Enfermeira de profissão, escritora nos tempos livres e alguém que, segundo a própria “tem muitas páginas em gavetas”, Ana Ribeiro Nel volta a partilhar um dos seus textos com o Artéria. Mais uma crónica em que comprova a sua capacidade de ver para além do óbvio e também uma habilidade inata para escutar (ou mesmo roubar) as conversas alheias que todos os dias povoam a capital.
Passo a explicar. Primeiro, ando a pé por Lisboa. Seja por ruas, becos ou travessas que não conheço, ora por sítios que me são familiares. Depois, com ouvido de tísico, oiço as conversas que saem das casas, dos cafés, das lojas, dos bairros. Talvez seja uma espécie de ladra de conversas. Estou atenta às janelas e aos estendais, que revelam um pouco as características dos seus residentes. Há quem tenha roupa estendida sem molas, tipo vestuário adormecido, há quem estenda a roupa com sabedoria geométrica. Há toldos improvisados, alguns moradores gostam de exibir flores em pequenas varandas, mesmo que sejam flores de plástico ou pequenos altares.
Às vezes paro para fotografar ou gravar uma ideia no telemóvel, como as duas pedintes sentadas à porta da igreja de São Domingos que abanam o copo com moedas à minha passagem, mas o mais importante é continuar a andar, quero ver as pessoas que são menos vistas e reparar nas coisas que normalmente não reparo. A luz branca de Lisboa, as empregadas de um restaurante de comida asiática preparam a esplanada, outros lojistas elevam as suas grades, há uma idosa que desce uma rua inclinada agarrada ao corrimão com uma das mãos, com a outra leva um cigarro à boca, traz uma bata vestida por cima de calças de flanela.
De dentro das lojas vêm sons de uma língua que não conheço, são dez da manhã e cheira a especiarias, um talho Halal está cheio de clientes e alguns esperam cá fora com copos de café na mão. Uma senhora, que não consegue abrir a porta do seu prédio, pede a ajuda a um vizinho que prepara a mota de entrega de refeições.
– Vê lá se consegues abrir ali a porta.
Ela vem carregada com sacos, pousa-os no chão, cansada. O homem devolve-lhe a chave.
– Tem que dar um balanço nela.
Ainda vejo algumas pessoas com máscara na rua, sobretudo idosos, a máscara foi só mais uma coisa a que se tiveram que adaptar. O som das gaivotas que sobrevoam a praça do Martim Moniz e daqui não se vê o rio. Há uma fila que se adensa para o 28. À porta de uma pastelaria está um rapaz loiro enrolado numa manta cinzenta, o cabelo revolto, sentado numa cadeira de metal. Noutra rua encontro uma construção feita com caixas de cartão que eram de uma casa de venda de bacalhau, agora são a casa de alguém. Mais à frente dormem mais pessoas nestas camas de cartão, lá vejo os pés dos seus habitantes, sei que ali estão a dormitar ou simplesmente não sabem ou não podem existir de outra forma.
Num pequeno largo com árvores, um homem e ao seu lado dois grandes sacos com mantas dobradas, mais um colchão de campismo enrolado e um guarda-chuva, tudo impecavelmente arrumado como se fosse de viagem. Quando eu apanhava o comboio com os meus avós, a cada saco chamavam volume. Dois volumes e um homem num banco de jardim à espera que seja noite.
Está sol, assim que se aproxima a hora de almoço há muitas pessoas a aquecerem-se com os seus raios, como animais a saírem das suas tocas, encostadas a gradeamentos ou paredes, sentadas em degraus, a maioria são homens de trabalho que aproveitam a sua hora de refeição, protegem os olhos do sol direto, um deles come de uma caixa de plástico. Decido ir almoçar também. Escolho um pequeno restaurante lotado na Praça da Figueira. O balcão está cheio, há fila para a sopa e bifana, o empregado eleva o tom de voz.
– Lugar para mais um.
Os funcionários das mesas são ágeis como bailarinos. Do lugar ao meu lado alguém diz,
– Depois traga a conta.
O primeiro bailarino traz rapidamente o terminal multibanco e encerra o ato com uma vénia e o recibo. Bravo!
Termino a minha deambulação com uma ginjinha. Tento tirar uma selfie com o copo da ginjinha na mão mas não consigo. Fico no meio de um grupo de turistas e oiço um pouco das explicações do guia sobre a cidade. Sento-me, por fim, também eu a aproveitar o calor da tarde.
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