Columbano Bordalo Pinheiro é sem dúvida um dos maiores pintores portugueses de todos os tempos, e um dos maiores de todo o seu tempo. Basta ouvir enunciar o seu primeiro nome: Columbano, e sabemos logo que voamos para dentro do raro templo da grande arte! Um templo bem lisboeta…
Nascido numa família de artistas, muito conhecida, em 1857 (circunstancialmente, em Cacilhas), faleceu em Lisboa em 1929, a poucos meses de completar 72 anos. Estudou pintura e desenho na Academia de Belas-Artes de Lisboa, onde foi aluno de Miguel Ângelo Lupi.
Apesar de popularmente menos famoso do que o seu irmão Rafael, pela maneira de ser muito menos “mundana”, pela temática que particularmente o atraiu, o retrato (e, secundariamente, os temas históricos e as naturezas-mortas), e por todo um modo extremamente subtil de nos “dar” as suas personagens, e os ambientes geralmente obscuros, íntimos, fechados, de que elas emergem, Columbano é o nome de uma paleta infinda.
Paleta muito subtil e refinada, de efeitos, e de emoções estéticas que nos são por ele proporcionadas, no diálogo demorado e mudo do nosso olhar com o olhar e/ou o gesto dessas personagens – e atmosferas que habitam – e que a partir dos seus quadros nos olham ou, pela sua presença, sempre nos interpelam. Nomeadamente nos retratos, as pessoas parecem sair da escuridão do fundo, para virem ao encontro de quem as visita… presenças espetrais, mas muito “vivas”, e inquietantes. É nisso que a arte se distingue da “decoração”, ou “ilustração”… ela não representa algo, ela apresenta, e sempre de forma estranha, inesperada, perturbante.
Também por isso, mas mais em geral, falar sobre a obra de um artista é uma audácia enorme, votada de antemão ao fracasso. Porque não nos acercamos nunca de uma “verdade” desse artista (ou daquilo que ele tratou), a qual ele próprio, certamente, se escusaria a enunciar, ignorando-a.
Nem pela via da caracterização psicológica, nem pela sua integração num contexto social ou histórico, nem pelas “habilidades retóricas” do crítico, ou das metodologias refinadas do historiador de arte, conseguimos ir muito longe; temos de passar certamente por esses enredos todos, para finalmente nos desenredarmos e olharmos de novo para as imagens.
E através delas tentarmos fixar, nalgumas frases, por que motivo elas nos terão levado a sobre elas incidir a nossa atenção: pelo menos num curto texto impressionista como este. Essas imagens chamam-nos, captam-nos. Assim, a grande obra de arte furta-se sempre à “explicação”, deixa sempre o sujeito no embaraço de não saber onde colocar o objeto precioso que se lhe depara. O melhor é “intrometer-se” nesta ou naquela cena, como se à mesma pertencesse, e nela deambular. Tentar não a ver de fora…como um objeto. E entregar-se à precariedade e incompletude da experiência…
Entro por exemplo no “Concerto de amadores” (também conhecido como “Soirée chez lui”, porque foi feito em Paris para ser exposto num Salon dessa cidade, em 1882, e daí as suas relativamente grandes dimensões: 220 X 300 cm.) É uma obra que poderia ter sido concebida em Lisboa, ou em qualquer outro lugar (real ou imaginário, claro) onde a intenção fosse apresentar um ambiente “fechado”, uma sala com um piano, e cinco personagens inteiramente polarizadas pelo que ali as junta, a música: o que uma delas – o pianista vestido de preto – dedilha nas teclas, com uma pauta à sua frente, estando as restantes de pé, e duas delas segurando outras tantas pautas, para acompanharem o piano, cantando. A harmonia das figuras é marcada por essa linha invisível, superior, que vai descendo sobre as figuras da esquerda para a direita, onde o pianista está sentado, e o seu braço se distende ligeiramente para alcançar a tecla pretendida. Esse é o ritmo do quadro.
