Crónica

Carlos Reis

A fotografia, uma revelação

26 de Dezembro, 2022

Fotografias: Carlos Reis

Passei anos a fotografar “da velha maneira”. Tenho-lhe saudades e gostava que isso continuasse, especialmente no preto e branco. Custou-me a habituar a esta “marmelada electrónica”. Como alguém disse uma vez, uma amiga que também gosta de fotografar, e que eu subscrevo inteiramente: “isto [o digital] não é melhor nem pior, é outra coisa…”

Ainda a propósito de uma minha fotografia (em rolo fotográfico, de celuloide, 1994), lembrei-me do Sr. Costa, o homem que me revelava os rolos e tirava as provas das minhas fotos e que era um príncipe do laboratório fotográfico. Eu pedia-lhe, por exemplo, nessa época já distante, para me “desmaiar” a fotografia de um barco e ele fazia-me a vontade. Com gosto e habilidade.

Acontece que antigamente – e eu sabia disso, pois o meu pai revelava fotografias e fazia as provas em casa – também se fazia um trabalho de revelação e cópias, consoante as exposições sobre o papel, com mais ou menos sombra (com a mão, por exemplo, onde passava a luz), quando se projectava o negativo no ampliador sobre o papel, consoante o tempo dessa projecção de luz, entre outros factores.

Ou seja, tirando os rodriguinhos e as aldrabices fotográficas, africanas, azuis e amarelosas de um hoje em dia – que são, efectivamente, coisa própria para parolos, a fotografia, a de rolo, sempre teve uma componente de laboratório. E, tal como então, isso pode fazer-se hoje, sem perverter a ideia ou a intenção do fotógrafo. Até o Salgado e o Bresson, nos seus tempos analógicos, o fizeram – e muito bem, com certeza.

Hoje, nós, os que, enfim, gostamos de fotografar, temos também um trabalho de laboratório. A câmara fornece uma espécie de “negativo” – que não é negativo, claro – e as pessoas passam então aquilo para o definitivo. No computador ou em papel.

O problema nos photoshops, nesses chop sueys que toda a gente utiliza, é que, para além da aldrabice, há uma total ou quase total ausência de preocupação de arte. Há quem ache essas coisas muito interessantes e artísticas, mas isso é discutível e eu acabo por discordar. Subverte quase sempre a essência da fotografia. Na fotografia, é o olhar do fotógrafo que contae, naturalmente, que uma boa máquina ajuda muito, mas sem aquele golpe do olhar do Cartier Bresson ou do Capa ou do Gerard Castello Lopes, não havia fotos geniais.

Antigamente, havia uma parte das nossas vidas suspensa. Tratava-se do tempo que mediava entre a entrega dos negativos num competente artífice e o acto de as ir buscar, às fotografias. Coisa que levava uma semana ou mais, por entre o sair de dentro das nossas câmaras fotográficas e o mostrar-se, enfim, em maravilhosos papéis rectangulares. Um milagre em diferido, um mistério adiado.

Perdeu-se essa excitação. Mas eu complicava ainda mais as coisas. Mandava revelar o negativo e, em vez de fazer o que os portugueses todos faziam – e fazem, às molhadas, aos milhares e agora simplificadamente electrónicos que se tornaram, metem tudo num disco, é muito mais simples – isto é, pediam 36 cópias de 9×12 de fotografias todas semelhantes entre si que se fartavam –, eu pedia ao Sr. Costa que me fizesse uma prova de contacto, por favor, Sr. Costa.

Ou seja, uma folha grande com os rectangulozinhos lá todos, mas em positivo. E ali, no seu estabelecimento – um velho 3º andar no Largo do Corpo Santo, um bocado alto e desprovido de elevador, uma pessoa até fazia exercício, imagine-se -, então ele fornecia-me, solícito, uma lupa, eu estudava as fotos e das 36 acabava por escolher apenas uma meia dúzia que achava que estavam “boas”.

O Sr. Costa sugeria-me algumas, eu pedia-lhe para cortar aqui e acolá e só daí a mais uns dias é que, excitadíssimo e ansiosíssimo, as podia ir buscar – normalmente com medidas a sério, de 18×24 ou até maiores. Eram caras, mas, sendo em menor quantidade, talvez afinal gastasse o mesmo que os outros, não tenho a certeza.

Mas ficava muito mais feliz do que eles, os outros, disso tenho eu a certeza. E se alguma não ficasse a meu contento – escura de mais ou clara de mais, por exemplo -, ele voltava a fazê-la, sem me levar mais dinheiro por isso. Mais ansiedade, excitação e expectativa, de novo mais dias em suspenso.

O Sr. Costa vendeu, entretanto, o estaminé por evidente falta de clientes – era um profissional competentíssimo, trabalhava para profissionais competentíssimos. Deitou fora, confessou-me mais tarde, as caríssimas máquinas de revelação e de provas de cor de que já ninguém precisava e que não tinham qualquer valor comercial e retirou-se, fechou de vez aquela velha e querida oficina de muitos anos. Meus e dele, mais dele do que meus.

Mas não desapareceu. Esta história não é muito feliz, mas também não acaba de todo mal, não acaba aqui. Deu-me uma morada de uma loja de alguém, familiar ou conhecido e ali, algures “lá atrás”, nalgum interior misterioso, continuou a trabalhar as fotografias a preto e branco, pois há ainda quem as tire, com rolo fotográfico. Eu próprio fui lá com velhos negativos de fotos enrugadas e envelhecidas e ele voltou a fazer-me as respectivas provas.

Há muito tempo que lá não vou – esta coisa viciante da fotografia apressada e digital acaba por nos tirar o tempo para aquelas agradáveis delongas. Comprei até um rolo de 400 ASA, disposto a utilizar nalguma das minhas velhas, analógicas e excelentes câmaras, a Nikon ou a Canon, mas vou-me adiando, preguiçoso e lerdo que estou. Que sou.

Curiosamente, o velho Gerard Castello Lopes – que expôs fora de portas e do qual possuo um livrinho com deliciosas e maravilhosas fotos a preto e branco – nunca aderiu ao digital, segundo me confessava o Sr. Costa, por entre um sorriso cúmplice

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