“A Orquestra Geração é uma família”

17 de Julho, 2023

Reportagem

Verónica Silva
Um projeto, uma partilha, um legado deixado entre professores e alunos. A Orquestra Geração chega até 2000 crianças e jovens, entre os seis e os 20 anos, em várias escolas do país, sobretudo na região de Lisboa. Ao longo de 15 anos, muitos encontraram aqui uma família e uma paixão: a música. Para além de formar profissionais, formam pessoas.

Fotografia: Verónica Silva

Observa-se a correria num longo corredor. Os passos e as vozes intensificam-se. São 17h30 na Escola Francisco de Arruda, em Lisboa. Os alunos entram nas respetivas salas com os instrumentos. É hora do ensaio. Arrumam-se as mesas a um canto e colocam-se cadeiras em forma de meia-lua, simulando uma orquestra.

A antiga sala de aula é agora um pequeno palco para estes jovens. Ajeitam-se as partituras, afinam-se o violino, o contrabaixo, o violoncelo, o trompete, a flauta transversal. Instala-se a conversa de aquecimento, com gargalhadas e algum nervosismo. Até que a professora Ana anuncia: “Hoje vamos tocar Finlândia de Sibelius”. 

As notas graves iniciam o tema. Depois, juntam-se as notas agudas em simbiose. A sala é dominada pela música, interrompendo qualquer outro pensamento. Iolanda, 15 anos, acompanha a melodia com o violino, sentada num dos cantos da meia-lua. O instrumento foi a sua primeira paixão, mas o violoncelo conquistou-a ao longo do tempo. “Tem um som cheio e grave, o que é muito bonito de ouvir”, explica maravilhada, como se o ouvisse. 

Toca há sete anos na orquestra. Define os ensaios como alegres e frustrantes. “Às vezes, penso ‘não consigo’, mas tenho sempre um professor que me diz não, tu consegues e se for preciso repetimos 50 vezes”. Para Iolanda, o tempo não importa. Acredita que se lhe dizem para estudar, é porque vai conseguir. E é isso que a motiva. “Apesar dos momentos de frustração, os ensaios são maravilhosos, cheios de emoções e coisas diferentes. Podia passar horas aqui”. A boa relação com os professores e colegas, fá-la sentir-se em casa. “A Orquestra Geração é uma família. Há alturas em que nos juntamos todos nos concertos. Fazemos amigos até com pessoas de outras escolas”, diz em êxtase, confessando que mudou a sua vida. “Hoje, dou conta de mim numa escola profissional de música. Quero fazer isto no futuro”. 

Respirar, tocar e repetir 

A professora faz sinal. A música para. Ana faz observações sobre a atuação. Há que melhorar. Estala os dedos, imitando a melodia. Os alunos trauteiam a canção. “Precisamos de respirar, para entrarmos todos ao mesmo tempo”. 

Ana Filipa Serrão, 40 anos, é professora há 13 anos na Orquestra Geração. Dá aulas ao nível juvenil e infantil. Explica que a música vive de respirações. “Se eles entenderem isto, musicalmente vai fazer sentido. A respiração implica que algo vai acontecer. Parece não ter a ver com o instrumento, mas num trabalho corporativo de orquestra faz toda a diferença”. 

Gere entre 30 a 40 alunos. Todos com idades e personalidades diferentes. Encara esta condição como um desafio e não como um obstáculo à aprendizagem. “Não posso esperar que um ‘aborrescente’, como costumo chamar, tenha maturidade para estar quieto e em silêncio numa sala”, afirma, divertida. “Ainda assim, a orquestra funciona bem”. Ana confessa que o maior desafio é fazer os alunos pensarem por si. “Tento sempre que eles se exprimam, mesmo quando não se sabem explicar. É uma forma de os ajudar”, diz, num tom meigo. “Quando alguém tem dificuldades, adaptamos o reportório para se sentir integrado no grupo. Mesmo que fique um ano na mesma peça”, explica.

Para Ana, a evolução dos alunos é sinónimo de trabalho cumprido e satisfação. “É prazeroso vê-los a construir um caráter e uma personalidade pensante. Queremos abrir-lhes horizontes”, revela, de coração cheio. “Isso influencia a sua evolução musical”.

“Vir para a orquestra, fez-me ter uma noção diferente do tempo. Agora aproveito mais”, refere Dinis, de apenas 14 anos. Está no projeto há cinco. Sentado ao fundo da meia-lua, ouve a professora Ana atentamente. Quando toca saxofone, sente uma sensação “incrível. Fazer uma peça do início ao fim sem errar é maravilhoso. Mas quando erro é um aperto no coração”. O menino de cabelo claro e olhar tímido não desiste e tenta mais uma vez. “Estudar meia dúzia de horas e conseguir, é melhor do que fazer uma peça fácil”, conta, sorrindo discretamente. 

Ana Nunes, 45 anos, é mãe de Dinis. Ver o filho tocar é motivo de orgulho e emoção. Conta que o projeto levou-o a entrar para a Metropolitana de Lisboa, uma escola de música. “Ele entrou graças à professora de saxofone. A professora Liliana. Muitas vezes, ia lá a casa ajudá-lo a treinar, para que fosse admitido [na escola]”. Dinis divide-se entre os ensaios da Geração (sete horas semanais) e as aulas na Metropolitana. “São muitas horas, mas ele consegue. Gosta do que faz. O tempo na orquestra, acaba por compensar”, refere. 

