Crónica

Sofia Tomás

Fazer ou não fazer pendant com os cortinados: eis a questão

7 de Junho, 2023

Tempos houve em que Sofia Tomás, jurista, trabalhou numa galeria de arte lisboeta. Uma profissão para a qual afirma não ter sido talhada mas que, ainda assim, lhe deixou várias episódios inusitados (e espirituosos) para contar. 

Este ano não consegui ir ver a ARCO na Cordoaria Nacional, o que me causou pena, não só porque estavam expostas obras de alguém que conheço (a Maria Condado) mas porque, em outra vida, trabalhei numa Galeria de Arte e há sempre coisas que ficam, neste caso o apreço pelas Artes Plásticas. Posso não ter herdado os dotes da minha mãe para a pintura (nem a propensão para alergias) mas a beleza exerce a sua magia até em quem é incapaz de desenhar uma linha reta, mesmo com régua e esquadro. 

Quanto ao meu trabalho na Galeria, ser vendedora é uma daquelas coisas para as quais não fui talhada, por isso as comissões não tinham grande expressão no que ganhava. E o que ganhava não era muito. Mas nos tempos mortos em que não entravam clientes aproveitava para ler, ler e ler. Ainda não tinha telemóvel com internet e estava muito longe de saber o que eram redes sociais. Não havia vídeos do Bruno de Carvalho a cantar e “dançar” kuduro ou notícias sobre a depilação íntima da Cristina Ferreira, pelo que a minha devoção à literatura era em regime de exclusividade.

Nesse trabalho aprendi algumas coisas sobre artistas plásticos portugueses e especialmente a não ser fã das obras do Manuel Cargaleiro, a especialidade da casa, por assim dizer. Desse autor tínhamos imensas serigrafias e alguns originais (um guache do tamanho de uma fotografia 10×15 custava cerca de 12 vezes o meu então ordenado) e a minha impressão era que tudo era feito em série, sabendo-me tudo ao mesmo, mais quadrícula menos quadrícula, mais azul menos azul.

Quanto às serigrafias de que realmente gostava, destaco a série dos bichos do Júlio Pomar (dele havia também uma despudorada e enorme serigrafia, a preto e branco, que mostrava um casal em pleno ato sexual e que, apesar de ser demoradamente examinada pelos clientes, nunca chegou a ser vendida), as cabeças com carrapitos da Graça Morais, a fase de Goa do Júlio Resende, as paisagens em modo míope do Noronha da Costa e a “Quitenda” da Vieira da Silva.

Também passaram pela Galeria alguns rabiscos a esferográfica azul do Pomar, de diminuto tamanho (eram folhas de blocos de notas, daqueles que cabem no bolso), que ostentavam vultos verticais e esbatidos de pessoas na praia, um carvão da Paula Rêgo, de uma surpreendente serenidade, no qual uma mulher gorda e de meia idade varria o chão com uma vassoura de ramos e, ainda, quadros e esculturas em papier mâché da fase mexicana do José de Guimarães.  Deste autor tínhamos um quadro onde em tons de verde, preto, branco e vermelho, aparecia uma espécie de anão, dividido verticalmente pelas cores, com uma máscara de caveira alusiva ao Día de los Muertos e ostentando um desproporcionado, vermelho e ereto falo. Era o deus Príapo na versão mexicana.

Além do espião da concorrência, que dia sim, dia não, cirandava pela Galeria, o quadro chamou a atenção de um distinto professor universitário, senhor dos seus cinquenta anos (eu estava com vinte e seis, à altura), de cabelo branco e bonitos olhos azuis. Se me pusesse com paninhos quentes diria que foi o desregramento da obra que o fascinou, algo no limbo das pulsões vida/morte tão bem captado pelo artista, mas sendo franca acho que foi mesmo o falo. O certo é que o Professor passou várias vezes para namorar a figura e um dia, face à insistência do sócio-gerente da Galeria (os sócios maioritários eram do Norte e estavam ligados à construção civil), acabou por levar o quadro para experimentar se ficava bem na sua sala. E eu tive de ir com ele, como guardiã do tesouro impudico. Senti-me incomodada com a situação, porque na minha imaginação havia um clima sexual – não desejado por mim – a banhar tudo aquilo. A imaginação desregrada será sempre o meu calcanhar de Aquiles.

O Professor abriu-me a porta do carro, atitude cavalheiresca e desusada, e seguimos para a sua casa, ele calmo e eu apreensiva. Quando chegámos a porta do elegante apartamento foi aberta por uma empregada idosa e fomos diretos à sala de estar. Olhei fascinada para um armário onde estavam expostos delicados objetos de vidro, de várias  tonalidades. Explicou-me que eram vidros de Murano.  Devia ter percebido nesse instante que estava a salvo e que o facto de não ser efeminado não excluía a probabilidade de gostar de Príapos mas a empregada sumira-se e eu sentia-me vulnerável. 

Ele dirigiu-se à chaminé, tirou o quadro agradável e inócuo que estava por cima da mesma e colocou o Guimarães. Na atmosfera seleta da sala o quadro com o falo vermelho parecia ainda mais debochado. Bastou-me imaginar a senhora de idade a limpar-lhe o pó para me dar uma enorme vontade de rir, que a custo controlei. O cavalheiro contemplava, por um tempo que me pareceu exagerado, a inserção paisagística da obra e por fim disse que ficava com ele e levou-me mais ao quadro de volta à Galeria. Quando cheguei ao meu local de trabalho o Gerente encontrava-se a fumar as suas eternas cigarrilhas enquanto a esposa e a minha colega fumavam cigarros, atrás de cigarros. O bigode cinzento-amarelado do Gerente parecia conter-se para não sorrir e falou-se de preços, atençõezinhas, pagamento a prestações e o negócio ficou concluído. O falo vermelho iria adornar a lareira e impressionar (favorável ou desfavoravelmente) os visitantes.

Quando o Professor se foi embora o Gerente (que só via dinheiro à frente), a esposa (que era fã de casinos e de férias na República Dominicana onde esturricava a pele) e a minha colega troçaram da situação, dizendo que eu tinha atraído um pretendente rico e apreciador de arte erótica. Eu estava aliviada de, no meu entender, ter saído ilesa daquela situação hipersexualizada e não achei muita piada a ser alvo de troça.

Mais tarde o Professor voltou à loja para pedir o certificado da obra. O Guimarães demorou a assinar a fotografia que serviria como documento de reconhecimento. A desculpa era que o artista estava no estrangeiro e incontatável. A situação ficou tensa e nem toda a lábia do Gerente fez com que depois de resolvida a questão do “certificado” o Professor voltasse a comprar obras à Galeria.

Sempre que passo na rotunda ao pé da Expo e reconheço as formas fálicas da escultura do Guimarães aí colocada (um Príapo voador como símbolo da Liberdade? Acho que não sou a única com imaginação desregrada…) lembro-me dessa história.

Pergunto-me se o quadro ainda estará em cima da lareira, em posição de destaque, fazendo com que quem aí chegue se sinta embaraçado/excitado ou se o professor ganhou juízo e comprou um discreto e aborrecido Cargaleiro azul, a fazer pendant com os cortinados.

ARTÉRIA

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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