Ana Ribeiro Nel escreve mais um crónica para o Artéria, desta feita abordando os vários planos e diferentes camadas que existem numa grande cidade como Lisboa. “Basta” estarmos atentos e ter vontade de sair na nossa bolha.
Por baixo da Segunda Circular há uma família de árvores que mora ao lado de carros estacionados. Sim, a cidade tem vários planos. Tiro fotografia de uma das folhas das árvores para mais tarde pesquisar a espécie e estou na dúvida entre dois tipos de acácias. Uma vez, nesta mesma zona de Benfica, dei uma moeda a um arrumador de carros e ele levou-a à boca e beijou-a, erguendo um pouco o queixo e fechando os olhos. Uma moeda não tem o mesmo valor para todos.
Mal começo a minha caminhada sou atraída por uma pastelaria requintada que tem bolas de Berlim em exposição, apresento-me ao balcão e hesito, mas como vou caminhar posso dar-me ao prazer de escolher uma doce tentação. Os funcionários estão sérios e vestem umas camisas engomadas de gola oriental. Enquanto eu peço um café e um bolo, o empregado que me atende repete o pedido a outro empregado que está na máquina só a tirar cafés.
– Passa a duas bicas, uma é cheia.
Saio animada da pastelaria ou talvez seja da dose de açúcar. Vejo um casal com os seus setenta anos a atravessar a passadeira, ele usa uma samarra e fuma, o seu fumo deixa um desenho no ar, ela veste uma saia de veludo verde, com collants e sapatos da mesma cor. Resolveu atravessar com o sinal vermelho para peões e agora espera do outro lado da estrada por ela.
Estas passadeiras são feitas para andar rápido, os seus segundos em contagem decrescente deixam-me nervosa.
Há uma loja que vende jornais e tem as primeiras páginas afixadas com uma ventosa na montra, há quem sustenha o passo para ler as gordas. A esta hora há pessoas apressadas que procuram chegar a algum lado, depois há aqueles que aparentemente não têm pressa, caminham de braços atrás das costas, há dois polícias que conversam enquanto andam e uma senhora que transporta um bebé num marsúpio que dorme porque leva as perninhas a balançar.
Um dos cafés tem mesas com toalhas de pano protegidas por uma placa em acrílico e lá alguém folheia o jornal, levando um dedo à boca. Algumas boutiques já têm roupa da coleção de primavera, de tons pastel, os manequins sem olhos nem boca. Encontro uma loja que tem dois serviços em simultâneo, esteticista e arranjos de roupa, enquanto se arranjam as mãos pode pedir para subir umas calças. Como ninguém se lembrou disto antes? Todo um universo por descobrir, talho e galeria de arte, farmácia e livraria (sim, porque ler pode ser um remédio).
Há prédios inteiros que têm todas as varandas transformadas em marquises, cortinas com as cores comidas pelo sol e silhuetas de objetos amontoados. Algumas varandas que resistem têm plantas e uma suculenta igual à minha está em flor.
Percorro a avenida do Colégio Militar até chegar ao terminal de autocarros, onde há uma pequena feira de produtos de viagem, todo o tipo de malas, dispostas por tamanhos e cores. Algumas das vendas também têm expostas perucas, extensões, missangas, toucas de cetim e produtos para o cabelo. Há homens a descarregar caixas de carrinhas e no meio das pessoas que esperam autocarro reparo que são mais as mulheres que levam sacos nas mãos. As mulheres e os seus sacos, como se o saco fosse uma extensão do seu ser.
A estrutura do terminal de autocarros tem sob o seu teto um grupo de andorinhas que faz alarido. A mim parece-me que é a natureza a avisar a cidade que a estação vai mudar. O inverno está a acabar.
Ana Ribeiro Nel é enfermeira há 20 anos, colaboradora do Artéria Lisboa desde o início. Apaixonada pela escrita e por Lisboa desde sempre. Assistam aqui ao vídeo com a sua história de vida.
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