A mudança de pele da Rua de Arroios

27 de Setembro, 2022

Reportagem

André Gonçalves
Conhecido, durante décadas, pela inusual concentração de stands e oficinas automóveis, o arruamento que vai da Igreja de Arroios ao Largo de Santa Bárbara assiste a uma singular mutação. Paulatinamente, por entre negócios resistentes dessa era, observa-se a afirmação de uma comunidade de criadores e de negócios associados à arte e à cultura. À sombra da Almirante Reis e com ela comunicando.

Fotografias: Daniel Rocha

O nome da rua vem dos cursos de água que corriam por aquelas férteis terras agrícolas (com “arvoredos murmurosos e relvas fofas”, refere Eça de Queiroz n’O Primo Basílio, em 1878) e hortas abundantes cuidadas pelos frades e freiras dos conventos que, há cinco séculos, dominavam a zona então periférica da capital. O que era o arruamento que ligava essas quintas ao centro da capital passou a chamar-se Rua Direita de Arroios, no século XIX, tempo em que a Almirante Reis ainda não tinha sido rasgada como avenida principal.

Foi na viragem do século XIX para o XX que a construção de prédios, quase todos com três ou quatro pisos, tomou conta da terra que era das quintas. A rua que no topo até faz um ângulo perdeu a designação de “Direita”, ficou apenas de Arroios.

Também já passou o tempo – últimas décadas do século XX – em que os stands de venda de automóveis foram o principal volante para o movimento concorrido nesta rua de Arroios. Resta agora um par dessa dezena de estabelecimentos que sobreviviam nesta rua. Há um deles que foi convertido em oficina para reparação elétrica de automóveis. Alguns outros são usados provisoriamente como garagem. As vitrinas amplas mostram que estão à espera de futuro na rua que está a mudar de pele. Mas muito já mudou.

Margarida, 21 anos, veio da Beira Alta para estudar psicologia em Lisboa. Está a pagar há dois anos 475€ por mês por uma parte de casa na Rua de Arroios. Sente que esta rua “tem uma comunidade que acolhe”. Num fim de semana recente, Margarida tinha-se feito convidada na festa que transbordou do nº25D, onde funciona a redação do jornal Fumaça, para o passeio, quase em frente à casa onde vive: “Dá gosto estar com pessoas assim, descomplicadas, que logo integram quem aparece”. Mesmo ao lado, está a Tigre de Papel, livraria alternativa onde é possível comprar e vender livros que apetece ler.

A Livraria Tigre de Papel assume-se já como um dos ex-libris da Rua de Arroios

No expositor da livraria fundada em 2016 por Bernardino Aranda e Fernando Ramalho, à entrada, há uma prateleira com livros a um euro. Margarida comprou ali por 7,90€ uma edição como nova das Novas Carta Portuguesas. Já tinha comprado por 5€ um livrinho de poesia de Bob Dylan. Margarida conta que entra na Tigre de Papel pelo menos uma vez por semana, porque “faz bem sentir aquela atmosfera”. Sente que está ali “uma parte da alma da atual Rua de Arroios”.

Makoto, 24 anos, veio do Japão para estagiar em arquitetura num ateliê lisboeta. Chegou em junho. No grande fim de semana dos Santos Populares, desceu de Alfama ao Intendente e, quando já ia para o hostel, na Estefânia, passou pela Rua de Arroios. Ficou. A rua estava fechada ao trânsito automóvel, com o asfalto todo dedicado à festa popular tradicionalmente organizada pelo Clube Atlético de Arroios. Naturalmente, com fartura de sardinhas e bifanas, cerveja e vinhos.

O Atlético de Arroios está a celebrar 85 anos e mostra-se cheio de vida. Cultiva o teatro, as festas e as concorridas sessões de quiz nas noites de quinta-feira.

Makoto trocou o alojamento local na Estefânia por um quarto alugado no mesmo prédio onde vive Margarida. Está a fazer do Lisbon Vegan, quase no topo da rua, uma espécie de cantina em que o buffet, com sabor indiano, custa 8,50€ ao jantar e menos um euro ao almoço. Às vezes, janta na pizzeria, mas também na Adega do Domingos, onde explora os sabores portugueses em pratos que admite “serem pesados”.

Makoto já pôs na agenda ir tratar do cabelo no Lazarus, a barber shop, mas também tattoo studio e bar na mesma Rua de Arroios. O arquiteto-estagiário japonês já esteve na loja de bicicletas, ao fundo da rua, e prepara-se para rolar por Lisboa em duas rodas. Está igualmente com vontade de explorar o Mitó Creative Site, no número 95 desta Rua de Arroios que ganhou “movida”.

A Rua de Arroios junto à Livraria Tigre de Papel

A tradição e a inovação

O Mitó Creative Site nasceu há pouco mais de quatro anos da iniciativa de Sara Matos Ferreira. Formada em Engenharia do Ambiente na Universidade Nova de Lisboa, Sara conta ao Artéria que a ideia surgiu após a empresa na qual trabalhou na área da construção civil durante oito anos ter aberto insolvência. Sem emprego, Sara teve a ideia de criar um espaço onde pudesse dar largas à criatividade e trabalhar em conjunto com outros que a quisessem partilhar com ela.

A principal ambição de Sara Matos Ferreira para o Mitó Creative Site é a de que seja um local onde os artistas possam expor os seus trabalhos sem terem de passar pela atrapalhação das burocracias das galerias de arte. O facto de o espaço ser o da antiga oficina do seu avô é um estímulo para Sara. O lado sentimental do lugar revela-se, por isso, determinante.

