de todos aqueles que, unidos pela vizinhança, pela pertença a uma terra, a um país, a uma língua, têm entre si alguma coisa em comum, que por vezes jaz nos “estratos mais profundos” da memória e da sensibilidade.

Mergulho, é essa a palavra com que o historiador Rui Vieira Nery se refere ao fado a determinado passo do tal vídeo que referi: no fado, para se gostar, para se entender, para se sentir, e ainda muito mais, claro, para se cantar e tocar, é preciso mergulhar: é “outra cena”, que interrompe o quotidiano de todos, ricos, remediados e pobres, e acontece em silêncio e ambiente de certa tensão, sempre com o Outro presente.

A instrumentalização política e sociológica

O fado é também este ritual, este mundo à parte, que tem a propriedade de, contendo muitas facetas e conexões com outras realidades, musicais e não só, ser algo que liga entre si as pessoas mais distintas, dos poetas aos iletrados, dos que têm uma voz naturalmente “colocada” aos que apenas possuem um fiozinho de voz, mas o sabem trabalhar por forma a dar-lhe a intensidade expressiva de um Alfredo Marceneiro, por exemplo. E por isso, pela sua força ideológica, o fado foi usado pelo Estado Novo para a célebre trilogia dos “fs”, Fátima, fado e futebol, e promovido não só a “canção de Lisboa”, mas a canção nacional.

E, por influência dos “saudosistas”, o fado, com a sua toada muitas vezes nostálgica ou melancólica, adaptava-se bem a ser transformado em instrumento ideológico-político, como se exprimisse a “alma” – conceito indefinido por excelência, convenhamos – de Portugal, integrando-se assim num certo conformismo fatalista a que o próprio nome, fado, destino, pareciam naturalmente conduzi-lo.

Mas o fado não é nada disso, como sabemos hoje pelas investigações históricas e antropológicas que se têm feito, como por exemplo as de José Alberto Sardinha. E escritos sobre ele, das mais diversas índoles, começam a aparecer no século XIX, principalmente na sua segunda metade, sendo natural que os primeiros autores que tentaram estudar a etnologia e etnografia do “povo português”, pelos fins desse século e inícios do XX, se tenham interessado, de forma mais ou menos ligeira ou sistemática, pelo assunto.

De facto, a preocupação em definir Portugal, a “alma portuguesa”, supostamente ancorada em germes seculares ou milenários, seria quase inevitável quando da monarquia (sobretudo a absoluta) se passou à República, e os súbditos a cidadãos. O que é que os unia, se não era já a divina providência representada na terra pelo Rei e sua corte, qual eco da corte celeste, que conferia ordem a um mundo tendencialmente estático?

Havia, na modernidade, que inverter o sentido do pensamento, procurá-lo na terra e nas gentes, nos seus costumes, tradições, e crenças partilhadas, e não já em categorias transcendentes. Nascia um mundo mais democrático, mas cheio de incertezas, nebuloso, e afinal resumido nesta pergunta, o que é o ser humano, tanto nas suas multímodas manifestações culturais, como naquilo que o distingue dos outros animais de onde provém? Porque a laicização liga-se também a isso: o “homem” é um primata mais evoluído, certo, mas, não tendo sido uma criação divina, o que é que o caracteriza?…

Nascia a antropologia no seu sentido mais amplo, filosófico, mas também de indagação de terreno. E o urbanita culto começou a ir ao campo não só pelo seu ambiente pitoresco, mas para se sentar à mesa do rural e tentar perceber o que, nele, supostamente residia ainda de “raízes primitivas”. Afinal tinha havido uma pré-história, e os “civilizados” comungavam, com os “selvagens” “descobertos” pelo mundo fora, da mesma origem e natureza.

Ora não se conhece povo ou comunidade que se não exprima pela música, que não precise dela para viver. Ligada às atividades produtivas, ou desligada delas numa interrupção semelhante à do rito ou do culto. E o fado, nas suas múltiplas relações e influências (em diversíssimos sentidos) urbanas, campesinas, africanas, brasileiras, etc., é bem testemunho disso. Afinal como os “blues”, como as canções dos escravos dos campos de algodão do Sul dos atuais EUA, como as músicas que os africanos levados para a América cantavam e dançavam nas missas (para espanto dos europeus) ou até nos cortejos de acompanhamento dos funerais. A música “cura”, ou pelo menos anestesia, sutura as feridas e as injustiças da vida. E, mesmo sendo fado, é sempre alegria, sublimação.

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