Crónica

Carlos Reis

O eléctrico vinte e oito

11 de Agosto, 2022

Decidi apanhá-lo. Ao 28. Trata-se de uma expedição de que sempre gosto e que há muito não fazia. Deixo o meu carro na Graça, dirijo-me à paragem, pergunto delicadamente a um senhor de certa idade se dali os eléctricos vão até à Estrela. Que sim senhor, mas olhe, tenha cuidado, está a vê-los, estão ali, aqueles marmanjos, são carteiristas, estão à espera também do eléctrico, é o costume, veja lá, ponha-se a pau.

Era verdade. Quatro ou cinco mânfios de decidido mau aspecto esperavam também o eléctrico, sabem que há ali turistas frescos e prontos a depenar. Subo para o eléctrico, ponho a máquina fotográfica a tiracolo, resguardada e do lado da janela, mudo a carteira para um bolso diferente e mais recolhido e sento-me, atento, junto à coxia, dado que os lugares à janela estavam todos ocupados.

Mal o eléctrico arranca (agora um transporte suspeito, perigoso e internacional, com passageiros de vários países e etnias), um deles que seguia de pé, como todos os outros, encosta-se demasiado ao meu lugar, pelo que tenho de lhe propor – com voz um bocadinho grossa, embora sem exageros – para ele se retirar se fazia o favor, ao que responde que sim senhor, que vou já, tenha calma. Uma rapariga do outro lado, habituée e conhecedora com certeza destas tristes e quotidianas cenas, começa mesmo a mandar vir em alta voz, há entretanto um pobre e minúsculo japonês que parece estar prestes a ser assistido por um deles, às tantas senta-se, depois de algo empurrado e apertado por entre dois dos performers e a rapariga, decidida, levanta-se, passa por eles, vai ter com o japonês, a avisá-lo e a pretender que ele verifique se lhe falta alguma coisa da mala que traz descuidadamente a tiracolo. Tudo acaba em bem, o oriental aparentemente não chegou a ser roubado, troca umas palavras, de que nada percebi evidentemente, com um companheiro, ambos permanecem calmos e japoneses.

Reparo na aparente descontracção do guarda-freio, uma mulher, que parece não saber de nada do que se passa nas suas costas, naquele pequeno mundo, ali a poucos metros de distância. Reparo também que há um desaparecimento súbito e ultra-discreto dos tais indivíduos. Ainda agora ali estavam e de repente já lá não estão, desmaterializam-se. Decididamente não lhes estariam a correr de feição as coisas, desta vez.

A viagem prossegue, por Lisboa abaixo, ultrapassamos rapidamente a Sé, fazemos a curva a guinchar. Desassossegado, o eléctrico trava a fundo junto ao Santo António, começam a sair estrangeiros e a entrar autóctones, o espaço vai-se tornando quase nacional, ainda que não de todo. A criança encantada que segue com os pais não tem olhos a medir, os bulícios desta viagem, a espantação da aventura, o vai e vem das pessoas, o desfilar de veículo pela calçada abaixo.

PARAR! PARAR! – grita uma luz intermitente, o sinal de que há gente prestes a sair, logo substituída por outra, que entra, o espaço adensa-se. Na Baixa, há novos ingressos, senhoras de idade, presumíveis habitantes locais, o eléctrico vai-se aportuguesando, ouvem-se conversas no dialecto local acerca de coisas locais, sabe, já tenho a certidão que vim buscar, pois é, tem razão, ela é mula, é muito mula e teimosa, vai acabar por receber o que deseja, foi lá de propósito na 3ª feira, imagine, não sei se é o mesmo, também me parece, tenho um cunhado na Manutenção.

O eléctrico dispara, vertiginoso pela Calçada de São Francisco acima, saímos agora do vale, a caminho de outra colina, com o guarda-freio sempre indiferente, de costas para o mundo, para este mundo que habito, um microcosmos que ele transporta sem emoção. Segue todavia concentrado na condução, em curvas e contra-curvas, no travar e no acelerar, consoante as necessidades desta cavalgada.

Outro país. De repente é o Chiado, buliçoso e jovem, outras roupagens e modos, uma diversificação de personagens, parece estarmos a passar por uma fotografia gigante, uma capa de uma revista, há um Sol no Camões, apetecível e morno, pombos nos fios eléctricos observam a fauna que lhes subjaz. O eléctrico, fatigado, afrouxa, imobiliza-se, é preenchido por novos locatários, mais estrangeirada de novo – esta agora a caminho de uma Estrela suspeitosa de uma sua Basílica, que entretanto vira nos mapas, descoberto que foi, descoberto que já está o Bairro Alto.

O banco dos palermas, como lhe chamamos na gíria urbana, é afinal apetecível, sentam-se ali mais japoneses, felizes e sem câmara fotográfica aparente, alguns deles (um mistério) com um ar quase que de habitués.

