Tinta por uma linha
Francisco Mouta Rúbio, colaborador frequente do Artéria, oferece aos leitores mais uma crónica (ficcional) que tem a cidade de Lisboa como pano de fundo. A ilustração é, como sempre, do artista gráfico dualgo.
Numa destas noites cinzentas, asseguro-vos, participei num recital onírico conservador. Uma viagem até uma dessas festa do antigamente cheias de lustres e ilustres, cigarrilhas e corpos de cristal. Uma tertúlia demasiado às direitas, considerarão alguns, apenas uma reunião de gente séria e responsável, dirão outros.
Representando o melhor fraque que o bolso ainda me permitia subalugar, brilhantina penteada a gritar da testa ate à nuca, pendurava no canto da boca um grã-fino cigarro e desvanecia-me entre os pedantes luso-qualquer-coisa. Chegado ao Palácio Nacional da Ajuda, de boleia desde a zona ribeirinha num uber descaracterizado, falei para o rapaz (enganei-me, desculpem para o moço), Adalberto, o felizardo que pernoita numa “cama-quente” junto a mais vinte forasteiros, Não devo demorar, ele assentiu, colocou a nota entre dedos e respondeu carioca, Demorou, cara (ignorando as minhas vestes temporárias e percebendo de imediato o meu interior). Apesar do que a gente a franzir o triângulo da vergonha e a desconfiar do outro acredita, há inteligência espalhada por todo o lado, até dentro de um uber, basta estar atento.
(que idiotice condescendente esta tentativa de alterar a vossa perspectiva, quando sei tal qual Hume defendia que, A beleza das coisas reside apenas no espírito de quem as contempla)
Abriu-se o portão principal do Palácio, onde esbarraram com o meu nome no meio da lista de desdobrados apelidos, longos demais para quem quer fazer parte, introduzindo-se os candelabros e lustres platinados reflectindo luz demasiada para os meus olhos, daí a necessidade destes rayban, já que o sol tinha ficado esquecido lá fora. Consideravam-me cego, ainda melhor, pensava o meu disfarce estilo Ray Charles. Whiskey cambaleante entre as duas pedras de gelo que dançavam ao ritmo de um slow com salpicos tropicais, ombro a ombro com a coluna de mármore, erigida com o imposto do trabalhador, equilibrava-me num canto da sala enquanto lá no meio, os reacionários mais barulhentos, posso garantir, falavam assim mesmo em modos de língua desportuguesa:
– O diabo está neste país. Há muita corrupção, guerra, morte…
(e ao ouvir isto lembro Joaquin Phoenix nas vestes pintadas a cores de desespero dentro do fato de Joker, É impressão minha ou o mundo lá fora está a ficar cada vez mais louco?)
– Sangue?
– O diabo!
– O diabo como?!
– Você não sente que está por aí não sei o quê?
– O quê?
– Sangue. A esquerda!
– Mas você ainda acredita na nossa esquerda? Nessa que está aí?
– Mais do que nunca.
– Enquanto a esquerda que está aí até seu último idiota, não vai acontecer nada, rigorosamente nada!
– 2026 está aí…
– O passado é o futuro possível, meu caro. Lembra-se de algum político a dizer que foi enviado por Deus?
– Não.
– Lembra-se de algum político a falar na pátria amada, a falar de ditadura?
– Tampouco.
– Então, estamos bem entregues e a esquerda com isso pode nada.*
Desmascaramo-me a rir (a hormona incontrolável de que Saramago falava traiu-me), entorno o sedoso malte escocês pelo fraque costurado a pequenas mãos orientais, sinto a brilhantina a escorrer-me pelo rosto e percebo: descobriram-me a boina, descobriram-me a foice, o martelo e o punho cerrado que escondia pelo interior deste bolso com um lenço vermelho. Neste instante, o salão inteiro vira-se para mim todos de consternado olhar, com direito a mira com luzinha vermelha no peito e tudo, pronta a disparar impropérios odiosos. E pronto, vamos embora, Adalberto, que a coisa vai esquentar.
* diálogo construído com base numa crónica de Nelson Rodrigues
(a segunda parte desta crónica será publicada no próximo Tinta por uma Linha)
Veja mais sobre os trabalhos de dualgo em: http://instagram.com/du.algo
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