Além da exposição de diversos trabalhos artísticos, incluindo áreas de expressão como a pintura, a cerâmica e a joalharia, o Mitó Creative Site é um sítio onde se realizam diferentes workshops que ajudam a revelar artistas menos conhecidos, bem como os seus projetos artísticos. Um objetivo, aliás, em consonância com o ethos daquela área da cidade.

O Mitó Creative Site nasceu no que foi a oficina do avô da fundadora deste espaço criativo

Os últimos anos têm assistido ao nascimento, desenvolvimento e sedimentação de pequenas iniciativas e negócios culturais, na área da Avenida Almirante Reis e de Arroios. Uma dinâmica sentida ao longo da última década, na sequência da intervenção regeneradora no Largo do Intendente – iniciada em 2011, com a deslocação do gabinete do, à época, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, para um edifício situado numa zona até então conhecida pelas piores razões. Desde então, toda a área passou a funcionar como uma espécie de magnete para uma população maioritariamente jovem e ligada a atividades criativas.

A Rua de Arroios não é exceção. Sara Matos Ferreira considera que o “desenvolvimento” daquele território está muito relacionado com o aumento do turismo. “Nos últimos anos, a zona de Arroios tem-se tornado muito turística e tem tudo para se desenvolver ainda mais, nos próximos anos”, avalia. Apesar da visão positiva de Sara sobre a influência daquela atividade na dinâmica sentida na Rua de Arroios e na área envolvente, a opinião de alguns moradores diverge. Há queixas pelo aumento dos preços da habitação e receios de descaracterização da zona.

Sara de Matos Ferreira entende que projetos como a do Mitó Creative Site, por si criado, acabam por ter um grande impacto e põem no mapa a agitação cultural sentida nesta área da cidade de Lisboa. “Através da passagem da palavra sobre estes projetos culturais, será possível atrair cada vez mais artistas para mostrarem os seus trabalhos”. Volvidos quatro anos – que tiveram pelo meio a pandemia – desde a criação do Mitó Creative Site, Sara faz um balanço claramente positivo da aposta neste lugar.

As oficinas criativas dão agora outro brilho a um arruamento antes apenas conhecido pelas oficinas automóveis

Metro e multiculturalidade

Também otimista é a visão de André Figueiredo, 37 anos, Rita Daniel, 36, e Gonçalo Almeida, 45, sobre a dinâmica social e cultural em crescendo e aparente consolidação na Rua de Arroios. Os três responsáveis pela FICA Oficina Criativa decidiram mudar-se para o 154 B daquele arruamento, no ano passado, quando perceberam que o espaço de criação artística artesanal por si dinamizado desde 2016 não tinha mais lugar no LX Factory, em Alcântara.

O edifício onde estavam desde o momento inicial e davam formação em áreas como cerâmica, marcenaria, risografia e serigrafia – mas também encadernação, gravura ou costura – iria ser demolido, para ceder o lugar a um novo empreendimento imobiliário. Havia que encontrar uma casa nova. Procuraram em vários sítios, mas a Rua de Arroios acabou por se impor como uma escolha natural. Mais ainda por causa da renda comportável. Depois de obras de adaptação de um antigo armazém, abriram portas em Julho de 2021.

“Vimos muita coisa, mas sempre centrados na possibilidade de escolher um sítio nesta área. Quer por causa das boas ligações de transportes públicos, nomeadamente o metro, mas também devido à multiculturalidade que aqui se sente”, explica Rita Daniel, a fundadora da oficina criativa, salientando a importância de estabelecer uma relação profunda com “esta malha urbana”. E isso tem acontecido nos 300 metros quadrados daquele espaço flexível onde a FICA disponibiliza o saber fazer e os materiais para quem queira desenvolver aptidões criativas manuais. E são cada vez mais os interessados.

Rita Daniel salienta a importância de estabelecer uma “relação profunda” com aquela zona

Seja através de workshops de técnicas artísticas específicas ou do “ginásio de ofícios”, em que se pode praticar numa oficina equipada, com máquinas, equipamentos e ferramentas o que se foi aprendendo, há cerca de uma centena de pessoas a frequentar a FICA – que também tem uma loja. “É sempre surpreendente que, mês após mês, as pessoas continuem a aparecer e a demonstrar interesse em aprender estes saberes”, diz André Figueiredo, o diretor criativo. A maioria dos que querem conhecer os princípios básicos de técnicas criativas manuais é gente com trabalhos sedentários “frente ao computador”.

“As pessoas que vêm cá sentem essa necessidade de pôr as mãos na massa, aprender estes saberes e fazer alguma coisa”, explica Rita Daniel, sem deixar de frisar o impacto positivo que tal vivência tem trazido à rua. “Ajuda a valorizar a zona. A atividade cultural faz um reverso do que existia”, afirma, ciente da imagem que a Rua de Arroios tinha até há bem pouco tempo. “Uma amiga da minha mãe, quando soube que nos estávamos a mudar para aqui, disse logo ‘Essa rua não interessa para nada!’”.

O gerente da Livraria Tigre de Papel, Fernando Ramalho, lembra-se bem de quando lhe diziam que a rua era “só oficinas e cafés que abrem e fecham”

Comentários parecidos ouvia com frequência Fernando Ramalho, quando abriu as portas da Tigre de Papel, em 2016. “Nessa altura, algumas pessoas acharam estranha a escolha da localização da livraria. Diziam-me ‘Essa rua é só oficinas e cafés que abrem e fecham’”. Hoje, já ninguém estranha que seja também a casa das Edições do Saguão ou da loja de discos Tabatô Records. Há vida por ali.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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