“A participação cívica é maior nas comunidades mais carenciadas de Lisboa”

7 de Junho, 2022
Iniciando mais um mandato como presidente da Rede de Desenvolvimento Local de Base Comunitária (DLBC) de Lisboa, Rui Franco olha o futuro com otimismo. Habituado a ver como a união de vontades das pessoas dos bairros mais pobres da capital lhes muda a vida para melhor, aponta a mais ambiciosos objetivos.

Entrevista

Samuel Alemão

Trabalhando em zonas de Lisboa com carências socioeconómicas, a rede DLBC pretende aumentar a empregabilidade e a qualificação escolar, bem como erradicar a pobreza geracional. São objetivos muito ambiciosos…

Rui Franco (RF): Pois claro, é para isso que estamos aqui. Se fosse fácil, não valeria a pena estarmos aqui.

É possível verificar se esses objetivos, desde o início da criação da rede, estão a ser cumpridos?

RF: Sim. É um modelo não tradicional de promover o desenvolvimento, o progresso e a justiça social. Para além de alguns ensaios que, desde 2015, foram dados com passos importantes historicamente, o programa de financiamento, finalmente, está a produzir impactos, resultando na atribuição de financiamento a 34 projetos de intervenção de base local. Promovidos, portanto, por organizações sem fins lucrativos, a quem foram atribuídos 5,1 milhões de euros. Por exemplo, na área de emprego, estamos a falar na criação, em média, por cada 50 mil euros de financiamento atribuído, de dois postos de trabalho permanentes locais junto desta população. Para além de todos os outros impactos não menos importantes. São postos de trabalho que depois ficam, tornam-se sustentáveis. Muitos dos postos de trabalho criados são-no para além daqueles necessários à gestão do projeto.

O que é que a cidade ganhou com o vosso trabalho?

RF: Há uma mudança de governança, que acho fundamental, até porque se demonstrou muito mais eficaz do que os modelos de intervenção tradicionais. Que passa por capacitar e atribuir recursos às próprias organizações representativas de cada comunidade, para resolverem os problemas dessa comunidade. Isto vai desde a falta de qualificações, ao abandono escolar, ao desemprego, à falta de rendimentos, aos diversos fatores de pobreza e de exclusão. Os três eixos de ação da rede são o emprego, a educação e a inclusão. Quando falamos de inclusão, estamos a falar de, transversalmente, trabalhar nas outras áreas, mas com públicos particularmente vulneráveis. Um dos projetos centrais da rede, com financiamento europeu específico, foi há três ou quatro anos, criando um consórcio europeu com universidades e organizações de base local com proximidade com as comunidades ciganas pela Europa. Cientificamente, identificámos que muito do insucesso e do abandono escolar precoce, em particular nestas comunidades, tem uma corelação muito estreita com distúrbios não diagnosticados do foro da dislexia. O que nós produzimos, e pusemos à disposição das associações de pais e outras, foram instrumentos de diagnóstico e instrumentos de adaptação dos programas curriculares para ultrapassar as dificuldades de aprendizagem dos jovens diagnosticados com esses distúrbios. E o impacto objetivo na redução do abandono escolar e do insucesso escolar foi profundíssimo. Está a ser profundíssimo.

É quantificável?

RF: Está a ser quantificável. Embora hajam processos destes que, por irem tão à causa do problema, demoram anos a ter impacto objetivo. Conquistar a confiança com jovens que estão no sétimo ou no oitavo anos…

É difícil?

RF: Não, porque é feito pelas organizações deles, como a do futebol de rua. Nesse caso, trabalha com eles todos os dias, conquista esses laço de confiança e de solidariedade através do desporto. Mas depois trabalha com eles todos os dias no apoio ao estudo, para que eles, não só não deixem de estudar, como tenham boas notas, cumpram o novo ano, continuem até ao 10º, 11.º, 12.º e que, depois, de forma absolutamente revolucionária nestes bairros, entrem no ensino superior e o completem com sucesso. A Futebol de Rua, nos últimos 11 anos aqui no bairro, conseguiu levar o primeiro residente do Bairro Padre Cruz, que tem oito mil habitantes, a concluir uma licenciatura.

