Crónica

Francisco Mouta Rúbio

Pesadelo numa chávena de café (parte um)

13 de Fevereiro, 2023

Tinta por uma linha

Francisco Mouta Rúbio, colaborador frequente do Artéria, oferece aos leitores mais uma crónica (ficcional) que tem a cidade de Lisboa como pano de fundo. A ilustração é, como sempre, do artista gráfico dualgo.

Numa destas noites cinzentas, asseguro-vos, participei num recital onírico conservador. Uma viagem até uma dessas festa do antigamente cheias de lustres e ilustres, cigarrilhas e corpos de cristal. Uma tertúlia demasiado às direitas, considerarão alguns, apenas uma reunião de gente séria e responsável, dirão outros. 

Representando o melhor fraque que o bolso ainda me permitia subalugar, brilhantina penteada a gritar da testa ate à nuca, pendurava no canto da boca um grã-fino cigarro e desvanecia-me entre os pedantes luso-qualquer-coisa. Chegado ao Palácio Nacional da Ajuda, de boleia desde a zona ribeirinha num uber descaracterizado, falei para o rapaz (enganei-me, desculpem para o moço), Adalberto, o felizardo que pernoita numa “cama-quente” junto a mais vinte forasteiros, Não devo demorar, ele assentiu, colocou a nota entre dedos e respondeu carioca, Demorou, cara (ignorando as minhas vestes temporárias e percebendo de imediato o meu interior). Apesar do que a gente a franzir o triângulo da vergonha e a desconfiar do outro acredita, há inteligência espalhada por todo o lado, até dentro de um uber, basta estar atento. 

(que idiotice condescendente esta tentativa de alterar a vossa perspectiva, quando sei tal qual Hume defendia que, A beleza das coisas reside apenas no espírito de quem as contempla)

Abriu-se o portão principal do Palácio, onde esbarraram com o meu nome no meio da lista de desdobrados apelidos, longos demais para quem quer fazer parte, introduzindo-se os candelabros e lustres platinados reflectindo luz demasiada para os meus olhos, daí a necessidade destes rayban, já que o sol tinha ficado esquecido lá fora. Consideravam-me cego, ainda melhor, pensava o meu disfarce estilo Ray Charles. Whiskey cambaleante entre as duas pedras de gelo que dançavam ao ritmo de um slow com salpicos tropicais, ombro a ombro com a coluna de mármore, erigida com o imposto do trabalhador, equilibrava-me num canto da sala enquanto lá no meio, os reacionários mais barulhentos, posso garantir, falavam assim mesmo em modos de língua desportuguesa: 

– O diabo está neste país. Há muita corrupção, guerra, morte…

(e ao ouvir isto lembro Joaquin Phoenix nas vestes pintadas a cores de desespero dentro do fato de Joker, É impressão minha ou o mundo lá fora está a ficar cada vez mais louco?)

– Sangue?

– O diabo!

– O diabo como?!

– Você não sente que está por aí não sei o quê?

– O quê?

– Sangue. A esquerda!

– Mas você ainda acredita na nossa esquerda? Nessa que está aí?

– Mais do que nunca.

– Enquanto a esquerda que está aí até seu último idiota, não vai acontecer nada, rigorosamente nada!

– 2026 está aí…

– O passado é o futuro possível, meu caro. Lembra-se de algum político a dizer que foi enviado por Deus?

– Não.

– Lembra-se de algum político a falar na pátria amada, a falar de ditadura?

– Tampouco.

– Então, estamos bem entregues e a esquerda com isso pode nada.*

Desmascaramo-me a rir (a hormona incontrolável de que Saramago falava traiu-me), entorno o sedoso malte escocês pelo fraque costurado a pequenas mãos orientais, sinto a brilhantina a escorrer-me pelo rosto e percebo: descobriram-me a boina, descobriram-me a foice, o martelo e o punho cerrado que escondia pelo interior deste bolso com um lenço vermelho. Neste instante, o salão inteiro vira-se para mim todos de consternado olhar, com direito a mira com luzinha vermelha no peito e tudo, pronta a disparar impropérios odiosos. E pronto, vamos embora, Adalberto, que a coisa vai esquentar.

* diálogo construído com base numa crónica de Nelson Rodrigues

(a segunda parte desta crónica será publicada no próximo Tinta por uma Linha)

Veja mais sobre os trabalhos de dualgo em: http://instagram.com/du.algo

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