Fotografia: Vítor Oliveira Jorge
A fotografia é uma das formas que temos de lutar contra a decadência e a morte que o tempo inevitavelmente traz a tudo o que é humano, e a cada um de nós enquanto indivíduos. A sua descoberta no século XIX e agora a sua generalização através do sistema digital, com a possibilidade de ser produzida instantaneamente através dos mais diferentes meios, e transformada laboratorialmente, cria infinitas possibilidades de realidade. Ou seja, multiplica incessantemente realidades. A fotografia modificou a vida de toda a gente.
Ela tem de facto implicações em todos os domínios da existência humana. Claro que corresponde também a uma democratização da expressão artística plástica, pois permite a uma pessoa culta produzir obras de algum valor estético a partir de um conjunto de meios relativamente fáceis de obter. Isto é, há um “olhar do fotógrafo”, mas este cultiva-se, como tudo na vida, e esse olhar, que implica toda a bagagem do indivíduo, pode ser imensamente ajudado por meios técnicos que nem sempre são baratos, claro, mas que já não exigem os longos anos de aprendizagem que associamos à pintura ou a outras artes.
Neste sentido, na sociedade do espetáculo em que vivemos (Guy Debord) e no mundo proliferante em termos de imagens em que estamos imersos, como consumidores compulsivos do que vemos nos ecrãs (ou são os ecrãs que nos veem a nós?… as duas coisas, claro… o ecrã funciona como espelho), a fotografia é central, seja a nível amador ou profissional.
Todas as instituições têm “logos” e uma linha gráfica pelo menos apoiada na fotografia, e todas as pessoas, na busca um tanto vertiginosa da sua identidade, fazem constantemente selfies para provar a si próprias e aos outros que existem, e que “aquilo” (retrato, situação, etc.) é elas, é delas. Claro que toda esta torrente desagua nas redes sociais, todos os dias, e é operada por milhões de pessoas: um novo dilúvio universal, onde poucos, qual Noé, procuram ainda fazer a fotografia como arte, só acessível a alguns/mas, porque só alguns/mas têm de facto talento.
O talento não é democratizável, embora sejam democratizáveis, e de que maneira, as ecologias culturais, sociais, económicas, em que o talento tende a nascer, qual cogumelo. Mas não se pode inocular talento em ninguém (a não ser que a IA venha também com essa pretensão, bem entendido, pois a intenção dela é mesmo criar uma pós-humanidade de contornos ainda indefinidos e preocupantes).
Mais do que denotar realidades, a fotografia é eminentemente conotativa, cria, à semelhança de outras formas de arte, novas realidades, que ao mesmo tempo são fugazes, impossíveis de fixar pela retina, mas que também ficam, na fotografia, aprisionadas desejavelmente “para todo o sempre”. É neste sentido que é uma atividade contraditória, pois ao mesmo tempo que cria, estagna e “mata” o que regista, enquanto supostamente faz emergir, viver, perdurar, o instante fugaz.
Mas o instante foi e é sempre uma preocupação para quem queira defini-lo, porque escorrega como enguia.
A fotografia corresponde a uma pulsão escópica, ou seja, a um desejo compulsivo de ver, que é ao mesmo tempo motivo de prazer e de desilusão. Todo o prazer é um prazer no final desiludido. Porque queremos sempre ver mais, o gozo nunca está completo, senão deixávamos de ter apetência pela vida. O ser para a morte que somos, que cada um de nós é, só termina de desejar com a morte. Mesmo no corredor que a ela conduz, ou seja, mesmo antes de perdermos a consciência para sempre, estamos ainda a querer dizer algo, ou comunicar algo, como se houvesse dia seguinte: tal como dizia Vergílio Ferreira, interiormente (traduzamos: no nosso delírio desejante) somos eternos.
Claro que a atividade fotográfica configura uma série de contradições a inúmeros níveis. Mas as contradições fazem parte da própria realidade. Nisso o filósofo Hegel desfez o equívoco provocado pelo velho princípio lógico da não contradição: sim, uma coisa pode ser ela e o seu contrário ao mesmo tempo; mais, uma coisa só é ela porque não é outras coisas, porque também é “não ela”, porque a atravessa algo que não é apenas produto da nossa incapacidade humana de conhecer a “coisa toda”, a “coisa em si” concebida pelo grande Kant, mas porque a própria realidade não é abraçável num todo mítico anterior ao nosso olhar para ela, a realidade é afinal uma palavra, toda a realidade é traduzível em palavras, é permitida pelas palavras, e portanto por aquilo que o velho Saussure, o linguista, chamou o significante. Um som.
