Memórias de um comércio local 

3 de Março, 2023

Reportagem

Verónica Silva
Durante quatro décadas, as lojas Custódio's foram uma referência para várias gerações de lisboetas, que aí compravam os seus electrodomésticos ou o primeiro telemóvel. A empresa familiar chegou a ter 12 pontos de venda mas, em 2011, acabou por sucumbir à crise e ao progresso. Verónica Silva, estudante de Ciências de Comunicação da Autónoma, estreia-se no Artéria com uma história que, mais do que um ajuste de contas com o passado, é uma viagem no tempo rumo a um outro país e uma outra Lisboa.

Ouvem-se passos na estrada de terra batida. O céu nublado e o vento forte tomam conta da rua. Vão-se avistando vivendas comuns, até que uma chama à atenção. Por cima da porta de entrada, junto ao muro, está uma placa de madeira. Diz “Custódio’s”. Não é possível ver mais. As árvores altas e robustas de diferentes espécies impedem os curiosos de espreitar. 

Narciso e Maria Luísa, de 80 e 77 anos, estão sentados à mesa na sua sala. Um de mãos entrelaçadas com um ar sereno, o outro com um olhar vivo e atento. Preparam-se para contar a história da sua vida. “Tinha 15 anos quando conheci o meu marido”, revela Luísa, pausadamente, esforçando-se para lembrar o que vivera. “Três anos depois casámos. Foi duro, porque nessa altura ele foi para a guerra do Ultramar. Fiquei grávida do meu primeiro filho. Só o conheceu com dois anos, quando voltou de Angola”. Na época, trabalhava como bordadora. O marido era mecânico de automóveis. 

Explicam que, através do emprego de Luísa, conheceram o representante da Singer. A empresa necessitava de um ponto de venda no sítio onde moravam, o Bairro do Bosque, na Amadora. “Abrimos em 1969 como um concessionário Singer. Vendíamos máquinas de costura e tricô”. Narciso deixou o seu emprego e abraçou o projeto com a mulher. “Ela continuou a ser bordadora, porque tinha o curso e ensinava. Aproveitávamos a loja não só para vender, como também para ensinar as pessoas a trabalhar com as máquinas”, explica.

“Tínhamos frequentemente muitos clientes. Estávamos perto da zona industrial. Havia trabalhadores de fábricas, como a Sorefame e a Alfredo Alves. O nosso bairro era o melhor sítio de comércio na Amadora. Decidimos abrir mais lojas, porque só vendíamos artigos da Singer. Criámos assim a Custódio’s – Comércio de Eletrodomésticos, Lda”, recordam entusiasmados, como se revivessem tudo. O nome da empresa surge do apelido de Narciso. 

Apesar da ditadura, contam que o comércio cresceu sem dificuldades. “Abrimos em Mem Martins, no centro comercial das Mercês, no “Babilónia”, na Colina do Sol, em Mafra, um outro concessionário Singer em Sintra. Chegámos a ter 12 lojas”. Com a expansão do negócio, os filhos juntaram-se a Narciso e Luísa. “Trabalhávamos todos em conjunto. Tornou-se um negócio de família”. 

O sucesso alcançado está espelhado nos olhos de ambos. “Tivemos muito apoio dos fornecedores. Confiavam em nós. Siemens, Grundig, Philips… Fomos talvez o número um da Sony e da Fagor. Éramos os seus principais compradores. Trouxemos a Nespresso para Portugal”, revela Narciso. 

O êxito da empresa resultava, segundo os próprios, da inovação e da dedicação. “Quando fazíamos a Feira Popular, em Lisboa, saíamos às 19h00 da loja e íamos diretos para lá. Jantávamos todos os dias às 02h00. Às 9h00 já estávamos a abrir o estabelecimento. Angariámos muitos clientes e era muito gratificante”, diz Luísa, visivelmente entusiasmada. Recorda ainda a azáfama natalícia. “Na noite de Natal, estávamos a fechar a loja e havia pessoas a implorarem para lhes vendermos eletrodomésticos”.

O lugar das memórias

“Aqui é a discoteca. É o nome que a minha neta costuma chamar”, diz Luísa, num olhar meigo e consolado. Abre a porta do anexo, junto à casa, com eletrodomésticos antigos. Para alguns, um museu de relíquias do século XX. Paira um clima de nostalgia, um cheiro antigo. Sentem-se as vivências de cada máquina. Narciso mostra uma grafonola Victrola em bronze. Logo a seguir, aponta para os ferros a carvão. Contente, assume um papel de guia. Desvenda o nome de cada objeto. Máquinas de costura, aparelhagens, leitor CD portátil, máquinas de escrever, câmaras de filmar, rádios… Em cada canto, um aparelho diferente.