Não sei que composição musical ali os junta, mas estou certo de que não deram pela minha intrusão, tal a concentração intimista da cena, propícia à fruição da obra que juntos constroem. Destaca-se o referido gesto do braço direito do pianista, ao centro do quadro um dos cantores, uma figura masculina de barriga proeminente e colete claro e, atrás dele e para a sua esquerda na obra, a de uma jovem esbelta de vestido longo, com saia de cetim, de pregas acentuadas. Este motivo feminino é o mais iluminado, ou pela cor destacado, da cena, tão ao gosto de Columbano, Vemos no piano uma vela que dá uma luz ténue, que todavia parece refletir-se no rosto da rapariga que está mais perto do instrumento; e à esquerda do quadro um jarrão sobre peanha alta, na qual se reflete também uma pequena mancha luminosa.
Imaginamos que para o lado de cá, no ponto da sala em que se encontra o observador, não situado de frente, mas um pouco de viés, para a esquerda do que ali se passa (lugar que o pintor escolheu para o seu, e nosso, olhar) haveria outra luz, que poderia espelhar-se na figura da cantora feminina, e secundariamente e de forma muito ténue no jarrão, além de contribuir para iluminar um pouco as pautas do lado direito, umas sobre uma otomana, outras tombadas no chão, num desalinho harmónico.
Toda a cena desta obra-prima está concebida de uma forma que nada tem a ver com qualquer academismo representativo, de contornos nítidos nas formas, mas tudo antes se esbate, e por vezes se confunde, numa atmosfera fechada, em mancha escura, concentrada sobre a ação das personagens, rodeadas de um mínimo de objetos “decorativos”, numa conceção livre e moderna, impregnada de intimismo e de sábia economia de meios, por forma a centrar a nossa atenção na cena musical e, adentro desta, no gesto do pianista, por um lado, e, por outro, na esplendor da figura feminina da cantora, e seu vestuário.
Este último de algum modo insinua, pelo movimento fixo do seu pregueado quase metálico – como os observadores têm acentuado -, o prazer proporcionado pela beleza da música que ali flui e ali se encena. Repare-se que na distribuição da escassa luz, sobressaem, para além do imagem da cantora, todos os elementos que dizem direto respeito à música, sempre de forma sóbria, meramente sugerida, ou seja, as pautas. Porque de facto é a música o “tema”, forçosamente mudo, deste quadro.
Acerquemo-nos, agora, de uma outra obra, totalmente diferente, e até, dir-se-ia, muito menos “típica” do pintor, porque representando uma mulher ao ar livre, num caminho rodeado de vegetação, quando se sabe que o gosto de Columbano era sobretudo pelos ambientes fechados e algo “sombrios”: “A Volta do Passeio”, de 1880. Na opinião de Pedro Lapa (cf. Catálogo da exposição sobre Columbano, referente à 1ª fase da sua obra, 1874-1900, Museu do Chiado- MNAC, 2007, p.21) a moça estaria regressando do Passeio Público de Lisboa, que antecedeu a Av. da Liberdade, inaugurada poucos anos depois, em 1886.
Essa atitude, já referida, de quase toda a sua imagética, avessa ao ar livre, tão virada para os retratos e, mesmo neles, quase fazendo as pessoas emergir de um fundo escuro ou de um vestuário muito esbatido, ia a contrapelo da tendência, que então se verificava, para sair dos estúdios, ir para a “natureza”, representar cenas iluminadas, incluindo costumes populares, etc.
A Columbano pouco importava tal tendência naturalista, de representação da vida popular, ou considerada mais pretensamente “realista”, no sentido corrente. A sua maneira de trabalhar era a de focar não grandes ou pequenas paisagens, ou ambientes muito povoados, abertos, ou ruidosos, e sim antes a de se concentrar em motivos mais específicos; porém, nunca da maneira academicista tradicional: o seu realismo consistia no interesse pelas pessoas, quer no seu rosto, quer no seu gesto: no seu enigma peculiar, no seu mistério, na presença desse “familiar estranho” tão bem caracterizado por Freud, que toda a realidade tem.
Para isso não é preciso ir muito longe. Daí também a sua aversão a Paris, onde, como é sabido, acabou por estagiar, sem grande gosto, mas não sem proveito, pelas muitas vezes que visitou as obras do Louvre, ou do antigo Musée du Luxembourg, pelos contactos com professores… mas foram anos em que acabou por produzir pouca coisa)
E essa vontade de compreender, à sua maneira, o que está próximo, nota-se também nesta obra de 1880. Porque os elementos “naturais”, vegetais, aqui estão dados de um modo absolutamente convencional, a grandes pinceladas, como um puro enquadramento que circunda a figura feminina e sua atitude, segurando na saia, virando a cabeça de lado como que encenando estar algo contrariada por aceitar posar para o pintor, interrompida na sua digressão por um “campo” em larga medida imaginário, lisboeta afinal.
