Crónica

Jarna Piippo

Lisboa, sabes…Eu sei

1 de Fevereiro, 2023

Fotografias: Jarna Piippo

Para uma jovem finlandesa estudante de língua e cultura portuguesa, a chegada a Lisboa, pela primeira vez, em 1986, deve ter sido uma experiência e tanto. Agora, aos 56 anos, Jarna Piippo, professora e tradutora a viver na sua Helsínquia natal, entrega ao Artéria um carinhoso exercício de recordação desses tempos. As lembranças dos anos 80, quando aqui viveu e estudou, são naturalmente subjectivas, pois a memória é sempre selectiva. E, quem sabe, algumas coisas nem corresponderão à realidade, assume a própria. Mas ajudam-nos a traçar o retrato de uma época não tão distante e, claro, são prova de como muito mudou.

Cheguei a Lisboa de manhã, de barco, vinda do Sul. Como os comboios ainda não passavam pela ponte, apanhei um cacilheiro cheio de pessoas que iam para o trabalho, mulheres ensimesmadas, jovens sonolentos, crianças morenas com os olhos verdes. E a cidade, erguendo-se magnífica das águas ao nascer do sol.

Nos anos 80, atravessava a Europa com o passe de Interrail. Dessa vez, a intenção era apanhar o comboio noturno de Madrid para Lisboa, mas, como este estava cheio, entrei num outro, na linha ao lado, com destino a Sevilha – por acaso, acordei em Córdoba e acabei saindo logo ali. A primeira vez que entrei em Portugal tinha sido no ano anterior, em 1985. Vinha da Galiza e só cheguei até ao Porto, porque o passe ia caducar, e tinha de regressar a casa a tempo.

No primeiro verão, hospedei-me numa pensão nos Restauradores. Atrás da praça, comecei a falar com um angolano que estava a tocar a viola na rua. Era professor de matemáticas e foi o meu primeiro amigo em Lisboa. Tinha combatido vários anos na guerra, e andava como um soldado andaria pelos trilhos no mato, subia encostas com passos firmes e refrescava-se em fontes. Ficava de olhos marejados quando falava das atrocidades e uma vez atirou-se de repente para o chão na rua, por causa dum fogo de artifício que pareceu uma explosão.

Uma noite, levou-me a um restaurante na Mouraria. Estava fechado, mas os donos vieram abrir-nos a porta, serviram-nos comida do fundo da panela e chamaram a filha, que já estava de pijama. Ela cantou, acompanhada pelo meu amigo, deixando-me arrepiada. Era a Mariza, que devia ter 12 ou 13 anos na altura.

Jarna Piippo ainda guarda o cartão do restaurante onde, numa noite de 1986, ouviu a adolescente Mariza.

Fui obtendo bolsas de estudo do ICALP (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa) e apaixonando-me cada vez mais pela língua e literatura, história e arte portuguesas. As aulas eram interrompidas ora pelo estrondo dos aviões que aterravam, ora pelos balidos das ovelhas que pastavam nos descampados à volta do pavilhão novo. Havia professores excelentes, mas também havia alguns que nem apareciam. E nós à espera, semanas a fio, sem saber se ia haver História dos Descobrimentos ou não. Os materiais fotocopiavam-se na reprografia e os almoços degustavam-se na cantina velha. Um dia, havia pelos espetados na pele do pedaço de animal exposto no prato. No dia seguinte, os colegas mais sensíveis foram à fila da comida macrobiótica.

Passeava sem me cansar pela cidade. A arquitetura resultava-me deslumbrante e partia-me o coração ver prédios e palacetes antigos em ruínas. Os miradouros, os jardins, as fontes, as calçadas, nem sabia para onde havia de olhar, rodeada de tanta beleza. Calcorreava as ruelas e escadarias, subindo e descendo. Em Alfama, moravam alfacinhas de gema para quem a rua era uma extensão da casa.

Em Alfama, a rua era a extensão natural da casa.

Podia ficar horas sentada nas escadas do muro do Castelo – onde sentia um vento súbito e claro nos cabelos -, com vista para o rio e para a azáfama dos carros e das pessoas que pareciam miniaturas lá em baixo. Apanhava o elétrico e o elevador sem fazer fila e com um lugar para sentar. Na Baixa, havia comércio, cafés e restaurantes portugueses, para clientela nacional. Também havia plastificadores, engraxadores, vendedores ambulantes e pedintes, muitos pedintes com todo o tipo de doenças e deformações. De noite, dormiam envoltos em cartões nas ruas, no meio do lixo.

Uma Baixa onde plastificadores, engraxadores e pedintes compunham o quadro visual.

Havia poucos estrangeiros mas, mesmo assim, talvez me esforçasse para passar por portuguesa. Por exemplo, trazia a velha câmara manual da minha avó, num estojo de couro castanho, mas não saía à rua com ela a tiracolo. Por isso, guardo poucas fotos. As turmas na faculdade, sim, eram internacionais. Conquistada pelos galegos, comecei a estudar a sua língua, acabando por escrever a minha primeira tese académica em galego. Graças aos senegaleses, andei de mota em Casamansa e senti no próprio corpo os efeitos da malária e duma ameba. Através da finlandesa, consegui bolsas para traduzir Pepetela e Manuel Rui. Recentemente, pude hospedar-me na Rua da Rosa porque a italiana – grande especialista no teatro português – me enviou as chaves da sua casa, encontrando-se ausente.