Limites da colina, agora é sempre a descer a caminho de um outro e profundo vale, são os Poiais de São Bento, aumenta a densidade populacional, fala-se um português decidido, o Sol desapareceu, deve-se este eclipse à estreiteza das ruas que percorremos, por entre prédios envelhecidos e inclinados, os telhados encandecidos e despenteados quase a tocarem-se uns nos outros, curvas súbitas e contra-curvas ainda mais súbitas, uma curta e íngreme subida, é a Assembleia da República, manifestamente desmanifestada hoje, mas com polícias de mau aspecto por ali, em pequenos molhos. Os polícias têm sempre mau aspecto, em pequenos molhos.

Pela Calçada da Estrela fora, de novo a subir. Levanto-me entretanto, para dar lugar a uma senhora da minha idade, estou na plataforma traseira, aparece um passageiro, reconhece um outro que já lá estava, tás bom ó Jorge, são companheiros habituais de jornada, cumprimentam-se como se se encontrassem no Café, despedem-se quando um deles abandona a nave, a caminho de um destino que é só seu.

Mais uma vez a nove impetuosos pontos e a arfar, o Eléctrico vai galgando a calçada, sempre com determinação, tem um fito, deseja chegar a Campo de Ourique, fim da linha, há que descansar, um direito que lhe assiste, perto do cemitério onde estão certamente outros companheiros imóveis, com quem se pode conversar, um período de calma, um intervalo na correria.

Mas eu, que acho que vou espreitar o Jardim da Estrela que há tanto tempo não espreito, mal ele desagua naquele súbito e imenso mar que é o Largo da mesma, apeio-me e despeço-me, silencioso. Há mais Sol, o espaço é convidativo, aparentemente prazenteiro.

Engano meu. Mesmo junto ao portão, há um engraxador de ar gasto, encostado ao gradeamento, imóvel e triste a fumar, o cigarro imóvel e triste, a caixa dos seus utensílios abandonada e queda. Um engraxador que não engraxa, um engraxador que não tem quem ou o que engraxar, suspenso que está das suas funções, da sua sobrevivência. Parte do meu prazenteirismo desaparece, evola-se, confunde-se com o sombreado do jardim, por aquela espécie de floresta a fingir em que entretanto me embrenho.

Há uma esplanada com gente bem disposta e jovem, há patos por ali, com um lago inventado para o efeito e para a sua sobrevivência, o arvoredo é convidativo, há sombras e Sol alternantes, vou-me internando, passo pelo coreto, que é elegante, dou uma volta por ali, câmara fotográfica ao ombro, desatenta.

Mas neste jardim, convidativo e agradável, há tristeza e abandono. Há idades avançadas e sós, há olhares perdidos, pobreza e solidão. Há uma tristeza paralela e circundante, uma velha avó desabada e enorme, que transporta um carrinho de bebé que parece um carrinho de brincar, há velhos perdidos de si próprios e mal instalados em bancos ásperos de traves de madeira, bancos que parecem ter sido inventados para lhes amparar as memórias aguadas e mal desenhadas, bancos subitamente inóspitos e incómodos, bancos com miséria acoplada.

Já não me apetece o jardim. Nem as flores. Nem os pássaros, nem as sombras. Já só me apetece voltar ao eléctrico que tem pessoas vivas e que mexem, que é agradável e morno, capaz de desfazer-me o frio que entretanto sinto, passível de me distrair e aquecer, no seu habitáculo cheio de gente diversa, a conversar diversamente. A viagem de volta é menos lenta, há quem diga que os regressos são sempre mais rápidos. Todo o regresso, todo o avesso daquele passeio é quase feito sem história, de repente já estou no Camões, a Baixa a vir de encontro a mim, a Sé a ficar para trás e para baixo, a Graça a surgir de novo, eu quase sem reparar naquelas curiosas, engraçadas e curvilíneas ruelas próximas, que são da largura do eléctrico, o qual tem de ali passar a centímetros das paredes, a encolher-se, propício e sumamente cuidadoso.

Meto-me no carro, meto uma primeira, meto-me a caminho de casa. Acendo as luzes, ponho o rádio, o noticiário sempre distrai.
Que nada, que não distrai, é só guerra os russos a destruírem a Ucrânia, os israelitas a bombardearem árabes e crianças, os sírios a fugirem para a Turquia onde não cabem nos campos de refugiados, o Costa a sorrir benevolamente a propósito de qualquer lugar comum premente, o Ventura a debitar impertinências.

Ninguém fala dos velhos que ali jaziam mesmo há bocado.
Não são notícia, que disparate o meu.

Nota: As fotografias que acompanham esta crónica também são da autoria de Carlos Reis

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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