Lisboa obscura: espreitando tentáculos do III Reich

Autor

Vítor Oliveira Jorge
7 de Março, 2023


Vítor Oliveira Jorge (arqueólogo de formação, antigo professor universitário e colaborador habitual do Artéria) volta a surpreender-nos com um texto sobre Lisboa, desta feita recuando até aos tempos do nazismo. 

Numa cidade concentra-se tudo: o maravilhoso, o bom, o menos bom… e até, claro, o sórdido e o perigoso. Todos sabemos da complexidade humana, tanto ao nível individual como no plano coletivo. E assim como há um dia radioso, e uma noite impenetrável em muitos recantos mal iluminados, assim como há os lugares onde o corpo se pode esticar como se se estendesse até ao infinito, em liberdade e disponibilidade, assim também existem aqueles sítios onde todos os cuidados são poucos, onde é melhor… nem às paredes confessar o que se sabe, ou o que se pensa. 

Assim era nos cafés da minha juventude, antes do 25 de abril, quando tínhamos de ter muito cuidado com “alguém” que estava ali sempre “de serviço”, para escutar… para delatar… e com isso “ganhar algum”… e o mesmo acontecia por toda a parte, incluindo as faculdades, onde sabíamos que parte dos funcionários que ali circulavam estava de olho aberto… e, se não tivéssemos cuidado, o nosso nome ia parar à instituição que eles serviam (a troco de um “subsídio”…), e que poderia ser muito perigosa para o nosso futuro. Concretamente, adensar sobre ele uma negra sombra…

Só quem viveu esses tempos pode sentir isso, e sentir é também pensar, interiorizar, incorporar. Assim, por mais que a história como disciplina rigorosa se esforce, o essencial da experiência humana perde-se, é intransmissível, de pessoa para pessoa, de geração para geração, de comunidade para comunidade. 

Como me dizia um antropólogo norte-americano uma vez, numa conversa de refeição durante um colóquio: meu amigo, eu trabalho com uma comunidade longínqua há décadas, dessas que dantes se chamavam “primitivas”, até já me atribuíram lá um nome, na sociedade deles, eu conheço todos os detalhes das suas vidas… mas, creia-me, “ainda não cheguei sequer a tocar a pele da sua cultura”: ou seja, cada ser, cada experiência, cada coletividade, partilha algo que é praticamente incomunicável a outrem exterior. 

Lisboa, década de 40. Fotografia de Eduardo Portugal

Isto não deve levar-nos ao relativismo, mas é bom estarmos de pé atrás quando julgamos “comunicar”… e perceber, seja o que for.  

O salazarismo, como vários outros regimes do mesmo tipo autoritário, é quase impossível de entender, hoje, no que ele tinha de mais intrínseco, nas formas de subjetividade que um medo indefinido criava, no dia a dia, em cada gesto.

Eu tive portanto essa experiência, a de viver em Lisboa em tempos antidemocráticos, mas não é de mim nem desses anos 60 que vou falar aqui. Mas bem antes, uns anos antes de eu nascer, quando a capital, no tempo da Segunda Guerra, era uma cidade cosmopolita, apesar de ainda pobre, triste e cinzenta, como sempre acontece sob uma ditadura (como pode haver genuína alegria num ambiente desses?…).

Porque ela acolhia de tudo, desde quem fugia da Alemanha ou dos territórios que os nazis já ocupavam, na esperança de chegar a porto seguro onde refazer a sua vida, até àqueles que, ao serviço do III Reich, aqui atuavam das maneiras mais inusitadas e pérfidas, com o à-vontade e/ou a parcimónia dos mal disfarçados. Aqui, sobretudo na Baixa e arredores, ouvia-se falar as mais diferentes línguas, por diversas razões… 

Tendo em atenção que a rendição alemã se deu a 8 de maio de 1945, e que a nomeação de Adolf Hitler como chanceler da Alemanha se verificara a 30 de janeiro de 1933, estamos a reportar-nos a 12 anos de um regime que não tem qualificação possível, um sistema dos mais indignos que a humanidade já conheceu, mas que todavia continua, para estranheza dos seres humanos “saudáveis de espírito”, ainda hoje, a inspirar mais pessoas do que aquelas que seria para desejar. 

