Crónica

Ana Ribeiro Nel

A ponte que mudou de nome

24 de Fevereiro, 2023

A CIDADE COMO NÓS

Com o passar dos anos, há uma tendência para esquecermos a força e significado de determinadas datas, objectos ou edifícios. A Ponte 25 de Abril, por exemplo, é muito mais do que uma ponte. Pode ser vista como uma obra de engenharia única, um símbolo de liberdade, mas também remeter para outros tempos e trazer à tona memórias, às vezes dolorosas, que continuam a fazer parte da vida de muitos portugueses e portuguesas. Ana Ribeiro Nel — enfermeira de profissão e colaboradora habitual do Artéria — relembra-nos isso mesmo, em mais uma crónica que resulta dos seus passeios a pé pela cidade de Lisboa.

Caminho ao lado do rio Tejo, perto da ponte 25 de Abril, outrora uma ponte com outro nome, como se mudando o nome de uma coisa se pudesse apagar História, quem sabe pelo menos aliviar a dor.

Debaixo da ponte há um campo de basquetebol e nele joga um rapaz sozinho, dança como uma poesia triste, acompanhado pelo guinchar de uma gaivota que o sobrevoa. Na doca, um tétris colorido de contentores e gruas. Há pescadores que aguardam a mordida do isco ao lado da cana, alguns agrupam-se à conversa com as mãos nos bolsos. Está um frio que me obriga a fechar o casaco e o vento lava-me a cara e os pensamentos.

Há quem corra ou ande, muitos ciclistas e transeuntes de trotinete, mas quase nenhum de capacete. Um dos ciclistas segura o guiador com uma mão e com a outra filma a paisagem usando o telemóvel. Há uma trotinete caída que dorme no rio. Um barco passa e, de súbito, formam-se ondas que batem na margem. Uma rapariga desce as escadas em direção à água, com cuidado, como se não quisesse despertar as pedras. 

Afinal a ponte também canta, com a sua sinfonia de carros, camiões e comboios. Assemelha-se a um zumbido contínuo, uma música trepidante, que nos absorve. Mais à frente, pessoas estão sentadas no terraço do MAAT, à espera do pôr-do-sol, mesmo que hoje haja pouco sol.  

De seguida, no Padrão dos Descobrimentos, turistas com sacos de pastéis de Belém adensam-se em cima do planisfério, recordam-me as aulas de História e Geografia, o professor Jorge com calças de bombazine, óculos de massa e entusiamo a escrever no quadro de giz. Na Torre de Belém, uma longa fila e um violinista toca temas da Adele para quem espera. Senta-se num banco, o tronco ereto, faz uma vénia a quem lhe deposita uma moeda na caixa do violino.  

Por fim, passo pelo Monumento aos Combatentes do Ultramar. Alguns visitantes leem os nomes escritos nas lápides, os nomes estão ordenados alfabética e cronologicamente. 1973 foi um mau ano, mas em todos os anos a maior parte dos nomes pertence a soldados.

Quando o meu pai regressou de Angola, a minha avó queimou tudo o que ele trazia numa fogueira no meio do quintal. Podia ser que se as coisas materiais desaparecessem também a angústia ficasse mais fácil de suportar, ver um filho vir inteiro de corpo mas magoado na alma. 

1973 foi um ano difícil.  

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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