Ele, artista, podia bem ter tratado o mesmo tema no interior de uma sala (descontados eventualmente a sombrinha, o chapéu, o xaile de passeio). E o tema é o da figura feminina que de algum modo, na sua face, dada apenas de modo genérico, se furta ao olhar do pintor, ao mesmo tempo que se deixa mirar e reproduzir imageticamente. Não há pois, aqui, a intenção de “traduzir” uma personalidade, uma singularidade, uma “psicologia” própria ao retrato. Aqui estamos perante outro intento, parece-me: trata-se apenas desse gesto tão feminino, num mundo intensamente patriarcal, de se furtar a um primeiro “avanço” do olhar frontal do homem.
É certo que o modelo era uma irmã do pintor, mas aqui, ao contrário de um retrato individual, o que conta é o seu gesto tipificado de mulher. É uma pintura já inteiramente moderna, longe de qualquer descrição pitoresca, ou de costumes, mas que na harmonia do jogo das cores fixa um momento, como numa fotografia instantânea, atraindo-nos sobretudo pelo gesto da personagem, muito sugestivamente subtil.
“Nunca pintei ao ar livre, porque nunca me apeteceu…”
Um dos grandes amigos de Columbano, que desde cedo percebeu a sua genialidade e muito fez para o ajudar e promover, foi o crítico Jaime Batalha Reis. Margarida Elias explica-nos isso bem no texto que escreve para o Catálogo da 2ª grande exposição sobre o pintor no MNAC, ou do Chiado, realizada em 2010 (pp. 25-35). Em carta a JBR, datada de setembro de 1909, escreve-lhe Columbano, a respeito de uma possibilidade de expor em Paris, mas para cuja concretização seriam necessárias algumas pinturas mais ao gosto da época. “Nunca pintei ao ar livre, porque nunca me apeteceu, e olhe que estive em Paris no período mais aceso desse género de pintura (…). Um dia vou tentar alguma coisa nesse sentido apesar de já não estar em idade de seguir um rumo diverso das minhas predileções, pois nunca me encontro à luz do ar livre.” (op. cit., pp. 30-31).
Falava assim um apaixonado por Velázquez, que tardiamente pôde observar no Museu do Prado…ou pelos clássicos flamengos, influência que já vinha do pai; um artista para o qual a preferência pelo trabalho de “atelier”, ou de interiores, nada tinha que ver com academismos e convencionalismos tradicionais, mas antes com uma, muito sua, maneira de ser “moderno”, de que nunca abdicou.
Evidentemente que a figura de Columbano é também a de uma personalidade em transição do século XIX para o XX (e da monarquia para a república, sendo aliás um dos autores da nova bandeira nacional por esta última consagrada). Não procuremos ver nele o que não foi, ou não quis ser. Além disso, todo o ser humano está cheio de contradições, e de múltiplas facetas, e um artista pode mesmo ir fazendo a partir delas o seu “estilo” próprio, à medida que desenvolve o seu trabalho, e segue o seu desejo, em termos estéticos e expressivos.
Sabe-se como, vencidas muitas resistências, só numa fase avançada da vida de Columbano o seu génio foi amplamente reconhecido, e recompensado: uma circunstância não incomum em Portugal.
Um génio algo solitário, deambulando entre o seu atelier, as suas aulas na Academia de Belas-Artes de Lisboa, e o seu Museu Nacional de Arte Contemporânea, museu que acabou por dirigir, com muito empenho, quase desde a sua fundação. Helena Barranha, no texto que escreveu para o catálogo de 2010 já referido (pp. 118-128), caracteriza bem isso, ao citar logo a abrir esta descrição de Diogo de Macedo sobre o pintor (p. 118): “Columbano limitara sempre o seu mundo ao bairro. Em Lisboa, entre o Chiado e a Praça da Alegria; em Paris, entre Montparnasse e o Luxemburgo. Delimitava fronteiras aos próprios passos e interesses. Vivia no convento e contentava-se com a cerca. Ao passear nesta, velava a vista com a luneta escura, por causa da luz que lhe magoava a harmonia dos tons.”
