Crónica

Francisco Mouta Rúbio

Tinta por uma linha.

A sexta crónica de Francisco Mouta Rúbio, acompanhada pela ilustração do artista Dualgo.

Estimada Senhoria,


Escrevo-lhe apenas para gravar uma quantas memórias deste oriente cada vez mais central. Começo por agradecer-lhe o magro aumento de renda do ano passado, aguardando semelhante meiguice nos próximos tempos — sei quão custoso pode ser acordar às sete da manhã para emitir recibos de renda electrónica acumulando três trabalhos. Tempos complicados, conhecemos outros neste país?, pois claro, os custos da construção, eu compreendo — apesar de não ter gasto um euro nesta casa nos últimos sete anos — pois realmente, a imprevisibilidade fiscal, os políticos todos uns patifes — mas não está tudo igual nos últimos anos? —, pois eu já sei, abaixo de mil euros em Lisboa só por “caridade” — alguém assalariado consegue pagar estas rendas? quem? qual o trabalho? —, é verdade sou um sortudo, poder passar recibo, eu sei — uma raridade não ter de aceitar esses compromissos perdidos entre a honra ilícita e a ganância coxa.


(Moro num quarto interior sozinho, janto sobras de cheiros cinzentos, numa casa divida entre idiomas estranhos e desconhecidos, trocamos no máximo uma palavra por dia, enquanto esperamos na fila para lavar os dentes, tudo isto por quinhentos euros mensais cada um)


Acordo no sofá, e sinto ainda mais o peso do meu privilégio, os noticiários sensacionalões revelam: na cidade de Los Angeles o mesmo espaço, onde dormito na minha sala, vale mil e quinhentos dólares. É o curso natural do progresso, dizem, e eu aceno com a cabeça prosseguindo, apoiado nestas palavras intrépidas. Lá chegaremos. Por agora continuo apenas a agradecer, obrigado uma vez mais, minha senhoria, muito obrigado, pois também já reparei nessa famosa lei. A da oferta e da procura. Esses gráficos dinâmicos não param de dançar em crescendo. Sim, eu percebo, os senhorios têm de aproveitar o que ficou da Crista da onda, a moda do alojamento permanentemente local, são as receitas do turismo, estúpido!, dizem-me, e eu aceno, sim, é o sol, as startups, as bicas e as sardinhas transformadas em parque de diversões turísticas. Abrando. Leio diante do ecrã suado em esperanças: “mudar o regulamento municipal do alojamento local para impedir que esta atividade possa existir em prédios com licença para uso habitacional”. Mas que cidade é esta? Claro, não podíamos continuar com a pouca vergonha dos arrendamentos vitalícios. Queríamos o quê, limites para as rendas? E depois?! As casas vazias, as casas a cair de podres, nem compensava alugar, agora sim estão cheias num entra-e-sai de gente com mérito para viver em Lisboa. Relembro agradecido: aos 40 anos tenho é muita sorte de poder continuar a viver aqui. Num T2, onde decorei as paredes, as janelas, numa cidade onde não escolhi — quem escolhe? — nascer, mas depois me fez renascer criança, problematizou adolescente e confirmou-me eternamente criançadulto.


Sei de pele próxima, daquela pele friccionada contra a nossa pele, ser privilegiado. O Jorge, meu namorado, não é. Até conseguir tapar-se com estes lençóis em plena Rua da Penha de França o Jorge sussurrava no meu ouvido seus sofrimentos (o mercado não gosta de quem vive sozinho). Na sua certidão de nascimento inscrita a cidade do Cartaxo, onde as fronteiras se desenham a 100km de Lisboa, de carro uma hora, de autocarro duas, de bicicleta quatro e meia, a pé são dezassete horas. Chegou a partilhar viagens com vizinhos-trabalhadores até Lisboa. De tanto procurar no facebook conseguiu encontrar no grupo “Casas e apartamentos para arrendar em Lisboa até 500€” um quarto com uma renda suportável, numa freguesia coração de Lisboa. Acertou o que pensou ser uma visita, afinal, uma entrevista, e encontrou mais cinco candidatos para ficar com aquele achado habitacional. Tomás não amava o género expectável, por isso escondeu-o, não tinha contrato de trabalho, nem fiador, muito menos o apelido, o sotaque e a cor de pele apropriadas, mas isso já não dava para esconder. Tomás de volta ao Cartaxo em menos de uns minutos com a indicação indirecta, fruto deste racismo envergonhado, de que o lugar possível mais longe de casa, próximo de Lisboa, era um comboio para a linha de Sintra, para a Amadora, ou as camionetas para Loures. E que mal tem isso? Que linhas desenhamos sobre os nossos desejos imaginários? Quantos infelizes no Restelo e almas cheias na Cova da Moura? Vem-me à cabeça dois exemplos imediatos.

Minha senhoria, sei não ser de muitas palavras, mas quando se entrega a elas, ao final de cada ano, nasce uma combustão de argumentos, por isso deixo-lhe sugestões em forma de lista para pensar no que devia aumentar ao ritmo do preço destas rendas:

  • o ordenado médio
  • o tempo para distinguir o steinbeck do stendhal do steiner
  • o orçamento para o SNS
  • os segundos em que não ouvimos falar da alt-right
  • o aquecimento das casas
  • a intolerância com os intolerantes
  • a tolerância com os tolerantes
  • os versos que atingem, como uma seta, o coração
  • a desbaratização dos prédios
  • as gargalhadas, porque sim
  • a paciência no trânsito
  • os bons leitores de crónicas estranhas
    , do seu cumpridor e agradecido Inquilino.

Veja mais sobre os trabalhos de Dualgo em: http://instagram.com/du.algo

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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