Crónica

Francisco Mouta Rubio

Pesadelo numa chávena de café (parte dois)

27 de Fevereiro, 2023

Tinta por uma linha

Francisco Mouta Rúbio, colaborador habitual do Artéria, oferece aos leitores a segunda parte de uma crónica (ficcional) que tem a cidade de Lisboa como pano de fundo. A ilustração é, como sempre, do artista gráfico dualgo.

E encharcado de liberdade, levanto-me da cama. Acordo sobreavisado numa poça de esquecimentos. Assusto-me dentro daquele sonho e num segundo estou a procurar-me pela realidade pacata da ruela da cidade. Salto da cama suando pela bica num temor, num tremor. Tapo o corpo com o primeiro trapo e voo na busca desse grão que desperta a cidade inteira, atravessando sulcos de alcatrão. E estou de sapato amolgado no calcanhar a pisar a calçada escorregadia até à rua que desce-e-estica-estica-e-desce a nossa velha capital até ao seu rio. Esbarro no 28 vazio que se lamentava em letras neónes: Martim Moniz 28. Agora há certezas no olhar, a luz e os carreirinhos de turistas não enganam, isto é Lisboa.

Os aromas castanhos invadem as oito da manhã lisboetas sentadas em cadeiras com pernas como fios pretos. Aproximo-me dessa esplanada, e depois lá dentro do café do sr. Não Sei Quantos encontro animada a gente de carcaça com o fiambre de língua de fora numa mão e meia de leite na outra. Ainda antes de desembrulhar o caderno de notas mental, oiço do lado direito de fora do balcão quatro disparos, como estaladas ao longe:

1. este café está uma vergonha!!!

2. este café é muito escuro!!!

3. não é café nacional, pois não?!

4. deve ter sido trazido por esses bengalis lá da mouraria!!!

Se fosse café nacional, todos os portugueses teriam mais saúde e dinheiro, acrescentou simples o neo-vetusto.

Estranhei a espuma raivosa da manhã, e, enquanto esfregava as ramelas pousadas nos cantos dos olhos, lembrei-me do país inflamado nessa fúria constante alimentada a páginas de escandaleira, para quê tanto barulho, homem?, perguntei assobiando ao sol. Que chegue rápido o sol de Albufeira, a praia da Costa e desapareça este frio e chuva cinzentos. 

No entretanto, não havia como mudar aquela agulha, que não se cansava de continuar a picar e a picar, para a sinfonia habitual: Está fresquinho, ou, Aquilo ontem foi uma roubalheira nem ao VAR foram. Os temas doces e familiares que desenham os traços do nosso redondo verbo lisboeta: esplanadar. Encontrar uma cola para unir as várias famílias dentro de palavras breves. Ligar temas sólidos e começar o dia com versos, a importância da conversa matinal. Comum.

Para o sujeito que gritava, que espumava, que esperneava o problema a debater era só um: o café. Indignado com a falta de qualidade daquele café gritava e insistia que não pagava.  Eu não pago por esta amostra de café. Não acreditava neste sistema de torrefação e explicava com todos os pormenores. Lá isso é verdade, as pessoas esqueciam a carcaça e a meia de leite e excitadas assistiam aquela possibilidade de disputa, na verdade era apenas um monólogo mal representado, sem réplicas. Os guarda-costas protegiam o bem-vestido, de olhos nervosos mas gestos firmes, mirando todos os cantos da praceta, e para o cenário de filme de baixo orçamento estar completo faltava apenas a última fala: chamem a polícia, se necessário for, até tenho por lá muitos e bons amigos que tratam deste assunto num instantinho. 

Enquanto a gente se afastava cada vez mais entre si, eu continuava a ouvir aplausos e insultos, ele escondido silvava risos, aproveitava a banha que lhe escorria pelos cantos da boca e cuspia o seu café sem princípios. Levei o corpo para longe, e como o poeta, do terraço daquele café olhei tremulamente para o nosso futuro inseguro, se admirava um cartoon ou um país.

(a primeira parte desta crónica pode ser lida aqui)

Veja mais sobre os trabalhos de dualgo em: http://instagram.com/du.algo

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