AINDA HÁ TASCAS EM LISBOA?

19 de Junho, 2023

Reportagem

Mariana Carvalho e Nicole Gouveia
As tascas sempre foram uma imagem de marca de Lisboa, algo que tem vindo a mudar nos últimos anos, com muitos destes restaurantes típicos a dar lugar a espaços mais modernos. Ou hotéis de charme. Mas ainda há quem resista, como a Tasca do Manel e o (renovado) O Velho Eurico. Mariana Carvalho e Nicole Gouveia, estudantes de Ciências da Comunicação da Autónoma, foram visitá-las.

Rua da Barroca, nº24. Bairro Alto. Lisboa. Tasca do Manel. A decoração é clássica, com candeeiros à antiga, garrafas de vinho em estantes colocadas no cimo da parede. Lá fora, uma esplanada. O espaço foi-se adaptando aos novos tempos e já não é propriamente aquilo a que associamos a uma tasca, mas mantém-se “simples, familiar, popular”, o mesmo espírito desde os tempos em que Manuel Calçada, regressado do Ultramar, decidiu abrir no coração da capital uma cozinha portuguesa de inspiração minhota e alentejana. 

Pratos de caça (empadas de perdiz, feijoada de lebre, javali), ou lampreia, seja em arroz, seja à bordalesa, eram — ainda são — alguns dos seus pratos mais afamados. O cheiro e a fama espalharam-se pelo bairro e a casa rapidamente se tornou num destino obrigatório, um dos poisos predilectos dos jornalistas que por ali trabalhavam. “Antigamente, o Bairro Alto era a capital dos jornais. A maioria dos títulos eram feitos e impressos aqui, por isso muitos dos nossos clientes eram jornalistas”, conta Ricardo Calçada, filho de “Manel”, afirmando ainda que a casa “estava cheia quase 24 horas por dia”. 

Lisboa mudou, a maioria das redacções deslocou-se para outras partes da cidade e os jornalistas foram substituídos por jovens e turistas, seduzidos pela aura boémia da zona. “Ainda tenho alguns clientes antigos que já são velhinhos, mas posso dizer que, à noite, 90 por cento são estrangeiros” revela Ricardo, acrescentando que a facturação não tem nada que ver com esses tempos. “Há alguns anos trocava as mesas três vezes durante a hora de almoço”, acrescenta.

As sucursais da Caixa Geral de Depósitos e da Fidelidade são agora parte do sustento desta tasca durante o dia. “No momento em que saiam daqui, não me compensa abrir o almoço”. 

Ricardo, teme não só pelo seu futuro, mas também pelo de muitas tascas e restaurantes típicos lisboetas. “Vai ser difícil, mas gostava que todas se conseguissem aguentar”, até porque nem sempre é fácil resistir à mudança, à falta de clientes e à tentação. “Chegam aqui pessoas com grande poder de compra e oferecem malas de dinheiro, e os donos deixam-se iludir”, conclui. 

O objetivo passa por manter o negócio em família, sempre sob o olhar atento de Manuel Calçada, que, apesar de ter passado a gestão ao filho, continua a trabalhar e a receber os clientes. Como em qualquer tasca que se preze. 


A Tasca do Manel fica no número 24 da Rua da Barroca, no Bairro Alto. Um ambiente e uma comida “simples, familiar, popular”, 

O renascimento do que se está a perder

A história d’O Velho Eurico, localizado No Largo de São Cristóvão, junto ao Mercado do Chão do Loureiro, é um pouco diferente. Durante muitos anos foi um nome de referência da cidade, uma espécie de segredo mal guardado quando se falava em tascas lisboetas. À semelhança de tantos outros espaços de restauração lisboeta, mudou de gerência — em 2019. 

Esteve fechado durante três meses até que os jovens Zé Paulo Rocha e Fábio Algarvio, ambos com formação em hotelaria, vieram para lhe dar uma nova vida. Os actuais proprietários fazem questão de ostentar uma placa à entrada onde se lê “restaurante típico”, mas a mudança foi radical, desde logo a decoração. No interior, realce para um pequeno espaço com música ambiente; há frases escritas na parede; um rádio antigo no canto da janela e um quadro onde se pode ler o menu. No exterior, destaque para as três mesas, bancos e uma fila de clientes para almoçar. Esta é, aliás, também uma imagem de marca deste ‘novo Eurico’, já que conseguir lugar é um feito. 

Desenganem-se, contudo, quem pensa que o caminho foi fácil. Os atuais donos recordam o quão complicado foi convencer a fiel clientela do antigo espaço: “Quando reabrimos tínhamos noção de que era um projeto com alguma bagagem e apanhámos clientes do senhor Eurico que fizeram fricção connosco”, confessa Fábio. Começaram a surgir comparações. “Chegámos a dar almoços e jantares só a uma ou duas mesas”. 

Desistir nunca foi solução. Os clientes apareceram, os prémios e distinções também, e hoje em dia são uma dos destinos incontornáveis desta nova Lisboa cosmopolita. A localização é apelativa aos turistas, que reservam a  refeição antes sequer de viajarem para o país — são os principais clientes, sobretudo durante a hora de almoço —, mas o que sustenta todo este crescimento é a qualidade da cozinha. O bacalhau e o arroz de pato, que antes davam fama à casa desapareceram, mas a essência continua tipicamente lusitana, como provam o arroz de polvo, coelho frito ou a punheta de bacalhau.

Apesar do sucesso, estes novos tasqueiros não baixam a guarda. Uma tasca é um projeto insustentável”, afirma Zé Paulo Rocha. “É uma vida pesada, onde os frutos não são muitos. É necessário haver mais respeito e valorização para com estas pessoas”, conclui.


O Velho Eurico, localizado No Largo de São Cristóvão, junto ao Mercado do Chão do Loureiro
 

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