Uma grande conquista, até em termos simbólicos…

RF: É, claro. Agora, a expectativa é que, todos os anos, num sítio onde nada disto tinha existido, dezenas de jovens que seguem este exemplo e que continuam a ser acompanhados…Do ponto de vista do emprego, a inclusão de uma forma genérica, do apoio à criação de pequenos negócios, de rendimento…

Têm a ideia de que do lado das pessoas das comunidades onde intervêm existe a perceção de que estão a conseguir ter resultados? De que vale a pena juntar esforços…

RF: Claro. Este ecossistema de centenas de associações que são nossas associadas, e que participam na gestão da rede DLBC Lisboa desde 2015, acontece depois de anos de experiência, de crescimento e de maturidade, que foi passando a ser construída a partir do programa BIP/ZIP do município de Lisboa. E, portanto, já tinham tido oportunidade, nos anos anteriores, de ensaiarem projetos deste género, mais de pequena escala, com ciclos muito curtos, anuais, e que agora, com estes financiamentos pesados da rede DLBC, vão muito mais fundo e com uma estabilidade de vários anos nas intervenções.

Existe aquele discurso muitas vezes veiculado de que, em Portugal, temos uma sociedade civil fraca e que as pessoas têm que participar mais. Sente que nestes bairros é mais difícil?

RF: Não, é mais fácil. A mobilização e a solidariedade de quem vive em piores condições é, do ponto de vista sociológico, muito mais ativa. Por habitante, nestas zonas carenciadas de Lisboa, o associativismo é claramente muito mais forte, presente e ativo do que nas zonas menos carenciadas.

Isso apesar de prevalecer um discurso, no espaço público, algo preconceituoso em relação a estes territórios. Subsiste em muitos sectores da sociedade a ideia de que essas pessoas não se querem integrar, não querem trabalhar, não querem estudar.

RF: A realidade não é una. Estamos a falar, grosso modo, de um terço da cidade de Lisboa. Trabalhamos de forma direta com 150 mil habitantes de uma cidade que tem 500 mil. Quando digo que não é una, é que tem tipologias de perfis de carência bastantes distintos. Mesmo dentro dos bairros municipais, há distintas realidades, pelo número de gerações que já cá viveram. Ou seja, os bairros mais antigos já são sociologicamente mais estabilizados e diferentes das grandes concentrações que foram só do PER, nos anos 90. Nesses casos, ainda só estamos na primeira ou na segunda geração. Um indicador claro é a taxa de envelhecimento. E os problemas também são diferentes. Estamos a falar de níveis de educação, de níveis de rendimento, de exclusão social distintos. Têm perfis diferentes. Estamos a falar, grosso modo, daquilo que seria a habitação pública, que é mais ou menos metade destes bairros mais carenciados de Lisboa.

Mas existe essa perceção nas pessoas da comunidade de que são olhados pelos resto da cidade de uma forma diferente ou não?

Sim e não. Quanto maior é a dimensão do bairro ou zona, mais isolado ele fica. Num bairro como o Padre Cruz, com perto de oito mil habitantes, todo o agrupamento escolar é exclusivamente deste bairro. Os jovens deste bairro estão numa escola onde a perceção que têm do mundo tem que ver com aquele contexto, onde as expectativas de ultrapassar o nono ano, de chegar ao fim do secundário estão muito longe, porque não são expectativas de ninguém no contexto escolar onde se movem. Já em territórios mais pequenos, perto de Alvalade, onde se misturam com populações com outros níveis de rendimento, a forma de intervir e a relação entre estes jovens é muito diferente. Portanto, o grau de isolamento é muito diferente. Nesse caso, não é difícil desafiar um jovem ou uma jovem que terminou o seu percurso escolar a ir a uma entrevista de emprego num restaurante na Avenida da Igreja. Aqui no Bairro Padre Cruz, a dimensão do isolamento e a bolha são tão fechadas que o próprio não se sente à vontade para ir a uma entrevista de emprego em Telheiras. Não estou a exagerar…

Isso ainda existe?

RF: Ainda existe, sim. Não estou a dizer que é só de fora para dentro, também é de dentro para fora. Toda a estratégia DLBC parte de um pressuposto económico, que é difícil de traduzir em miúdos, mas que é o de não se resolver os problemas destes bairros sem intervir, sem alterar, a balança comercial à escala micro. Ou seja, se o rendimento médio do Bairro Padre Cruz são 300 euros por habitante, por mais trocas, por mais comércio que haja interno, o rendimento vai ser sempre 300 euros. Tal como na escala da economia de um estado, para gerar riqueza é preciso de aumentar os níveis de produção interna, aumentar a exportação e reduzir a importação. Traduzindo isto, é, por exemplo, o ginásio que aqui existe criar emprego aqui, aumentar os salários dessas pessoas, porque vão ter como clientes pessoas que vêm de fora e têm um poder de compra diferente. Outra possibilidade passa por trazer turistas, fazer com que não fiquem fechados na Baixa e que explorem também estes territórios, estes serviços e tragam receita para estes territórios.

