Crónica

Vítor Oliveira Jorge

Dois jardins em Lisboa

8 de Agosto, 2022

Um emotivo desfiar das memórias de um homem de 74 anos sobre as suas deambulações, em tempos de criança e de juventude, por dois dos mais icónicos jardins de Lisboa, o da Parada, em Campo de Ourique, e o da Estrela. Ou outra forma de contar como era a vida na cidade há mais de seis décadas.

A minha vida em Lisboa, até aos oito anos, passou-se sobretudo em casa e, quando saía à rua, em dois jardins, o da Parada e o da Estrela. Já adivinhou o(a) leitor(a) que vivi em Campo de Ourique, aliás na mesma rua em que existe a Casa Fernando Pessoa, porque o poeta teve lá um quarto alugado: Rua Coelho da Rocha.

Era no quarto andar de um prédio alto, com uma escada de madeira em caracol, onde havia uma mobília de escritório em pau-santo (madeira negra, do Brasil), com os célebres móveis em estilo de “torcidos e tremidos” muito característicos de uma certa época. Lá do alto da minha casa, numa varanda muito estreita onde eu sentia uma espécie de vertigens, medo de cair cá abaixo, via parte do Jardim da Parada e a estátua da Mária da Fonte, ao pé da qual me tiraram muitas fotos (onde é que elas já andarão…), com aquele ar um pouco sem jeito que as crianças têm quando as mandam posar, normalmente com uma roupa de sair assim mais bonita, porque me iam fotografar.

Sobre este jardim, apenas me apetece agora dizer que era muito mais bonito nessa época do que é hoje. Não sei porquê, havia menos gente, talvez mais árvores e menos estruturas que foram pondo por ali. Mas, para dizer a verdade, já não vou lá matar saudades há bastante tempo e olhos de criança metamorfoseiam tudo, claro.

Já diferente, mais importante, é para mim o Jardim da Estrela, onde ainda hoje tenho uma pessoa de família que vive ali perto. Gosto particularmente dele. Ali passei muitos bons momentos com o meu triciclo e no meio dos pavões que já então, na primeira metade dos anos 50 do século passado, por lá abundavam. Claro que para um miúdo pequeno o jardim era enorme, todo um mundo cujas fronteiras ou cartografia me eram desconhecidas.

Só não me fugiu da memória um episódio surreal que ali se passou comigo, um domingo, quando o meu pai me levou a passear e eu, ainda na rua, cá fora, quis olhar lá para dentro do jardim. Ainda me recordo do sítio. Devidamente aperaltado com o meu boné e lacinho à gato (coisas da minha mãe…), meti a cabeça entre duas grades para ver melhor e nunca mais a consegui tirar. Fiquei ali, feito estátua, entalado, a olhar sempre para o mesmo sítio, perante a aflição do meu pai, que também não me conseguiu arrancar àquele martírio, e que, julgo, teve de pedir a intervenção dos bombeiros para me libertar. Uf, que trauma!

O Jardim da Estrela cruza-se também, na minha memória, com o dia em que fui pela primeira vez à escola, um externato que fica ali mesmo ao lado, com quatro anos de idade. Fez-me muito bem começar tão precocemente, na minha vida, a “socializar-me”, a sair daquele relativo isolamento de família numa casa antiga onde velhotas jogavam dominó. Uma casa, apartamento, que me aparece agora como uma imagem um pouco escura, a preto e branco. Fez-me bem conhecer outros meninos e meninas.

Sei que aprendi a ler muito cedo, e que desde que tal aconteceu, até hoje, com mais setenta anos em cima, nunca desde então parei de ler. Mas a primeira manhã, essa, de início, custou-me um pouco, porque não estava habituado a levantar-me tão cedo. Era um dia um pouco frio de outono, àquela hora o Jardim da Estrela estava ainda fechado, e envolto num certo nevoeiro, onde estranhei ver os vultos dos pavões como que meio escondidos na vegetação e tudo envolto naquela brancura que pairava na atmosfera. Mal sabia eu que estava a entrar para o sistema escolar onde iria fazer toda a minha vida até me aposentar, primeiro como aluno, claro, depois como professor. Foi o corte com a primeira etapa, mais solitária, da minha infância.

O Jardim Teófilo Braga, mais conhecido como Jardim da Parada, em Campo de Ourique

Campo de Ourique era um bairro muito agradável. Havia – e ainda haverá – a famosa pastelaria A Tentadora, que servia lanches para dias especiais em casa, levados numas grandes cestas de vime, e o Canas, que na altura era um restaurante-cervejaria de esquina, com esplanada, onde os meus pais iam muito. Havia também por ali uma florista onde a minha mãe me comprou uns bichos da seda que eu tinha numa caixa lá em casa, e havia sobretudo cheiros, como por exemplo odores maravilhosos de café que saíam para a rua e inundavam as nossas narinas, a partir de uma loja, para mim enorme, que tinha imensas caixas com tipos de café diferentes, os quais normalmente as pessoas compravam em grão, para moer em casa, e fazer os cafés numas “máquinas” de balão e lamparina.