E que, claro, estendeu os seus tentáculos a Portugal, tendo Lisboa como epicentro. Porque esta era um porto importante, através do qual se podia saber de movimentos marítimos dos Aliados (daí a procura de informações e de subornos entre os marinheiros que aportavam a Lisboa, e desembocavam no Cais do Sodré em busca de álcool e de prostitutas, por exemplo) e, claro, era também um porto, e depois aeroporto, de fuga, para os felizes perseguidos que aqui conseguiam chegar, e daqui partir, por exemplo, para os Estados Unidos. Basta lembrarmo-nos do célebre filme “Casablanca” (1942)…

Última cena do filme Casablanca, quando “Humphrey Bogart” vê “Ingrid Bergman” partir rumo à capital portuguesa

Aquele último país, os EU, foi, como é sabido, um dos destinos principais de acolhimento, e muito ganhou com a “inteligência”, provinda dos países ocupados pelo nazismo, e que lá se conseguiu refugiar, contribuindo para o seu enriquecimento, nomeadamente intelectual. Entretanto, muitos milhões morreram às mãos criminosas de Hitler e seus sequazes, numa perda que é irreparável, inesquecível e imperdoável, e cujo luto é absolutamente impossível. 

Entretanto, no meio disto, Lisboa, cidade atlântica de um país oficialmente “neutral”, jogou um papel importante, a que só é possível aludir de raspão, nomeadamente socorrendo-me do útil livro introdutório de Sérgio Luís de Carvalho, “Lisboa Nazi”, das Edições Parsifal, Lisboa, e que, editado em 2018, conheceu já uma segunda edição em 2022. 

Claro que a bibliografia sobre o assunto, de que o autor faz uma útil resenha no fim da obra, é praticamente infinita, mas há alguns historiadores que se destacam, como António Costa Pinto, António José Telo, Cláudia Ninhos, Fernando Rosas, Irene Flunser Pimentel, João Medina, Jorge Pais de Sousa, Luís Reis Torgal, Manuel Loff , etc., etc. 

Neste conjunto, incompleto, tenho, confesso, particular apreciação pela obra e pensamento da investigadora Irene Pimentel, justamente agraciada com o Prémio Pessoa em 2007, valiosa pesquisadora do Instituto de História Contemporânea – é verdadeiramente notável o seu labor em torno de várias questões relacionadas com o Estado Novo, desde a PIDE e a Mocidade Portuguesa, até à situação dos judeus em Portugal e às relações do Portugal de Salazar com as forças em confronto durante a IIª Guerra Mundial. É-me também grata a posição que tem manifestado abertamente em defesa da Ucrânia, no que revela uma rara lucidez (rara, infelizmente, em pessoas que se reclamam de uma visão emancipatória do ser humano), entre nós. 

Por seu turno, entre muitos outros estudos de alto interesse, sobre por exemplo o caso concreto da política cultural alemã em Portugal, é importante ler a tese de doutoramento em História de Cláudia Ninhos, «Para que Marte não afugente as Musas». A Politica Cultural Alemã em Portugal e o Intercâmbio Académico (1933-1945)“, apresentada em 2016 à FSCH da UNL (disponível aqui: https://run.unl.pt/handle/10362/18808). 

Como, evidentemente, a um nível mais geral, a monumental obra desta autora e de Irene Flunser Pimentel, “Salazar, Portugal e o Holocausto”, Carnaxide, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013 (infelizmente esgotada no mercado). Ou, ainda, o excelente livro que Irene Pimentel intitulou “Holocausto”, crucial, indispensável,  para o tema que aqui nos interessa, e que a mesma editora (Temas e Debates/Círculo de Leitores) apresentou em 2020.

No livro de Sérgio L. de Carvalho, o simpatizante ou militante pró-nazi português aparece com a denominação genérica de “germanófilo”, termo que, em princípio, designaria o simples admirador da cultura alemã; mas, neste caso concreto, nesta época específica, designa para ele, como o próprio autor a abrir logo nos esclarece, ao balizar o tema do livro, “(…) os portugueses que no nosso país defenderam ativamente o III Reich durante a Segunda Guerra Mundial”. Ou seja, ultranacionalistas, reacionários, e profundamente católicos (cf. p. 22). E esta obra é “(…) sobre os germanófilos portugueses entre os anos de 1939 e 1945 e centra-se na cidade de Lisboa” (p. 9). 

Bem estruturado, de leitura amena e fácil, escrito por um autor com obra de divulgação histórica, e de ficção, já bastante conhecida, o livro tem um capítulo 3 no qual elenca os lugares onde, em Lisboa, esta gente manhosa então se encontrava: cafés, hotéis, cinemas, locais institucionais alemães ou italianos, e sítios de passagem como o aeroporto ou outros, onde se podia obter informações quer sobre as movimentações das potências do Eixo, quer dos Aliados. 