O objetivo é, portanto, que essas diferenças sejam esbatidas…

RF: Todo o objetivo é que os diversos indicadores de desenvolvimento da cidade sejam os mesmos aqui. Por exemplo, nos territórios DLBC temos uma taxa de desemprego dez vezes superior à média da cidade e uma taxa de qualificações dez vezes inferiores ao da cidade. O objetivo estratégico, a missão da rede, é que toda a cidade tenha uma coesão sócio-económico-territorial, que deixem de haver estas bolsas de pobreza dentro da cidade, criando raízes na economia e tornando-a mais justa e distribuída. Isto não se resolve com remedeios, mas sim compreendendo as causas e corrigindo as causas dos problemas, como, por exemplo, os défices de educação.

Referia que a participação cívica nestes bairros é superior à da média do resto da cidade. Nestas zonas, também se sente isso ao nível dos orçamentos participativos, quer o municipal quer os das freguesias?

RF: Sem dúvida e de forma absoluta, mas com algumas nuances que podem fugir ao observador incauto. As pessoas participam, mas depois observamos que o grau de iliteracia digital é muito grande. Quando os mecanismos são exclusivamente digitais, vê-se que as pessoas conseguem participar menos. Nos projetos aprovados no verão de 2020, o voto aqui neste bairro foi feito com um boletim com código individualizado colocado em cada caixa do correio, com as pessoas depois a votarem nos projetos através de um sms simples gratuito. E aí a participação foi relevante.

Os conselhos ou assembleias de cidadãos, como o agora criado por Carlos Moedas – era uma das suas promessas eleitorais -, podem ser uma boa ideia para melhor se chegar a consensos na governação da cidade? Ou vêm trazer mais ruído?

RF: Todas as formas de auscultação popular são, na minha opinião, bem vindas e úteis. Agora, como estava a explicar, a capacidade de literacia e de participação é muito distinta de território para território. Na nossa opinião, novas formas de participação não podem substituir outras de forma a assegurar que se é ouvido e é dada oportunidade de participação efetiva a toda a população e não, por modelo de participação, se filtre ou se dificulte involuntariamente a participação de todos os que precisam de ser ouvidos. A rede trabalha com os públicos e as comunidades mais difíceis, com mais dificuldades de acesso, nos bairros mais isolados, com menos acesso às novas tecnologias. Do lado da rede, só podemos elogiar mais formas de participação, mas fazemos o alerta de que umas não substituem as outras.

Na última década, tem-se assistido ao crescimento da atratividade internacional de Lisboa, com o correspondente aumento das rendas e a saída de moradores tradicionais. Isso pode pôr em risco o espírito comunitário?

RF: A abertura da economia tem grandes oportunidades, mas também riscos. Isto é verdade à escala do bairro, como da cidade e também do país. A receita turística é uma vantagem dessa abertura, a liberdade de movimento de capitais dentro da Europa provocará uma aproximação dos preços. Tem é que haver inteligência para maximizar os proveitos e minimizar ou compensar os impactos negativos dessa abertura económica. O que a rede se propõe a fazer no âmbito do próximo quadro comunitário, que vai até 2030, é alargar também o seu âmbito de intervenção – desafiando as instituições europeias e as entidades nacionais de gestão dos fundos comunitários -, passando a intervir também na área da habitação. Como é que a rede pode fazer isto? Com toda a experiência que tem de apoiar a criação e a gestão e atribuir competências às pessoas que se juntem para, por exemplo, construírem a sua própria habitação…

Estamos a falar de um sistema cooperativo?

RF: Uma cooperativa de inquilinato, por exemplo. Propomo-nos a fazer isso. Ensinar e apoiar pessoas a organizarem-se e a juntarem-se, e a serem parte da sua própria solução, em modelos que não sejam afetados por esses fenómenos resultantes da inflação nascidos da financeirização.

Mas há o risco objetivo de esse espírito comunitário se fragmentar?

RF: Eu ponho a coisa ao contrário. Torna mais importante ainda, numa economia aberta, que tem mais vantagens do que desvantagens, a criação de competências para que as comunidades se protejam e construam soluções sustentáveis para os seus diversos desafios, como o da habitação.

Isso faz parte dos maiores desafios dos próximos anos?

RF: Algo que está no plano de atividades da rede, e que deverá ser o programa de atividade da rede DLBC no próximo quadro comunitário, se não noutros locais pelo menos em Lisboa, é alargar dos âmbitos da educação, do emprego e da inclusão também para a digitalização, a transição energética e para a habitação. Face ao grau de maturidade atingido por esta federação de associações de Lisboa, queremos assumir responsabilidades coletivas do ponto de vista da estrutura para passar a intervir nessas áreas. Isso é perfeitamente possível, os modelos estão testados e temos força e empenho para abraçar esse desafio.

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