Crónica

Ana Ribeiro Nel

Uma pequena revolução

21 de Junho, 2023

Ana Ribeiro Nel, enfermeira de profissão, apaixonada pela escrita e pela cidade, escreve sobre uma visita (marcante) ao Museu de Lisboa. 

Estamos em 2023 e vou escrever-vos um texto que demorei muito tempo a escrever, que corrigi diversas vezes. Porque esta parte da História só agora estou a descobrir e tenho 43 anos. 

Esta crónica não é bem uma crónica. É uma história sobre a minha ida ao Museu de Lisboa, por ocasião da comemoração do 25 abril, onde realizei uma visita guiada sobre a presença africana em Lisboa, a que foi dado o nome de “Dar cor à liberdade”.

A visita foi orientada por um elemento do serviço educativo do Museu de Lisboa, e por Djuzé, da Associação Batoto Yetu Portugal. A Associação Batoto Yetu Portugal, criada em 1996, tem como principal missão apoiar crianças e jovens interessados na cultura africana, procura o reconhecimento e valorização das suas raízes culturais. Atualmente, desenvolve várias atividades, aqui não vou descrever todas, mas um dos seus trabalhos foi criar a Digital African Memory (DAM)1, em parceria com a Secretária de Estado da Igualdade e Migrações. A DAM é uma plataforma digital que dá a conhecer a presença e influência dos vários povos africanos na cultura portuguesa ou lusófona. 

Pretende-se, assim, reunir a informação que já existe, mas está dispersa e torná-la acessível à população. Djuzé, que hoje representa a Associação nesta visita pelo Museu de Lisboa, nasceu em Portugal em 1975, cresceu na área metropolitana de Lisboa, longe da ilha de Santiago, Cabo Verde, de onde os seus pais vieram. Djuzé gostava de ter aprendido, na escola, mais sobre as suas raízes e, por isso, hoje trouxe uma pessoa muito especial a acompanhá-lo, a sua filha adolescente.

A visita no Museu de Lisboa pela presença africana na cidade foi uma viagem no tempo, que começou no século XVIII e recuou à pré-história. No entanto, não me vou alongar com toda a descrição da minha visita, que muito recomendo e que ficará em mim registada. 

Vou falar-vos das mulheres negras trabalhadoras na cidade de Lisboa. 

 Maquete de Lisboa antes terramoto 1755

Observei uma maquete da cidade antes do grande terramoto e na zona do Rossio erguia-se o Hospital Real de Todos os Santos, o maior hospital da cidade. De seguida, um painel de azulejos do início do século XVIII retrata a fachada do hospital. Na sua escadaria, um grupo de mulheres negras vendia comida feita e produtos alimentares, porventura arroz cozido, tremoços, milho, grão, seguramente para quem visitava os doentes do hospital. 

Pelas ruas de Lisboa circulavam muitas mulheres negras, algumas escravas, que trabalhavam para sustentar a família e provavelmente para pagar a alforria, a sua liberdade.  Apesar disso, ainda tinham de pagar um imposto para trabalhar, a sisa.

Os guias da minha visita falam da revolta das mulheres negras trabalhadoras das ruas de Lisboa, que aconteceu em 1717, quando estas se juntaram, manifestaram-se publicamente e reivindicaram os seus direitos. Foram ouvidas pela Rainha Maria Ana da Áustria numa audiência e ganharam a causa, tendo sido a câmara obrigada a não cobrar mais a sisa. Pesquisei um pouco mais sobre esta revolta das mulheres negras de 1717. 

Havia trabalhadoras negras em muitas atividades da cidade, na limpeza das ruas, a lavar roupa, no transporte de água, no despejo de detritos. Em Alfama, ainda hoje se pode visitar o Chafariz D’El- Rei, cujos primeiros registos documentais remontam a 1220 e que em 1551 a câmara dita as regras para a utilização das várias bicas: “(…) a primeira para cântaros, cantarinhas, quartas, odres, barricas e pipas dos escravos, a segunda para os mouros das galés, a terceira e quarta para os homens e mulheres brancos, a quinta para mulheres pretas e índias e a sexta para moças brancas.”2

A calhandreira, por sua vez, tinha uma dura atividade, e a sua função existiu durante vários séculos, só terminando no século XIX. Era a “figura típica que assegurava a recolha «das sujidades», isto é, dos detritos das casas portuguesas urbanas, carregando a pesada calhandra à cabeça, resultado da ausência de esgotos capazes de assegurar a higiene doméstica das cidades”.3 

As mulheres de origem africana em Lisboa eram cruciais para o funcionamento da cidade.

Quero aqui ressalvar que não eram só serviços domésticos que os africanos em Lisboa executavam, muitos também tinham conhecimentos técnicos a nível de embarcações e navegação, outros conseguiam poupar dinheiro e comprar casas e negócios, entre outras profissões e atividades que não pesquisei. 

Corriam pelas ruas da cidade músicas e danças que celebravam a alegria e fertilidade. O Fado Dançado, que também fervilhava pelo ar,  era uma dança lisboeta e que tinha influências de pessoas vindas do Congo, Cabo Verde e Brasil. Mais tarde, o Fado Dançado iria perder a parte da dança, que era considerada demasiado sensual, e da percussão, ficando apenas o canto, o lamento, o Fado.  

No fim da visita pelo Museu de Lisboa, a guia do serviço educativo levou-me, com um brilho nos olhos, a uma sala onde está exposto um painel de azulejos, nele vê-se uma mulher negra a amanhar peixe. 

– Volte quando quiser. O Museu está ao seu dispor. 

No fim, houve um concerto de Karyna Gomes no jardim. O sol aquecia os espetadores, alguns sentaram-se na relva, um pavão pavoneava-se pelo recinto, muitas pessoas dançaram, de coração quente. Num clima de proximidade, Karyna falou sobre um dos instrumentos que trouxe para nos tocar. Uma tina de água, um instrumento típico da Guiné-Bissau. Descreveu também o quintal da sua avó na Guiné. Aquele jardim podia ser o quintal da sua avó.

Ao meu lado, a filha adolescente de Djuzé tira fotos ao concerto. Djuzé, há coisas que nem todos os livros da escola ensinam. Mas a educação é isto, pode ser uma pequena revolução. Mesmo que seja aos 43 anos. 

1 https://dam.batotoyetu.pt

2 monumentos.gov.pt

3 Castro Henriques, Isabel (2019). Mulheres Africanas em Portugal: O Discurso das Imagens (século XV ao XXI). Alto Comissariado para as Migrações. 

ARTÉRIA

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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