Crónica

Ana Ribeiro Nel

Ana Ribeiro Nel, enfermeira de profissão e colaboradora residente do Artéria (autora da crónica A Cidade Como Nós) escreve sobre os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, um oásis (ou aldeia) dentro da cidade. 

Fui à Fundação Calouste Gulbenkian. Entrei no jardim e dirigi-me à gelataria (não consigo começar o dia sem café). Sentei-me junto a uma janela com vista para a vegetação a apreciar a beleza das árvores enquadradas pela janela. A vegetação como arte, as pessoas que transitam no jardim não sabem mas estão dentro do meu quadro. 

O jardim da Gulbenkian é para muitos uma espécie de oásis no meio do reboliço citadino. Bebo o meu café enquanto, na mesa do lado, um grupo de mulheres reúne-se em círculo e fala sobre a sua semana – o preço da cavala e o mau conteúdo da televisão. 

Passeio pelas sombras das copas das árvores, por caminhos quase labirínticos. Deslumbro-me com as cores e cheiros das flores, os formatos das folhas, o seu movimento com o vento, o modo como as espécies interagem e se complementam. Encontro jovens a namorar em recantos, há uma excursão escolar que alinha crianças em filas de dois e famílias que se estendem na relva como se na praia. Uma menina faz uma roda em movimento de pura alegria enquanto alguém a filma e poderia este ser um quadro de Monet.

Mais à frente, junto a um pequeno ribeiro, uma rapariga ajoelha-se e estende a sua mão em direção a um pato que se aproxima à procura de comida e eu própria páro para ver que as penas verdes do dorso do pato parecem de veludo. É possível pisar a terra e sentir o seu cheiro. 

O jardim guarda um tesouro, um museu de arte clássica. Pergunto-me se a arte se poderá respirar? Entranhar-se-á na pele? Pousará sobre nós, como um pequeno inseto? Circulo de braços atrás das costas como os restantes visitantes, que arrumam os óculos na testa para ler as legendas das obras. A verdade é que este museu tem o poder de nos levar para longe, fui por dez euros à Grécia, Turquia, Irão, Egipto, Itália, França, China e Japão.  

Olho para cada obra de arte, tentando ver quem está do outro lado, alguns dos retratos são tão realistas que me parecem pessoas que conheço, que poderiam passar por mim na cidade ou sentar-se no assento do metro ao meu lado. Quase todos os retratados fixam quem os pinta, exceto a rapariga de Domenico Ghirlandaio (Retrato de uma Jovem, Florença, 1490), que me parece aborrecida como a minha filha em viagens de carro, a olhar a paisagem pela janela.

-Ainda falta muito?

Saio do Museu. Há um lago com batráquios em frenesi. Os miúdos da escola estão sentados a comer sandes. Lá fora, paralelo ao jardim, passa um amolador e leva a pé a sua bicicleta. Toca a sua gaita e vai no passeio, mais rápido que os carros presos no semáforo. Afinal a cidade é uma espécie de aldeia grande ou muitas aldeias juntas. 

Tenho uma amiga que me disse há uns tempos.

– Não tenho terra. 

E disse-o de forma triste.

– Como não tens terra?

E ela responde-me.

– Sou daqui, não tenho família numa aldeia do interior como tu. 

A cidade é a tua aldeia. Só tens que encontrar a aldeia dentro dela. 

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