Crónica

Sofia Tomás

Um pátio alfacinha em Santos

6 de Fevereiro, 2023

Ilustração: Sofia Tomás

As relações de vizinhança numa cidade têm muito que se lhe diga. Sobretudo num local com características tão particulares como as de uma antiga vila operária lisboeta. A leitora Sofia Tomás recorda nesta crónica deliciosa e bem-humorada os tempos em que viveu num destes lugares, onde, por vezes, acontecem vivências…bem idiossincráticas. Tanto que só quando de lá saímos é que nos apercebemos da sua singularidade. Um relato em tom picaresco sobre uma certa realidade urbana em vias de extinção.

Vivi oito anos num Pátio ou Vila Operária em Santos. Dividia casa com as Ritas, as osgas e, por um breve período de tempo, com uma gata preta e branca que acabou por ser adoptada pelos meus pais. Digamos que…tínhamos horários desencontrados no que tocava a dormir. Foi a sorte da Amélie que passou a ter um gato preto como saco de pancada e donos com biorritmos mais próximos do seu.

Quando fomos para o Pátio, as obras estavam embargadas devido à denúncia de um inquilino, operário de construção civil, que sabia dessas coisas de licenciamentos urbanísticos. Mais tarde, descobri que também percebia de leis e tribunais. O vizinho em causa, Sr. Y., era adepto do vinho e de discussões com a mulher e tinha sido julgado num processo intentado pelo nosso senhorio no Julgado de Paz de Lisboa.

A sentença encontrava-se afixada no Pátio, para quem a quisesse ler e dizia respeito a barulhos excessivos, a animais de estimação à solta, sardinhadas realizadas nos Santos Populares e aos cheiros daí decorrentes e, ainda, a jogos de futebol no Pátio entre os filhos do vizinho e crianças amigas que ocasionavam riscos de janelas partidas. Na sequência da Sentença, veio a denúncia à Câmara, o avinagrar das relações e a cláusula constante no meu contrato de arrendamento que congelava o valor real da renda enquanto não fossem concluídas as obras.

O nosso senhorio, Sr. X., era uma personagem. Pequenino, sério, com óculos, de fato e gravata em ton sur ton cinzento, sempre muito educado connosco, mas destilando um ódio de estimação contra o pinguço “bizinho” (era assim que nos referíamos ao Sr. Y. que era do Norte, tinha um leve traço de gaguez e um bigode farfalhudo, como uma personagem dos “Gato Fedorento”).

Por duas vezes o senhorio arranjou-me o estendal da roupa preso à fachada da nossa casa, a qual, devido ao embargo, estava em reboco. Nela, as osgas andavam perfeitamente camufladas, salvo quando dançavam à noite em redor do candeeiro, tentando apanhar as moscas e traças atraídas pela luz.

Em troca da amabilidade demonstrada pelo Sr. X. e, a seu pedido, acompanhei-o à Repartição de Finanças por causa de uma embrulhada na qual, por sua culpa, me vira envolvida. Havia uma penhora da minha renda e da renda de outra inquilina, coisas de dívidas ao Fisco do Senhor X. por causa dum prédio devoluto em Alcântara com IMI majorado. Parece que eu e outra inquilina tínhamos sido notificadas para o mesmo efeito, o que levara ao pagamento da dívida em duplicado.

O Sr. X. apresentara uma reclamação com informações dos serviços de Urbanismo da Câmara que referiam que o prédio já não se encontrava devoluto, mas a mesma não aparecia registada no sistema informático. O funcionário que nos atendeu era um tanto ou quanto inflexível e frio e lembrava-me a personagem da “Little Britain” que dizia “The computer says no“. As coisas não estavam a correr bem para o Sr. X. e ele, com os nervos, começou a levar a mão ao peito e a pedir água com açúcar. Fiquei aflita com a situação, mas, mal se viu sozinho comigo, o meu senhorio acalmou-se e disse, com um ar absolutamente sereno, que estas situações tiravam uma pessoa do sério. Senti-me enganada pelo fingimento da criatura e quando o funcionário voltou com o copo de água e maus modos, não pude deixar de simpatizar com ele. Eu tinha tirado a manhã para aquilo?

Ao longo dos anos que passei no Pátio, fui tendo contacto esporádico com o Sr. X. e fui ouvindo o “bizinho” e a mulher aos gritos, numa história digna de telenovela, onde a senhora muito pequenina e redonda, de buço escuro e cabelo cheio de brancas, era acusada de ter amantes.

Quando decidimos ir embora do Pátio, o Sr. X. resolveu “soltar a franga”. Um dia veio à casa que íamos deixar com uma potencial futura inquilina e nem o reconheci. Trazia calças de ganga e t-shirt às riscas de várias cores, o cabelo grisalho pintado em tom chocolate, lentes de contacto às quais ainda não se habituara e que o faziam ter os olhos semicerrados e…divorciado. No fim da visita, disse-me que tinha pena de eu sair do Pátio, porque fora uma inquilina impecável e arrematou a conversa convidando-me para jantar “um dia destes”. Fiquei perplexa e, como não sabia como “descalçar a bota”, acabei por dizer que sim. Claro que, quando me enviou uma mensagem a tentar combinar a data, eu arranjei uma desculpa esfarrapada sobre ter iniciado uma relação há pouco tempo e que não estava disponível, etc.

Uma semana depois, fui com a minha irmã entregar-lhe as chaves da casa. Não queria ir sozinha, porque sentia-me embaraçada com a situação. O escritório da empresa era numa casa recuperada na Madragoa, onde nos disse que estava a viver temporariamente. Fez questão de nos mostrar a casa de banho que tinha uma sanita com um sistema para lavar as partes íntimas (o Sr. X. sofreria de hemorroidas? ), um chuveiro com luzes Led azuis e rádio incorporado. Eu e a mana permanecemos impassíveis, mas com uma enorme vontade de rir.

Mais tarde, o “bizinho”, que encontrei casualmente no autocarro 727, disse-me que o meu ex-senhorio começara a andar com a outra vizinha a quem tinha sido penhorada a renda. O Sr. X. investira em múltiplas frentes, ao que parece, mas fiquei feliz de ter encontrado alguém com quem dividir o chuveiro tecnológico de luzinhas e música do João Pedro Pais.

O “bizinho” e a família acabaram também por sair do Pátio, por isso deixei de ter notícias do Sr. X. durante algum tempo. Recentemente, soube que tinha falecido, que muitas das casas estão arrendadas a estrangeiros e que são feitas sardinhadas no Pátio na altura dos Santos Populares, sem que isso dê origem a ações no Julgado de Paz. Ao saber disso, senti que os tempos do Pátio ficaram definitivamente para trás e que não voltarei a ter vizinhas velhinhas que, da janela da casa em frente, para irritação da minha mãe, generosamente davam conselhos de como bem pendurar a roupa no estendal.

Contudo, às vezes, sonho que vou ao Pátio para tentar arrendar uma casa, mas no meu sonho o Sr. X. responde-me de forma sobranceira que estão todas ocupadas. Se calhar, há uma parte de mim que se arrepende de não ter aceitado o seu convite para jantar, a mesma parte que tem saudades das osgas e que não se importava de ser mantida por um construtor civil de cabelo pintado. Ou, se calhar, não.

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