Crónica

Francisco Mouta Rúbio

Gramática de um corpo olissiponense

19 de Dezembro, 2022

Tinta por uma linha.

A décima segunda crónica de Francisco Mouta Rúbio, acompanhada pela ilustração do artista dualgo.

Vejo-te simples, pequena, bonita. Não abusas da tamanha beleza, nem és apenas simplicidade (és quem és por te equilibrares nessa fina corda). Descomplexada de pés grudados ao chão pronta a levitar. Ainda precisas da minha ajuda? Escolhes vestido cor de pergunta, salto baixo de sussurro, sorriso que convida à conversa. Cheiras a segredo enlameado por três pontos.

Vais ganhando altura, surges na altura certa. O teu pretexto está aí na rua, sais caminhando para onde mais ninguém olha. Ver o que só tu podes ver. Um vazio no passeio, um coração na calçada, uma janela embrulhada em solidão. Pegam-te na mão e voas iluminando ruas onde nem há luz. Hume dizia que a beleza das coisas está no espírito de quem as contempla, e tu és espírito de uns quantos que eu cá conheço. Depois, serás o que te permitirem ser. Respondes perguntando: é para entrar? Pululas entre lugares, por personagens que tropeçam na escada da vida desta cidade — os que esculpem as estórias — e que te permite ser corpo.

Andas pela Almirante Reis, pelo Intendente ziguezagueias o Alto do Pina, Bairro Alto e abrigas-te dentro dos casacos de napa escura que escorrem cheiro a tabaco, tremoços e imperiais. Entras na sala enevoada e ficas a um canto. No teu canto. Demolhada em silêncio ninguém te vê, ninguém te ouve, e no entanto, observas certeira.

Descomplicas o teorema quântico da não-singularidade. Queres lá saber de rizomas, leit-motifs ou outras línguas desportuguesas. Nada precisas. A tua condição é imaterial e obrigatória. És matéria de uns e sustento de poucos. Sobrevives à jorna frágil da memória.

Não queres inventar outras artes, nem te sobrepor a elas, muito menos substituí-las. Isso é para os pretensiosos que não se calam. Um cálice, por favor! Vais direita às outras artes, estendes a mão aberta e viajam juntas por aí. Sabes cantar o que o teu povo diz entredentes, repetindo-se, não o que ele sabe ouvir. Evitas os telejornais, os locais e as esplanadas fechadas ao outro. Danças em cima do quotidiano universal com palavras mal sentadas. Não precisas de pintar aquela segurança que todos querem ver. Estimulas o roubo e não queres que nada seja apenas teu. És propriedade líquida e colectiva. Fazes cronologia do espaço, da nossa cidade, está no teu sangue literário — não consegues esquecer a lógica do tempo.

Preenchedora de vazios, emancipas-te pela rua deserta de glórias. Caminhas, logo existes. Não queres correrias. Encontras o teu ritmo. E encontramos-te aqui, ao teu ritmo. A tua condição é popular, por oposição ao populista. Não esqueces o teu tempo mas morres num ponto perdido. Mistério eternamente irresolvido. Tu não serás esquecida, serás breve como todos nós.

Veja mais sobre os trabalhos de dualgo em: http://instagram.com/du.algo

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