Fotografias: Paula Ferreira
Assim como os trajectos experimentados pelas ruas de uma cidade definem percursos emocionais, também as deambulações de cada um pelas livrarias nela existentes cunham uma vivência peculiar. Evocando outras épocas, em que estes estabelecimentos abundavam em Lisboa, o leitor Vítor Oliveira Jorge tece um mapa pessoal e sentimental da capital alicerçado em digressões com os livros como motivo central.
Aprendi a ler muito novo, quando ainda frequentava a pré-primária, e os livros (e revistas, etc., tudo o que em volta disso gira) foram sempre uma das minhas paixões, até hoje. Lembro-me quando a minha mãe me levava de elétrico até ao Ginásio Clube Português (na altura, na Baixa, recordo-me de que descíamos depois a pé a Calçada de São Francisco), e eu lhe pedia por tudo, ao passar por uma pequena tabacaria ali existente, que me comprasse um livrinho, de uma coleção pequenina, com histórias que se liam num instante, e que custavam, por unidade, quatro tostões.
Lembro-me, depois, das aventuras do João Ratão e do Pedrinho Fininho, e de umas ilustrações que acompanhavam uma outra estória, em que uns malvados, os Fogaças Falcatruas, velejando sobre umas folhas de planta aquática, à escala deles, e com os cabelos ao vento e faces façanhudas, vinham atacar uns pobres seres simpáticos e pacíficos. Os Fogaças Falcatruas ficaram sendo para mim o protótipo de todo o tipo de gente com quem não simpatizo.
Mas o verdadeiro prazer semanal era a revista “Cavaleiro Andante”, que saía aos sábados, com bandas desenhadas. Aí tomei contacto com o Tintim e outros heróis. A única frustração é que cada página continha apenas uma parte da narrativa a que se referia, e uma pessoa passava ansiosa uma semana até saber como é que a coisa continuava. Nos últimos tempos de Campo de Ourique, a minha mãe já me deixava sair de casa sozinho, com muitas recomendações porque tinha de atravessar uma só rua, para ir à tabacaria comprar o Cavaleiro Andante, cujo próprio cheiro, acabado de sair da tipografia, tanto me atraia. Fiquei fixado no Tintim, até hoje, como a banda desenhada por excelência.
Mas, claro, entretanto comecei a ler policiais da célebre coleção Vampiro, que se vendiam numa tabacaria de Alvalade, lá no largo na Igreja de São João de Brito. Era o início dos livros de bolso, que foram uma excelente iniciativa da Editora Livros do Brasil, e de que também li muitos, e bons, da coleção Miniatura…que divulgava e divulga traduções portugueses de grandes autores. Dantes, até em quiosques de rua se vendiam bons livros! Lembro-me de ter comprado “O Sagrado e o Profano”, do Mircea Eliade, numa outra pequena “tabacaria” envidraçada dessas, naquela praça.
Outra forma de acesso aos livros – porque nessa altura ganhava-se muito pouco, e o dinheiro que entrava lá em casa era basicamente o do salário do meu pai – foram as Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, de que fui utente assíduo. Aquela que eu usava parava na Praça Alvalade (a rotunda onde depois colocaram a estátua de Santo António) e era sempre uma delícia poder requisitar para trazer para casa. Depois de muita escolha. Lembro-me, lá na Avenida Rio de Janeiro onde vivia, de passar muito tempo a arrumar os poucos livros que tinha numa minúscula estante do meu quarto. Uma tarefa que, vista de fora, seria absurda, tão poucos eram. Não tive a sorte de “herdar” uma boa biblioteca.
Muito mais tarde, era na Avenida de Roma que se localizava a pequena e bem recheada livraria do Senhor Barata. Aí, claro, havia os livros que estavam patentes e aqueles que ele arranjava à socapa…porque eram proibidos pelo regime. E assim, um dia, o Senhor Barata desapareceu, julgo que levado por agentes da instituição em que o leitor/a está a pensar. E qual não era o nosso gozo de comprar uma obra politicamente proibida e de a forrar, pondo por fora um título falso.
O assunto daria “pano para mangas”. Penso que uma livraria não é uma casa que vende livros, mas uma instituição cultural que serve e devia sempre servir para numerosas atividades culturais, tertúlias, encontros, lançamentos de livros, entre outras coisas, e à frente da qual, e se possível em contacto com os clientes, estão, ou deviam sempre estar, não vulgares comerciantes ou “colaboradores”, mas livreiros. Um sítio que proporcionasse até, como chegou a acontecer-me naquele tempo cinzento, conversas com professores mais “abertos”, os quais, na Faculdade de então, tinham de se comportar de forma bem distante dos alunos.