Morei algum tempo na Venda Nova. Nunca vira um pátio de escola mais deprimente do que aquele que ficava nas traseiras do prédio. Na rua, o passeio de peões servia de estacionamento para os carros e os caixotes de lixo de fonte de alimentação. Frequentava uma pastelaria a abarrotar, com um empregado que gritava de manhã à noite “Mais uma bica aqui! Dois croissants com creme!” Fazia-me impressão quando voltava a vê-lo, tendo passado o dia com pintura ou poesia, ou um ano fora, e ele lá continuava com os mesmos gritos.

A pobreza na periferia da cidade impressionou a então jovem finlandesa.

O transporte apanhava-se às Portas de Benfica, atrás das quais começavam os bairros de lata. As filas eram longas e as viagens, intermináveis. Para chegar mais depressa às aulas, descia do autocarro superlotado e malcheiroso na Segunda Circular e atravessava os terrenos baldios por um atalho onde vinham apanhar caracóis. Para ir à Costa da Caparica, fazia fila na Praça de Espanha, e chegava à praia precisando mesmo dum banho fresco. Os passeios à beira-mar, também na linha de Cascais, eram-me imprescindíveis. Habituada a um mar que gela, era um luxo poder ouvir, em pleno inverno, o rumor das ondas e mergulhar os pés nelas.

Na Praça de Espanha, formava-se fila para apanhar o autocarro da Costa da Caparica.

Nos quartos alugados havia baratas, percevejos, pulgas e espécies rastejantes não identificadas, que aprendi a liquidar com um golpe certeiro de chinelo. Nos apartamentos pairava um cheiro a chichi de gato. Os senhorios regulavam a utilização da luz e da água, e no inverno estava um frio de rachar. Em Benfica, o dono era um professor da faculdade que simultaneamente alugava e vendia o apartamento, de modo que era capaz de entrar de repente com possíveis compradores, sem prévio aviso. Ele fechara o telefone com cadeado, e, quando ia telefonar numa cabina, vinham-me pedir moedas os toxicodependentes de boas famílias, num estado chocante de degradação.

Para fazer chamadas internacionais, acudia aos telefones públicos num canto do Rossio. Para levantar o cheque do ICALP e convertê-lo em dinheiro, procedia a inúmeros trâmites, que incorporavam elementos como selos fiscais da tabacaria e fichas plásticas de espera no banco. Para conseguir um cartão de residência temporária, tinha de ir para casa chorar um bocado, antes de voltar para as filas dos balcões de atendimento, munida de novos documentos.

Ainda que a burocracia me enchesse duma raiva de impotência, fui sempre – quase sempre – tratada com respeito. Não posso dizer “me too”, pois não partilho experiências de abusos nem de maus-tratos. Que os homens olhassem ou dissessem piropos às mulheres, era tão normal que nem reparava nisso. O que não quer dizer que não fossem tempos traumatizantes para outros. Alguns amigos só mais tarde me contaram que eram homossexuais. De todas as pessoas, foi José Cardoso Pires que certa vez troçou comigo, circulando eu visivelmente grávida no lançamento dum livro. Soube que também gozaram com Mário de Carvalho, ao lado de quem me fui sentar porque era o único lugar desocupado.

Era demasiado tímida para me dirigir aos escritores que lia e admirava. Alguns só vi de relance; a figura esquiva de Maria Judite de Carvalho no longo corredor da sua casa, uma vez que Urbano Tavares Rodrigues me convidou aí, para me apresentar a João de Melo, cujo romance estudava. Com outros cheguei a colaborar; Wanda Ramos, que estava doente na altura e acabou por morrer, sem eu saber da gravidade da situação. Alguns eram professores meus; David Mourão-Ferreira ou Joaquim Manuel Magalhães. Com Saramago, coincidi em várias ocasiões, em Madrid, em Helsínquia, em Lisboa, uma vez inclusivamente sob a velha figueira do Jardim da Estrela, mas nunca ousei iniciar um diálogo.

Havia um tema que devia ter evitado nas conversas, e era a Espanha. Os portugueses ainda viviam de costas viradas para o país vizinho, onde eu tinha estudado, e não aturavam nenhuma crítica em forma de comparação. Na Finlândia, entre os iniciados, era a mesma coisa. Fui chamada ao gabinete do catedrático de Línguas Ibero-Românicas para ser repreendida pela maneira como escrevia sobre Portugal – e a língua portuguesa! – na revista dos estudantes. Só se podiam fazer elogios, nem sequer era permitido brincar com a complexidade da língua.

Quanto à atitude do homem da rua finlandês relativamente aos portugueses, revelou-se quando trouxe primeiro um, e depois dois amigos de Lisboa para casa. Eis que um tio meu disse: “Isto é a União Europeia: no primeiro ano vem um português, no ano seguinte vêm dois”. A Finlândia aderiria à UE em 1995. Eu teria quatro filhos (fino–luso–angolanos) e, com os carrinhos de bebé, já não seria tão fácil descer degraus e degraus e degraus, até ao rio.

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