Não há a “banana em si”, não há a “Lisboa em si”, há bananas, há Lisboas, tantas como cada observador(a) ou cada fotógrafo (a), neste caso, da mesma. O matemático julga poder escapar-se – através da linguagem que criou, aquelas fórmulas e deduções e cálculos em que se se sente à vontade, e os quais até funcionam na vida prática – desta realidade simbólica em que o ser humano vive. Doce ilusão!…
Trata-se apenas de uma forma sofisticada, abstrata, de codificação da realidade, utilíssima em certos domínios, inútil noutros: se eu, desprovido de telemóvel com a aplicação própria, quiser apanhar na rua um táxi para um sítio qualquer de Lisboa, não me serve de nada recorrer a fórmulas, só complica; mas, uma vez dentro dele, a caminho das fotografias que almejo tirar, vou decerto numa máquina que só foi possível criar por meio de cálculos matemáticos… o ser humano através da ciência moderna quis tornar-se deus, mas… os deuses têm essa habilidade complicada de jogarem connosco às escondidas. São brincalhões, não os podemos levar demasiado a sério, servem de pais, mas são pais ausentes, que só entrevemos a sair de casa…
Poderíamos portanto dizer que a fotografia intenta registar realidades, e que, estando hoje ao alcance de todas as pessoas – todas possuem pelo menos o tal telemóvel com capacidade de captar e armazenar imagens – não há ninguém que não seja fotógrafo(a). Mas, como vimos, não é assim tão fácil, claro, nada nesta vida é fácil quando passamos da infância acolchoada para o mundo real.
Realmente, esta atividade fotográfica vai, como bem sabemos e já foi sugerido, de extremo a extremo: desde a situação do indivíduo (predominantemente jovem) que pretende obter uma fotografia para imediatamente a partilhar nas redes sociais, até ao amador mais consciente, e depois ao profissional, que sabe que é preciso dispor de toda uma preparação técnica, um equipamento, uma programação, um sentido estético, para obter bons “registos”.
Mas o momento da sua captação é apenas a fase inicial de um trabalho laboratorial, por assim dizer, em que a fotografia é tratada, trabalhada, para se obter um resultado que tem muito pouco a ver com qualquer ato instantâneo.
Há toda uma manipulação posterior ao “clique”, facilitada hoje pelo computador e seus programas, que retira aura à maior parte dos produtos fotográficos que se nos apresentam, mas, como é próprio desta dialética, volta a aurar, a encher de mistério e de fascínio, as raras fotos que de facto nos tocam, que de facto saem da corrente da vulgaridade, ou do puramente documental – o documental acaba sempre por ser enfadonho – para ascenderem à categoria do que consideramos arte.
Porém, como não há uma “obra de arte em si”, essa consideração, ou categorização, acaba sempre por ser filtrada por todo um exército de mediadores: os críticos, as galerias, os historiadores de arte, os comentadores/apreciadores que (quase) todos somos, etc. Todos nós (pelo menos os que têm alguma instrução) nos queremos apartar do mau gosto para fruir – e mostrar aos outros, ao Outro, que fruímos, claro; sem Outro não há gozo – a “grande arte”. Para além do mais, é um sinal de prestígio. Anda toda a gente a fazer isso, por exemplo, no Facebook: a máquina das identidades encenadas.
Falar da fotografia é falar de tudo, de tal modo a imagem é central na nossa vida: das suas relações com o tempo, com a verdade, com o documento, com a memória e a história, com o arquivo, com uma série infinda de aspetos que estão no centro da nossa cultura voyeurista… e obcecada com o estigma da perda.
Mas, então, e Lisboa, nosso objeto fotográfico por excelência?… Pergunta o(a) leitor(a). O presente escriba só fala de generalidades e de teorias e não diz nada sobre a nossa Lisboa?… Isto assim não se enquadra na moldura do que esperávamos! Calma, que já lá vou, já cá estou. Como dizia dantes uma curta rubrica de jornal, em que aparecia uma foto de uma dada situação inusitada: “e o fotógrafo estava lá”.