De facto, Columbano radicou-se naquele espaço do antigo Convento de S. Francisco; mas não foi propriamente um “monge”, mantendo relação com diversas personalidades da época, várias das quais, sobretudo do mundo intelectual, retratou. E, pertencendo embora ao “Grupo do Leão”, que tão genialmente imortalizou, foi uma figura à parte, com um percurso estético muito pessoal; esse grupo era, aliás, heterogéneo, apenas o unificando uma certa reação contra o academismo tradicional, ensinado ainda por muitos professores, e o facto concreto dos seus membros terem o hábito de se encontrar na cervejaria Leão de Ouro, na rua hoje designada do 1º de dezembro, na baixa de Lisboa.
Mas foi reconhecido pelos seus contemporâneos, como disse, embora já um pouco tardiamente, é certo. Expôs e foi premiado no estrangeiro, graças sobretudo ao empenho de Batalha Reis. Casou com Emília Bordalo Pinheiro (que viria depois a oferecer ao Estado – MNAC, do Chiado – um importante conjunto de peças da sua obra). Retratou inúmeras figuras da vida social e intelectual portuguesa, como Bulhão Pato, João Rosa, Luz Soriano, Miguel Bombarda, Soares dos Reis, Raul Lino, Trindade Coelho, Teixeira de Pascoais, Viana da Mota, Raul Brandão, Batalha Reis, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Antero de Quental (esta, uma obra particularmente genial), entre muitas, muitas outras…
Pintou também painéis para interiores, como os que se encontram no Palácio de S. Bento, no Palácio de Belém, nos Paços do Concelho, no Palácio das Necessidades, no Teatro Nacional D.ª Maria II, no Museu Militar, ou no atual hotel Lapa Palace, no seu tempo um palácio, etc.
Homem muito menos abertamente sociável do que seu irmão Rafael, como aludi, o que evidentemente se reflete na sua obra, o nosso pintor esteve longe de viver afastado do mundo. Mas foi um artista muito original. Como por exemplo escreve Maria Aires Silveira para caracterizar isso mesmo (catálogo citado, da exposição do MNAC de 2010, pp. 200-201): “Decorrente de um realismo estrutural percetível em toda a sua produção, Columbano combina a coexistência da objetividade com um intimismo pintado do interior, em instantâneos marcados por uma subjetividade expressiva, intencionalmente ajustada aos impulsos imaginários do real.”
Diretor (a partir de 1914), como referido, do Museu Nacional de Arte Contemporânea, fundado pela República, este era a sua segunda casa. É certa a ideia de que nas aquisições conseguidas para o Museu foi mais inovador na escultura do que na pintura. Nesta, opunha-se à sua orientação a geração “modernista”, que costumava reunir-se na Brasileira do Chiado, e onde pontificavam homens como Amadeo de Souza-Cardozo, Almada Negreiros ou Jorge Barradas: outras e renovadas atmosferas, como acontece sempre. Mas era então num mundo miniatural – o destas disputas, figuras e movimentos – que se concentrava sobretudo no centro da capital… ainda largamente provinciana, que quase tudo se passava…
Columbano não sobreviveu muito à sua reforma como diretor do museu, ao completar 70 anos em 1927, o que lhe causou acentuado desgosto, apesar de ter permanecido como diretor honorário, cargo puramente honorífico… o que contribuiu para que acabasse por falecer pouco depos, em 1929.
De referir ainda que, para quem, estimulado por estas notas, queira conhecer melhor o autor e sua obra, há, como seria de esperar, numerosa bibliografia, salientando-se por exemplo Margarida Elias, que dedicou bastante do seu trabalho ao estudo de Columbano, nomeadamente através de uma tese de mestrado (2002), depois prolongada na de doutoramento, de 2011, “Columbano no seu Tempo (1857-1929)”, apresentada (como a de mestrado) à FCSH da UNL e disponível aqui.
Este meu magro texto é apenas um minúsculo “aperitivo”… mas um aperitivo sem o qual não se pode, como muitos outros, degustar Lisboa… suas figuras, seus lugares, suas infindas memórias: sua riqueza.
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