Crónica

Franscisco Mouta Rúbio

Realmente é preciso ser-se snob para

1 de Agosto, 2022

Tinta por uma linha.

A segunda crónica de Francisco Mouta Rúbio, acompanhada pela ilustração do artista Dualgo.

Segundo reza a crónica, há por Lisboa uma gente de olhar desarrumado, rabiscando anotações de duvidosa qualidade, sobre tudo o que a rodeia. Gente que frequenta o Nimas, o São Luiz, a Gulbenkian. Sempre com um ar introspectivo, cavalgando o seu privilégio. Tenho reparado nisto, mas ainda não o tinha escrito, pois o snobismo parece-me tema indelicado, ainda mais se é o snob que o aborda.

Lanço esta palavra, snob, e não opto por pseudointelectual ou pedante, apesar de na minha posição ser mais adequado o pernóstico. Admito que nem é muito grave ser-se snob na nossa cidade, há ali pelo Rato uma livraria específica para estas pessoas. Mas, por vezes, o snob sente alguma vontade de ser como os outros. Um desejo inexplicável de se desembaraçar de Debord, Cortázar, Chirbes e não se incomodar com vícios gerais. De arrumar a crítica e o desassossego numa esquina de Lisboa. De sentir-se realizado no passeio dominical, tarde adentro pela caverna, perdão, pelo centro comercial. O maior contratempo de ser-se snob é uma certa deriva para o erro. Para mergulhar sob e sobre a falha. Encontrar no equívoco a matéria para o seu tempo e vida. Mais, o infortúnio para quem vive próximo do snob é aturar as suas pseudo (porque apenas dele) indignações.

Querem um exemplo breve?

Como o leitor bem sabe, o cinema ao ar livre inundou as praças e os jardins de Lisboa. Que felicidade, pensam todos. Todos, excepto o snob. Ele, a muito custo, acede à excelsa experiência. Cede, pois sabe que não haverá pipocas. Cede, pois o tema do filme é pós-colonial, o realizador um desconhecido argelino de planos longos, silêncios acolhedores. Um deleite críptico, mesmo ao gosto do snob. Condições reunidas para trocar a cadeira da Cinemateca pela relva de um jardim de Lisboa. O snob, enquanto janta, convence-se da felicidade porvir. Uma noite ao ar livre, para testemunhar o trabalho colectivo de imagem e som que lhe fornecerão uma perspectiva fresca. Uma sorte poder lavar a roupa da vida diária, pequena, mesquinha que repete horas, meteorologia ou o prato de bacalhau que se escolheu para o almoço.

Já de bunda no chão comum, e após os créditos iniciais, surge um baque e o corpo do snob estremece. Um sussurro, uma frase, uma consideração e o snob perdoa, porque foi apenas em tom baixo, mas vem uma contra-resposta, cruzam-se diálogos, bisbilhotando sibilâncias e não vais deixar isto prosseguir, pois não?, pensa o snob. A digestão trava e o jantar está transformado numa tempestade de bacalhaus psicadélicos. O snob sente uma voz rompendo, outra, outra, e tem a certeza que estas vozes não fazem parte do filme (não há diálogos nos filmes snobs, lembra-se leitor?) e aí sente que tem de agir. Já nem vai conseguir usar da fina ironia, ferramenta exclusiva do povo e do RAP. Nas filas atrás de si, uma reunião de ondas sonoras atrela sinfonias, que, apesar de imperceptíveis, devem ser traduzidas:
A minha conversa é mais importante que o trabalho do realizador, dos actores, dos programadores; sim e a minha conversa é mais importante que o interesse do outro, que a atenção deste snob aqui à frente.

O snob considera este comportamento deveras fascista e começa a desenhar ideias para resolver a situação. Enclausurado neste profundo mal-estar, imagina apontar a luz do telemóvel aos ignóbeis, mas isso não chega, imagina virar-se para trás, esquecer a tolerância e usar da palavra, inspirado na que ouviu há uns anos: Mas vocês vieram da aldeia? É que aqui na cidade temos milhares de opções para conversar e o cinema é a última delas!

Mas o snob prossegue em direção ao silêncio, ao contrário dos estalinhos, dos cliques, dois toques, uma canção de irritações. O snob começa a aceitar que a única solução razoável será copiar a proposta de Lars Von Trier em “Chacun son Cinema”. Talvez o leitor não seja snob o suficiente para ter visto este filme comemorativo dos 60 anos de Cannes, ou não se recorde da delicada sugestão do realizador dinamarquês: cravar imediatamente um martelo no olho do espectador que insista em falar durante uma sessão de cinema.
Enfim, realmente é preciso ser-se snob para embrulhar todo este texto com desejos invisíveis numa cidade com temas tão maiores em cada bairro. Surgirão, espero.

Veja mais sobre os trabalhos de Dualgo em: http://instagram.com/du.algo

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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