Uma instituição que, se por exemplo não tem à venda um livro que o cliente pretende, logo o livreiro se aprestará a mandá-lo vir do editor nacional ou estrangeiro. Enfim, reporto-me no meu ideal a tempos muito anteriores a todas as Amazons deste mundo. Ainda me lembro de ver o Aquilino Ribeiro falando com outros escritores na Sá da Costa, ao Chiado. Eu que, na altura, queria ser escritor e tive a sorte de ser aluno, no Liceu Camões, de Vergílio Ferreira (ao mesmo tempo que lia o “Aparição”…), que aliás era meu vizinho na Avenida dos Estados Unidos da América. E também de Mário Dionísio, um notável professor de francês, mas homem mais introvertido.
Além disso, passavam perto de minha casa outros “livros vivos”, como o grande poeta José Gomes Ferreira, o do “viver sempre também cansa”. Com ele, fui encarregado de ir falar para o convidar para qualquer iniciativa de protesto, por altura do fecho da Sociedade Portuguesa de Escritores, aliás vandalizada a mando do regime, na sequência da outorga do grande prémio de novelística a Luandino Vieira, em 1965. O que fiz com todo o prazer, porque já então o admirava muito. Via-o passar com frequência em frente da minha casa, lá na Avenida Rio de Janeiro, cabelos brancos ao vento, qual ave simbolizadora de paz e de beleza.
Havia em Lisboa boas livrarias, como saberão todos os lisboetas, sobretudo os já de uma certa idade. Das quais subsistem algumas, a Bertrand da Rua Garrett, claro, a qual ainda hoje ostenta lá numa esquina a afirmação de que é a livraria mais antiga do mundo. A Ferin, na Rua Nova do Almada. E depois temos outras mais recentes, A Tigre de Papel, em Arroios, a Ler Devagar, na LxFactory, em Alcântara, entre outras.
Mas muitas outras ligadas à minha experiência já desapareceram, como a Livraria Portugal, na Rua do Carmo, ou a Buchholz, na Duque de Palmela, que ainda existe, mas já não é nada do que foi – era o local onde se encontravam mais livros estrangeiros em Lisboa, além de ter na cave uma belíssima escolha de música. E há, claro, toda uma proliferação de outras pequenas ou maiores livrarias, ou de alfarrabistas, espalhadas pela cidade, ou de livrarias especializadas em obras estrangeiras, como a Nouvelle Librairie Française, na Pinheiro Chagas, ou a Livraria da Travessa, ao Príncipe Real, que importa obras do Brasil.
Quando eu morava no Porto, onde fui professor várias décadas, e vinha a Lisboa de comboio, muitas vezes ia direto de Santa Apolónia, com mala e tudo, sobretudo à Buchholz, que era a minha preferida, tal era a ansiedade de ver as novidades. Ou deixava a bagagem em casa e dizia à minha mãe, que já conhecia o ritual: “vou fazer a ronda das livrarias…”. Era maravilhoso.
Claro, a FNAC mudou muitas coisas. Chegou a ter muito mais oferta do que agora, e sobretudo introduziu aquela “filosofia” de se poder fruir de vários objetos culturais num espaço de lazer e de “acontecimentos”, e não só livros, de se poder escolher música através de postos de audição com código de barras. Mas nada substitui as antigas livrarias, em que os livreiros eram grandes amantes de livros, e leitores também, e nos vinham aconselhar alguma coisa nova acabada de chegar – como acontecia com a Livraria Leitura, no Porto, autêntico oásis, onde tinha “conta corrente” e encontrava o meu bom amigo Fernando Fernandes, um dos donos, sempre com um sorriso e com uma ou várias sugestões na mão.
Ele (e julgo que um seu sócio) chegaram a ter uma livraria em Lisboa, ali perto do Largo Dona Estefânia, e onde eu vi pela primeira vez o meu amigo Eduardo Prado Coelho, quatro anos mais velho que eu, e precocemente falecido em 2007. Já então, nos anos 60, estudante do Liceu Camões, eu o conhecia de nome, porque lia o “Jornal de Letras de Artes”, que comprava numa tabacaria de esquina, indo para o Saldanha, jornal esse onde ele travou uma polémica acesa com Vergílio Ferreira, este humanista-existencialista, ele estruturalista, na sequência da publicação pelo Eduardo de uma antologia de textos estruturalistas que fez furor e que provocou grande frenesim no inquieto Vergílio.
Ainda hoje conservo esse precioso livro, eu que, quando me aposentei em 2011, ofereci quase toda a minha biblioteca, com exceção daquelas obras “identitárias”, nucleares para mim, que todas as semanas, em formato papel ou em formato virtual, se acumulam de novo. Hoje, para além das pilhas de livros por toda a casa, tenho um kindle e um tablet onde anda a minha biblioteca portátil… e na qual prepondera a filosofia… mas não há nada como ler em papel, com uma régua e uma caneta, para sublinhar e tirar notas…e, a propósito de notas, já vai sendo tempo de acabar com esta pequena nótula, pois que o “formato” obriga…
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.
TAMBÉM QUER PARTICIPAR?
Envie-nos um email para arteria@publico.pt, dizendo-nos que histórias quer contar ou como gostaria de contribuir para o Artéria. Terá sempre resposta.