Quando eu era pequeno, apareciam de repente à nossa frente, nas ruas do centro, uns tipos com ar desportivo (para a época) e uma máquina fotográfica, fingindo que nos tiravam uma fotografia, e depois vindo perguntar se queríamos mesmo tê-la, comprá-la. E lá andavam eles atarefados com o seu tripé na mão, equilibristas sobre os passeios bonitos de Lisboa, ali nos Restauradores, ou Rossio, ou Terreiro do Paço… como esse panorama, onde ainda havia algum espaço, é diferente das enxurradas de turistas que agora desfilam pelas ruas da baixa, olhando para todo o lado como é próprio dos visitantes ocasionais e apressados, e segurando os seus telemóveis em punho, prontos a disparar anonimamente a qualquer momento… ou a filmar qualquer coisa que lhes chamou a atenção… a qual daí a pouco já circula pelos rios das redes sociais, qual sistema hidrográfico universal, que permite que as imagens vão parar em segundos a qualquer estuário ou mar deste ou de outro continente…
Claro que eu posso fotografar imensas situações, desde os panoramas que se veem a partir dos vários miradouros de Lisboa, subindo pelo elevador de Santa Justa, ou indo ao Miradouro de Santa Luzia, ou ao de S. Pedro de Alcântara, ou da Graça, etc., etc., ou… à casa de uma amiga minha que tem uma vista privilegiada particular… até aos quadros de um museu que mo permita fazer – “sem flash”, como continuam sempre a lembrar os vigilantes, como se não se soubesse bem que o flash pode “queimar” a imagem, que em geral não fica bem …
Mas, por exemplo, o que mais atrairia, e é melhor evitar (pois se teria de fazer com toda a discrição e guardar apenas para o nosso arquivo pessoal), são os gestos das pessoas nos vários locais públicos, nomeadamente nestes locais “sagrados” que são os museus. Há aliás livros famosos de fotografias feitas por grandes artistas no interior de museus, precisamente sobre as atitudes inusitadas que as pessoas que os visitam por vezes ali adotam espontaneamente. Desde a visitante que nunca viu um quadro abstrato e fica, talvez atónita, a mirar a imagem (esta vontade de tudo explicar, de tudo perceber, se possível instantaneamente, que é o “ar dos tempos”), até àquela pessoa velhinha, quiçá já algo raquítica, que já “encostou as botas à parede”, cá em baixo, dando voltas à estátua de um nu, situado lá muito em cima, inacessível (como acontece em Florença com o David… em torno dele as expressões das pessoas são uma maravilha…), até à outra que, finalmente, descobriu uma janela e, afastando um pouco a cortina à socapa, descortina um panorama do Tejo… não sabendo nós se eventualmente pensará que, perante tão fabuloso espetáculo, não há museu que resista… enfim, um mundo inteiro espera lá fora! Para mais sensações, fotos, espantos e outros encantos!…
Houve sempre excelentes fotógrafos por todo o nosso país, nomeadamente nas grandes cidades como Porto e em Lisboa, mas não só, é claro; a coisa estendeu-se a todas as pequenas localidades, para o casamento, o batizado, a primeira comunhão, etc. Eu adoro observar as montras destas remotas lojas locais. Um fotógrafo é um ser muitas vezes nómada, que, como Duarte Belo magistralmente faz, percorre o território à procura das paisagens e dos sítios inusitados e prenhes de significações esquecidas…
No caso de Lisboa que aqui focamos, basta apontar a título de exemplo a família Benoliel, sobre a qual se publicou em 2019 excelente livro, da autoria do grande Alfredo Cunha, que aliás tem larga obra publicada e bem conhecida. Todo o grande artista é indomável, segue o seu impulso estético, procura, neste caso através da fotografia, algo que é de facto invisível…
Esse “estranho familiar” que Freud tão bem caracterizou: quando por exemplo, acordamos um dia e, se estivermos em Lisboa, e bem situados, e viermos à varanda observar o estuário do Tejo, como se fosse uma gravura antiga… com os seus barcos movimentando-se do Mar da Palha até ao lardo oceano… paisagem, fotografia, que uma outra amiga minha há dias dizia que via todos os dias de sua casa, o que muito invejo… mas que eu até já incluí num velho poema quando, forçadamente deslocado em Angola (não na guerra, felizmente, mas no ensino…), há muitos anos, me doía a lonjura da minha querida Lisboa.
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