Mas houve uma manhã de sábado, a meio caminho entre a minha casa e o Jardim da Estrela, na calçada que desce, em que me esperava uma experiência bem pouco agradável, essa mais traumática do que a da cabeça metida entre as grades a que aludi. Estranhei aquela frase da minha mãe, “hoje vamos visitar o senhor doutor”. Quando entrámos no prédio, sentei-me ao lado dela numa sala de espera onde não havia mais ninguém, cá fora estava um sol bonito que trespassava as janelas, mas fizeram-me entrar numa sala fechada, ataram-me a uma cadeira alta, puseram-me uma coisa metálica na boca para eu não a poder mais fechar. E veio de lá do fundo do compartimento, onde, nunca mais esquece, tremelicava a chama de uma lamparina, um senhor de bata branca e com uma enorme seringa na mão.

Em suma, iam-me tirar as amígdalas. Doeu-me a picada da anestesia, mas sobretudo tive muito medo de tudo aquilo, descontrolei-me, urinei-me todo, uma desgraça. E ao fim o médico, ou uma enfermeira assistente, ainda vieram mostrar-me as duas amígdalas tipo troféu, uma ao lado da outra, ensanguentadas (do tamanho de duas almôndegas prontas a cozinhar), num recipiente metálico. A minha mãe tentava consolar-me, dizendo que agora íamos para casa e eu passava a poder comer muitos gelados (que sempre adorei), mas o que me resta de tudo aquilo são imagens de brilhos, luzes artificiais, o metal dos objetos de corte e dos recipientes. E como que uma sensação de ter entrado numa câmara desumanizada de tortura. Algo que me chocou muito, e também me afastou, por um tempo, do verde dos jardins e das cores e flores das minhas brincadeiras, tais como agora as imagino.

O sistema médico, como o sistema escolar, tinham portanto entrado em mim, na minha remota experiência daquele velho bairro de Campo de Ourique, da velha Lisboa dos meados do século XX!

Vivi sempre em Lisboa até aos 24 anos de idade, altura em que me casei pela primeira vez, já depois de me ter licenciado em História, na Faculdade de Letras. Mas as letras, de princípio, foram o meu gosto pela escrita, que, evidentemente, começou por pequenas quadrazinhas e outros esquiços que estavam todos num dossiê que, mais tarde, se perdeu. E talvez ainda bem, para eu agora não ter de me confrontar com tão embrionários escritos poéticos.

Voltei-me para a arqueologia, matéria em que fiz a minha tese de licenciatura, e isso tem tudo a ver com Campo de Ourique, onde a arqueologia, já adulto, claro, me levou regularmente de novo, matando saudades da minha primeira infância. E esse regresso está ligado a um nome, o do economista e arqueólogo amador Eduardo da Cunha Serrão, que vivia mesmo por cima da Tentadora, e que foi o meu primeiro “mestre” em arqueologia – muito mais dos que tive na universidade (onde fiquei muito a dever a outros, mas não propriamente dessa matéria), a verdade seja dita. Na verdade, na altura, na arqueologia portuguesa só havia amadores.

Eduardo Serrão mantinha, como me disse uma vez uma familiar dele, um dos últimos “salons” de Lisboa, no sentido de que à noite – ele deitava-se tarde, e não teve filhos – gostava muito de ver a sua casa cheia de gente nova, conversando, sobre arqueologia e não só…Mas a maior parte das vezes, desde os meus dezassete anos, estávamos só os dois, ele indicando-me livros, ensinando-me coisas, falando-me dos seus trabalhos em Sesimbra, Parede, Olelas (Sintra) e, no fim, oferecendo-me uma ou várias “separatas” de trabalhos que tinha publicado e que faziam as minhas delícias. Uma espécie de ritual onde aprendi muito. Mas na altura eu não era noctívago, de modo que aí pelas 11h30 da noite ele dizia-me, pronto, Vítor, por hoje já chega, vá para casa descansar.

E eu tomava um daqueles “elétricos” que descem a calçada da Estrela, e lá vinha para casa, tentando ler o que ele me tinha oferecido. Já não olhava tanto assim como dantes para o Jardim da Estrela, junto ao qual passava, às horas em que já estava tudo mergulhado no escuro, e também sobretudo porque estava obcecado, na luta para aprender, ter boas notas, poder vir a ser convidado para assistente universitário, e assim conseguir obter um posto na carreira que tanto almejava. Na altura, o curso exigia uma tese final, trabalho pesado.

Mas, ó vida sempre perpassada por jardins, ainda cheguei a escrever alguns curtos esboços de capítulos da tese em bancos de jardim, ali em Belém, ou perto do Largo do Rato, enquanto esperava por uma namorada. Tinha de aproveitar todos os momentos! E, agora, tenho sim mas é de aproveitar para concluir estas breves memórias, antes que apareçam mais jardins, e eu só pus dois no título. Até uma próxima vez.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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