O Encadernador de Livros

22 de Março, 2023

Reportagem

Vasco Oliveira
Jacinto Silva é encadernador há mais de 50 anos, numa pequena loja localizada no coração de Campo de Ourique, junto ao Jardim Teófilo Braga. A prova de que os livros são mais duros, resistentes e resilientes do que parece. Sobretudo, quando bem encadernados.

O soar da campainha alerta para a entrada de mais um cliente, que se depara com as inúmeras pilhas de livros, que parecem emergir por todo lado. Aberto há mais de seis décadas, este negócio de encadernação de livros é um dos poucos ainda existentes na cidade de Lisboa

“Aqui em Campo de Ourique eram cerca de três ou quatro”, diz Jacinto Silva. “A zona onde havia mais era no Bairro Alto, creio que chegavam a ser uma dezena de lojas deste género.”

Quis o destino que a encadernação fosse uma das disciplinas de oficina que teve durante o seu ensino na Casa Pia, em Pina Manique. Até hoje, admite não saber o porquê deste acaso, mas fez da arte de encadernar o seu ofício para a vida. Feita a formação foi trabalhar para esta casa, no bairro onde cresceu, acabando por tornar-se proprietário após a morte do antigo patrão. 

“Há muitos clientes que me pedem para não desistir”, afirma, explicando que mantém o negócio apenas para evitar a desocupação que a reforma lhe traria. Reconhece que, ao fim de mais de cinco décadas de trabalho, também ele merece o devido descanso, a verdade é que os “faça lá mais um ano!” dos clientes vão alimentando a vontade do experiente encadernador de 68 anos. 

Jacinto admite que antigamente havia mais trabalho, mesmo com a existência de vários negócios do género espalhados pela capital. Muitas das encomendas vinham de advogados, que tinham gosto em encadernar os livros da sua área. “Não havia nenhum advogado que não quisesse encadernar os seus livros”, confessa. Se formos a ver a quantidade de advogados que havia em Lisboa era uma grande fonte de rendimento”.

Para lá dos apaixonados pelo Direito, os diários do governo também atarefavam muito o negócio, assim como as atas dos municípios, que se mantêm até aos dias de hoje. Entre toda a variedade de pedidos, são estes que o artesão realça, não desvalorizando os mais “comuns”. 

Quanto aos pedidos atuais, diz que “há um pouco de tudo”, desde colecionadores, livros antigos, trabalhos oficiais, firmas de contabilidade, advogados e até trabalhos universitários. Confessa que lhe chegam pedidos de várias partes do globo, não só pela qualidade, mas também pelo preço do serviço, que é muito mais acessível. Quanto a clientes do bairro, o proprietário avança “que devem ser para aí uma meia dúzia deles”, sendo que a maioria da procura vem de fora. 

“As pessoas já voltaram a ler mais, começam a ter gosto em encadernar os seus livros novamente”. Revela ainda que “apesar da média de idades estar na casa dos 50” há agora muitos jovens a fazer soar a campainha de entrada da loja e a recorrer aos seus serviços. Até mesmo estudantes que pedem para fazer livros de fotocópias, pois “fica mais barato do que comprá-los”. 

“A maior quebra foi há cerca de dez anos, devido à transição para o digital. Agora as pessoas estão a voltar aos livros.”

“Há pessoas que gostam mesmo dos livros, do papel. Por isso, acredito que a encadernação nunca vai acabar”

É na cave da pequena loja que a magia acontece. Uma enorme mesa com ferramentas, algumas delas improvisadas, é o centro das atenções. O cheiro a cola é acompanhado pelo ruído de um pequeno televisor, no meio de todos os papéis e cartolinas que enchem o cenário.  

“O processo é simples e rápido”, diz. “O que demora mais tempo é a secagem, um livro no inverno pode demorar umas horas a secar”. Numa metodologia totalmente artesanal, começa-se por desfazer o livro, ou seja, separar as páginas da capa. De seguida, com recurso a uma máquina apelidada de “guilhotina”, as páginas são alinhadas e voltam a ser cosidas. Uma ferramenta improvisada ajuda Jacinto a assentar a lombada na capa. Após algumas pinceladas de cola, uma prensa garante que a capa ficou bem aplicada, restando esperar que tudo seque. 

“Para aplicar os títulos ou pormenores na capa tenho um dourador, em São Bento”, admite. “Apesar de ter ali as letras e os ferros, não consigo fazer tudo”, Confessa também que, por vezes, a esposa ajuda-o a desfazer os livros, uma das partes mais demoradas do processo.

Para Jacinto, uma das principais razões para a quase “extinção” desta área passa pela falta de interesse dos jovens em enveredar pelo ofício. “A falta de cursos também pode estar relacionada, antes havia uma maior oferta. Atualmente, algumas autarquias promovem pequenas formações de encadernação e existe uma ou outra fundação que também o faz”. 

Ao fim de mais de 53 anos, continua a passar a Ponte 25 de Abril todos os dias para estar durante diversas horas na sua oficina. E garante que “enquanto houver trabalho” vai estando por ali. 

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