Não esconde o impacto sentido na família. “O Dinis quer tocar a toda a hora. É bom ter música ao vivo em casa. O António, de 9 anos, também está na orquestra. Depois, temos uma bebé de 17 meses que adora ouvir o mano mais velho tocar”, conta a mãe ao rir-se com um olhar terno. 

Tudo começou há 15 anos

Estávamos em 2007. António Wagner Diniz, presidente do Conselho de Gestão do Conservatório Nacional decide falar com Jorge Miranda, da Câmara Municipal da Amadora, sobre um novo projeto: A Orquestra Geração. A ideia era aplicar em Portugal o Sistema de Orquestras Infantis e Juvenis da Venezuela, ou mais conhecido por “El Sistema”. O objetivo passava por dar apoio social a crianças e jovens a viver em contextos difíceis, através da música.

Sandra Martins, 45 anos, é vice-presidente da Geração. No mesmo ano, começou a dar aulas na Miguel Torga, a escola onde iniciou a orquestra. “Tínhamos 12 ou 15 miúdos”, diz nostálgica. Espelha o carinho sentido pelos primeiros alunos. “Foram os primeiros filhos de um projeto. Foi uma descoberta mútua entre nós e eles”.

Ainda hoje, é professora na Escola Miguel Torga, na Amadora. Dá aulas aos quatros níveis da orquestra: iniciação, pré-infantil, infantil e juvenil. “Apesar de ser um projeto social, ensino como se fosse numa escola de música. A exigência é a mesma. Até porque estão lá, por vontade própria”, explica. Os alunos pedem que assim seja e Sandra reconhece a importância da proximidade com os jovens. “Cada um tem o seu papel. A orquestra é como uma equipa”, reforça. 

Evanilda Veiga entrou no projeto com 14 anos. “Achava que a música clássica era para velhos”. Uma década depois, é contrabaixista e está a tirar o Mestrado em Performance em Roterdão. Sente saudades de tocar para o público e do convívio. “O concerto mais marcante, foi no Pavilhão Paz e Amizade. Era um side by side com a Gulbenkian. Permitiu-me tocar com músicos profissionais”, diz ao lembrar-se da emoção. 

“No 9º ano percebi que queria ser músico”, conta. Recorda o papel do professor Samuel no seu percurso musical. “Foi uma pessoa marcante. Fez-me perceber que tinha algo para dar. Ele insistia para estudar”. E desde aí, Evanilda nunca mais parou. A vontade de ir longe não acaba. “Desde que a orquestra cruzou o meu caminho, tenho objetivos. Orgulho-me disso”, acrescenta. 

Tem ainda uma ligação forte com o projeto. Embora tenha saído há nove anos, continua a sentir-se aluna. “Sempre que posso faço ensaios ou concertos”, refere. Aventurou-se também como professora no ano passado. “Tive receio. Era algo novo. Mas a convivência com os alunos ajudou”, explica. A base é conhecê-los, perceber as suas dificuldades. “Fazer alguém evoluir é gratificante. No início, não sabia que tinha capacidades para tal”, confessa.  

Muito mais para além da música

Numa outra sala estão Maria e Mafalda, de 9 e 11 anos, respetivamente, acompanhadas pelo professor João. Tocam eufónio. “Não desistam”, afirma João. 

Mafalda está na orquestra há um ano. Maria chegou apenas há uns meses. “Sempre me confundi com o nome do instrumento. Então, chamei-o de Eugénio”, diz Maria ao soltar uma gargalhada. “Vir para aqui fez-me sentir mais feliz”, refere sorrindo envergonhada. Mafalda concorda com a amiga e admite ter subido os resultados na escola. “Era difícil concentrar-me. Agora, tenho mais atenção nas aulas”. 

Ambas querem ser tubistas, mas o contrabaixo também está nos planos de Maria. Em palco, os nervos e a felicidade misturam-se. “No final, o nervosismo desaparece, porque percebemos que tocamos bem. Ficamos orgulhosas umas das outras”, diz Mafalda contente. 

João Aibéo, de 42 anos, é professor na orquestra desde 2008. “Juntei as duas no ensaio individual, pois entraram perto da mesma altura”, explica. Uma empurra a outra e a entreajuda facilita o processo. “O facto da Mafalda ter entrado mais cedo, ajudou a Maria a progredir”, conta. Na Geração os alunos mais velhos são aliados dos professores. A experiência fá-los ajudar os mais novos. “Existe uma empatia natural. São colegas. Há uma maior aceitação quando são eles próprios a ensinar”, diz. João admite que a música os torna próximos. E mais do que isso, é uma “ferramenta para lhes transmitir valores”. Sente-se feliz ao ver os alunos crescer e a serem autónomos. “Nós andamos aqui por eles. No fundo, por querer que ajudem a sociedade a ser melhor”.

ARTÉRIA

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

TAMBÉM QUER PARTICIPAR?

Envie-nos um email para arteria@publico.pt, dizendo-nos que histórias 
quer contar ou como gostaria de contribuir para o Artéria. Terá sempre resposta.

Pin It on Pinterest