Viver melhor em Lisboa começa no questionar “esta correria” e em abrandar

1 de Dezembro, 2022

Reportagem

Samuel Alemão
No sexto debate Artéria, houve consenso sobre a necessidade de desacelerar. A ideia que sobrou da conversa, moderada por Manuel Carvalho, director do PÚBLICO, é a de que andam todos a queixar-se de falta de tempo e de stress a mais, mas ninguém sabe como sair desta espiral viciosa. Se é verdade que há questões estruturais, relacionadas com o acesso a coisas tão vitais como a habitação e os transportes, a mudança principal talvez deva iniciar-se por pôr em causa o que move cada pessoa. É mesmo isto que queremos?

Uma questão de perspectiva. Há factores económicos que não podem ser negligenciados, é verdade. Mas, mais do que tudo o resto, é mesmo uma questão de perspectiva. Afinal, porque andamos todos a correr? Para ganhar mais dinheiro para poder comprar mais coisas? É isso o que nos move? Talvez devêssemos parar e reflectir um pouco sobre se é isso mesmo que desejamos fazer com o nosso tempo.

Esta poderá ser a súmula, e a ideia central, do discurso partilhado pelos quatro participantes em mais um debate Artéria, ocorrido ao início da tarde desta quarta-feira, 30 de Novembro, na sala de extracções da Lotaria Nacional, nas instalações centrais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. “Viver em Lisboa sem stress pode ser opção”, era o tema da conversa, moderada por Manuel Carvalho, director do PÚBLICO.

E não foi necessário muito tempo para perceber que a resposta para a complexidade de tal assunto é a simplicidade. “A simplicidade significa uma vida mais criativa e com beleza, não tem de ser sinónimo de pobreza e de carência”, postulava, já perto do final, Jorge Farelo, membro da Rede para o Decrescimento, um dos participantes na sexta conversa Artéria – projecto de jornalismo comunitário dedicado a Lisboa produzido pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa.

Na troca de ideias, a ele se juntaram também André Barata, filósofo com obra sobre a desaceleração e o tempo contemporâneo, Hans Eickhoff, membro da Cooperativa Rizoma e da equipa organizadora do Festival Umundu Lx, e Sofia Pereira, presidente da direcção do Slow Movement Portugal.

Se é verdade que todos concordaram que as condições materiais mais elementares – e em particular as infraestruturas relacionadas com aspectos tão basilares como a habitação, a saúde, a educação e os transportes – são indispensáveis para o garantir de um grau de conforto mínimo, a conversa apontou muito na direcção do investimento pessoal na qualidade de vida.

“Será que a desaceleração não começa em cada um? O foco tem que estar no ritmo de cada um, tem de ser uma descoberta individual”, afirmou Sofia Pereira, quando interpelada sobre o que é, afinal, isso do “movimento slow”. “Não significa andarmos ao ritmo da tartaruga e irmos todos para o campo. Significa usufruirmos de tudo o que o mundo presente nos dá, mas a com um ritmo equilibrado, que respeite cada um, seja bom para o corpo, a mente e o planeta”, sintetizou.

Sofia Pereira, presidente do Slow Movement Portugal.

Algo muito em linha com o pensamento de André Barata, que apelou a que nos “libertemos desta tirania do tempo”. O filósofo, e professor na Universidade da Beira Interior, considera que muito do que assistimos hoje em Lisboa, bem como noutras grandes cidades por todo o mundo, nada mais é do que “uma servidão voluntária”.

“Nunca como hoje dedicámos tanto tempo ao trabalho. Assiste-se a uma gradual colonização do todo o nosso tempo disponível em tempo produtivo. E isso é inédito na história da Humanidade”, afirmou o filósofo, sem deixar de dar ênfase às “dimensões políticas” associadas a esse fenómeno, nomeadamente no que se refere à forma como as cidades têm sido desenhadas, obrigando a grande maioria dos cidadãos a desgastantes e demoradas deslocações.

Mas também ao facto de, na área metropolitana da capital, quase dois milhões de pessoas não terem palava sobre o que se decide na cidade e município em volta do qual a sua vida gira. “Há que pensar a cidade de Lisboa para além do seu município, numa dimensão de escala política intermunicipal”, disse, defendendo que a cidade “tem que ter pluricentralidades, densificando-se em muitos pólos”, para assim permitir às pessoas cumprirem as funções básicas da sua existência sem necessidade terem de realizar grandes deslocações. Algo que, lembrou, já tem sido muito badalado desde que o conceito da “cidade dos 15 minutos” foi postulado por Carlos Moreno. “Só assim poderemos voltar a ser senhores do nosso tempo e deixarmos de ser sequestrados”, afirmou.

O filósofo André Barata questionou a ideia de eterno crescimento.

Na mesma linha, Jorge Farelo, que trabalhou como arquitecto grande parte da sua vida, criticou o que considerou ser a “insistência no deszonamento das cidades”. Ou seja, a noção de que as cidades podem ser melhor estruturadas se mantiverem uma organização alicerçada, sobretudo, em bairros. “O bairro é o ponto mais importante da cidade”, considerou, antes de sublinhar o que vê como o “problema central” de Lisboa e a causa principal dos seus problemas: a habitação.

O urbanista e activista diz que isso não é de agora, salientando a segregação trazida pelos “subúrbios de ricos” e pelos bairros de lata que existiram na periferia durante décadas. E a ida de todos os não privilegiados para a periferia, aliada às más acessibilidades, está a roubar à maior parte das pessoas o tempo que deveriam ter para criar, para fazer o que mais gostam, para estar com os amigos e os familiares.

Jorge Farelo, da Rede para o Decrescimento, criticou o urbanismo dominante.

Como sair, então, deste espartilho? Para Hans Eickhoff, como para todos os outros participantes no debate, a resposta pode estar no recentrar das prioridades. “Se calhar, poderá começar por prescindirmos de algumas coisas, de alguns bens materiais, o que nos levará a não termos necessidade de trabalharmos tanto para ter dinheiro para os adquirir. No fundo, trabalhar menos”, postulou, indo a encontro do que defendeu inicialmente Sofia Pereira, mas também os outros participantes na troca de ideias.

“Porquê crescer? Para quê crescer sempre? Deveríamos apostar mais no ‘ser’ do que no ‘ter’. Mesmo a ideia de consumir tempo já é uma cedência a essa ideia do ‘ter’”, defendeu André Barata, que elogiou a forma como muitos jovens já olham para esta questão de forma distinta da das gerações anteriores. E até apontou o exemplo de como os praticantes de skate se apropriam do espaço público de forma descomplexada.

Hans Eickhoff, da Cooperativa Rizoma, apelou ao abandono do modelo vigente.

Na perspectiva de Eickhoff, o questionar seriamente a razão de termos entrado nesta espiral de correria de trabalhar para poder pagar coisas poderá, afinal, ser o primeiro passo para a mudança. Tanto quanto, em paralelo, a adopção de novos modelos de consumo, que garantam o acesso às necessidades básicas, sem prescindir de uma exigência de sustentabilidade do planeta e dos valores éticos. Algo que ele e os associados da Cooperativa Rizoma, da qual é membro, tentam pôr em prática, através de um sistema de produção e disponibilização de bens alimentares assente no primado do respeito pela ecologia. “Os pais deveriam levar os filhos a espaços verdes e não ir para centros comerciais, atrás de ‘black fridays’”, desejou, no final.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional. Saiba mais em: https://arteria.publico.pt/o-projecto/

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