Luísa observa as memórias que a rodeiam. Tem saudades do tempo em que trabalhava na Custódio’s. “Fui muito feliz. Fazia o que gostava. O contacto com as pessoas. Na altura, a conversa não falhava. Não havia ninguém que entrasse na minha loja sem comprar alguma coisa. Era boa vendedora. Muito alegre e comunicativa”.

Os anos eram outros, as vontades também. “Agora é melhor assim como está, não é?”, questiona Narciso. “Lisboa está muito melhor do que há 40 anos. É melhor para o comércio, porque há muitos turistas. Está mais desenvolvida. Antes, a cidade estava abandonada e mal frequentada. Hoje, estás na rua e não sabes se é em Portugal ou no estrangeiro”, comenta Luísa. Já o marido, embora aprecie a capital, admite que havia um maior contacto entre Lisboa e a Amadora. “A sociedade estava mais ligada. Atualmente, faz-se a distinção entre as duas regiões. Como se estivessem separadas.” 

Relembra as ruas cheias de trabalhadores perto do Bairro do Bosque. “Antes do 25 de abril, a Amadora era uma cidade industrial. Desde que as fábricas fecharam, o comércio caiu. Hoje vou lá e não conheço quase ninguém. A população é envelhecida. Tem muitos emigrantes.”

Do sucesso ao declínio 

Vanessa Barros, 49 anos, é administrativa. Foi cliente da Custódio’S grande parte da sua vida. Uma das lojas situava-se perto do liceu da Amadora, onde estudava. Para si, o edifício era um prédio histórico. “Toda a gente conhecia a Custódio’s. Comprei lá o meu primeiro telemóvel, em 98”, conta. Vê pontos positivos nos grandes centros, ao nível dos preços. Admite, contudo, ser um comércio mais impessoal e distante. “Na loja está sempre alguém diferente. Se tivermos algum problema, estamos confinados a um call center. Há imensas burocracias.”

Rosa Custódio, também ela com 49 anos, é a filha mais nova de Narciso e Maria Luísa. Trabalha como consultora imobiliária. “Com 17 anos fiquei responsável pela nossa melhor loja em Mem Martins. Na altura, deixei a escola, para ficar a tempo inteiro. Tive de substituir uma funcionária.” Confessa que o balcão a fascinava, apesar de ter deixado para trás a “vida de adolescente”. 

“Não havia lojas de eletrodomésticos, nem grandes hipermercados. Ao expandirmos, começámos a ter todo o tipo de clientes. Havia pessoas que viviam a 590 quilómetros da loja e mantinham-se fiéis. Vendíamos de tudo.” Rosa recorda que o melhor período de vendas foi no final dos anos 90. “Faturámos um milhão e meio de contos”. 

A abertura das grandes superfícies teve, contudo, um grande impacto na Custódio’s, admite Narciso. “Vendíamos a crédito de boca. As pessoas compravam e iam pagando. Confiávamos nos clientes, porque eram próximos. Quando abriram os grandes espaços, muitas pessoas fugiram de nós. Os preços eram acessíveis. Havia mais facilidades de pagamento”. Realça também o serviço que prestavam., sem cobrar por isso. “Os clientes tinham tanques para lavarem à mão. Dois empregados nossos recolhiam-nos e montavam a máquina de lavar. Depois, uma senhora ensinava a trabalhar com a mesma. Trazíamos também o produto velho. Agora pedem dinheiro para tudo”. Luísa concorda. “As pessoas esqueceram-se que sempre as servimos bem. O comércio local dava carinho. Quem é que agora é acarinhado? Se calhar já não ligam a isso”.  

As grandes superfícies não foram, ainda assim, a única razão para a queda da Custódio’S. Há um ponto de viragem em 2004. “Os escritórios das empresas fornecedoras estavam no país. Com a entrada da crise, as firmas deslocalizaram-se para Espanha”, explica Rosa, revivendo a frustração. “Houve uma alteração das políticas empresariais. O prazo de pagamento da mercadoria diminuiu. O dinheiro que entrava ia para faturas atrasadas. Era uma bola de neve. Tivemos de fechar lojas”. O problema agravou-se com os cortes no fornecimento. Mais tarde, a crise de 2008 e 2009, nos EUA, confirmou o início do fim da Custódio’s. “As empresas acionaram os seguros de crédito. Ficámos com duas dívidas. Às empresas e à seguradora. Acabámos por fechar em 2011”. 

Confessa que “não foi fácil gerir”, porque “era a minha vida. Ia para lá de alcofinha. Fui criada naquele meio. Uma coisa é estares num negócio familiar, em que tens uma ligação emocional. Outra é seres um mero empregado. Vi filhos casarem. Vi nascer os filhos. Tenho clientes que, hoje, são meus amigos”. 

A mãe, Luísa, assume o desencanto com o fim da empresa, “quanto maior é a nau, maior é a tormenta”, mas deixam claro que nem tudo foi mau, bem pelo contrário. Afinal, foi uma bonita história de mais de quatro décadas.

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