Porque estas atuações dos “germanófilos”, misturados com “agentes duplos” ou espiões claramente “aliadófilos” (como seria a maioria do sector da população informada, culta, portuguesa, apesar da ambiguidade típica, manhosa também, de Salazar) eram feitas, evidentemente, no sentido de obter informações que tivessem valor estratégico-militar, em que todos os meios, por vezes toscos, serviam. 

E, excetuados os mais ferrenhos adeptos de Hitler (os quais, aliás, quando a situação começou a anunciar a sua perda, rapidamente se adaptaram, e se circunscreveram obedientemente, e apenas, à defesa do Portugal de Salazar) haveria portugueses que, auferindo o salário baixo próprio da época, viam nestas atividades de espionagem e “informação” uma forma de aumentar um pouco o seu magro pecúlio. Este tipo de regimes, em particular, gera pessoas sem quaisquer escrúpulos…

Temos assim um desfilar de locais lisboetas privilegiados onde toda esta gente se concentrava, e de que só cito alguns, como o Café Chave d’0uro, no Rossio, os bares de prostituição do Cais do Sodré, o Hotel Vitória (uma obra modernista da autoria de Cassiano Branco, hoje sede do PCP),  o Avenida Palace, situado entre os Restauradores e o Rossio, a Pensão Estrangeira, na Rua Braamcamp… etc. Mas importante também, na divulgação da propaganda nazi, era o Clube Alemão e a própria Embaixada Alemã. Como escreve Sérgio Carvalho (p. 51), no que toca a germanofilia em Lisboa, e sua difusão, “(…) se a Embaixada era o cérebro, o Clube Alemão era o coração.” 

Enfim, Lisboa estava encharcada de propaganda nazi, mais ou menos tolerada ou até bem vista pelo regime autoritário (enquanto o nazismo parecia fazer vencimento, chegando a temer-se, até, uma invasão a Portugal… posição essa que estrategicamente declinou quando era já óbvia a vitória dos Aliados, e o hábil Salazar viu que tinha de “se entender” com eles…), reforçada com revistas como “A Esfera”, com sede na Rua do Alecrim, e onde pontificava, entre outros, um antidemocrata retinto, Alfredo Pimenta de seu nome. 

Temível, adotava uma posição antissemita e racista, expressando agressivamente, como tantos outros na altura, o mais básico e intenso fel contra tudo o que odiava. Havia também folhetos, panfletos de toda a sorte, livros, atividade radiofónica – a Rádio Luso, por exemplo, que por via indireta os alemães compraram, e era a mais importante, ou a Rádio Berlim e, para defender os ideais italianos fascistas, rádios italianas… 

Sérgio Pinto de Carvalho fala-nos também das, infelizmente nossas (dos mais velhos…) bem conhecidas, “organizações com tendências germanófilas”…(pp. 107 e seguintes…): Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa, FNAT, tudo enquadrado, claro, pela instituição repressiva por excelência, a PVDE, depois PIDE, mais vocacionada, como é bem sabido,  para a defesa policial do regime… e sabemos com que dureza…escorando decisivamente o ditador e sua “entourage” na sua vontade de persistir indefinidamente, nessa arte de resistência ao tempo que ele cultivava, reconheçamo-lo, de forma ardilosa. 

E assim Portugal continuou, qual aparente “museu de si próprio”, até à manhã do 25 de abril de 1974, como a mais antiga potência colonial da Europa… e um dos países mais atrasados do continente, um dos que conheceu mais tarde a implantação da democracia política, um dos que aguentou uma tão longa ditadura…

Nessa madrugada, nessa manhã, nesse dia utópico que desejaríamos que se prolongasse sempre, para maior abrangência de todos/as, as ruas de Lisboa já não eram mais as ruas tristes e cinzentas do passado. Um mundo imenso de possibilidades e de problemas se abriu… para a vida, para o exterior do “museu salazarista”, para a vida viva, feita de muito esforço e de muito trabalho, de muitas contradições e lutas, sim, mas, finalmente, de esperança, de vida! 

Um mundo onde podemos dizer bem alto, e escrever preto no branco, o que pensamos: vertiginoso júbilo da liberdade, preciosa “conquista”, que talvez só possa apreciar plenamente aquele/a, como eu, que, durante a sua juventude sufocada, a não pôde viver.

ARTÉRIA

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

TAMBÉM QUER PARTICIPAR?

Envie-nos um email para arteria@publico.pt, dizendo-nos que histórias 
quer contar ou como gostaria de contribuir para o Artéria. Terá sempre resposta.

Pin It on Pinterest