Tinta por uma linha.
A décima quarta crónica de Francisco Mouta Rúbio, acompanhada pela ilustração do artista dualgo.
E a cidade toda desenhar-se-á pelas quatro paredes que restam, o mundo caberá nestas estantes soltas, de livros, ideias, gestos e imagens por onde me enclausuro até ao final dos dias.
Acordo iluminado com a luz dos fachos vindos de Brasília incendiando-me as veias civilizadas e “as tristezas sobre pernas” obrigam-me a saltar do sofá:
(caminho avenida afora)
Hoje aviso já que as livrarias estão fechadas, as esplanadas da Penha recolheram-se, as caras vizinhas entroncaram-se, o comércio esqueceu a tradição e desaloja-se empurrado pelas rendas distópicas, os restaurantes só podem oferecer vapores fritos anunciando soluções cinzentas para a nossa carteira | LOW COST | é a lei do mais explorado, a cidade continua a chorar à espera daquela luz.
Bicicletas com caixas verdes, e a tal palavra começada por U inscrita, sobem esta colina, barbearias com cortes a três euros na Almirante Reis, as casas vazias vendidas a ninguém para conseguirem atingir o gold, diggers eternamente insatisfeitos procurando ser para além de milionários.
Pela Paiva Couceiro, do lado da praça de táxis gritos, São todos uns trafulhas do caralho!, e eu não sei mais o que fazer, o que vos dizer, como desvelar a complexa teia que a cidade desenhou, talvez reste sublinhar O´neill “Pela rama é que se fala do bosque quando não se quer ver o bosque”, no meu bolso, o whatsapp ribomba incessante, estéreis explosões anti-gramaticais, aprenderam com Brasília, é um instantinho até Lisboa.
Às portas do sol, colunas potentes mastigando sons latino-preguiçosos “entravessam” caldos marinados a litros de azeite, deve ser a comida estrangeira; a cidade à procura dos seus símbolos torna-se estrangeiro, o que é nacional afinal não é nacional, não é bom, prolongam-se feiras, mercaditos de natal sem bonecos nem neve até os turistas continuarem a comer sonhos, a vomitar euros.
A calçada portuguesa transformada na viagem de Dr.Gonzo e Raoul Duke, num labirinto de tuktuks, bancas de souvenirs, três miúdas encavalitadas numa trotinete, iááááááááu, homens pequenos velozes abrem ementas maiores que eles em cima dos meus olhos, perseguem peões até se esconderem na taberna-papa-turistas, grupos de crianças ruidosas abalroam quem decidir enfrentá-las, e um corpo preso dentro de um colete fluorescente lidera, grita, gesticula para a massa juvenil, o vento agita as camisolas do ronaldo, que entra na área contemporiza desmarca-se salta e gooooolo subiu até ao segundo andar e fez a crina do galo de barcelos ondular, as miniaturas do eléctrico 28 a desconchavarem-se pelas prateleiras de plástico, na esquina da Sé está mais um Kilas a vender chá, caldinhos e bolinhos, está na hora são five o’clock tea, sir, do you want something?, a carne na grelha a crepitar.
Fico quieto a contar cabecinhas na fila pelo último pastel-de-alguma-coisa que ainda vão descobrir num texto de uma revista TOP que indicará os 10 spots mais instagramáveis da cidade que antes era nossa; ah bons tempos, Lisboa era dos nacionais, dos alfacinhas, dos bons da fita, dos que não acreditam nessa prestidigitação de que quem não viaja, só conhece uma página desse livro chamado O Mundo; T2 em Picoas a 500 euros, menus de almoço a quatro e meio, o Cais do Sodré, o 28 era tudo nosso, só nosso, uma maravilha este cheirinho a orgulhosamente sós; de um dos lados do largo do Martim Moniz abre-se um poema-escada onde palavra a palavra se vai desembrulhando um verso rolante:
roma ao contrário é amor
e esta cidade virada do avesso
como se escreve?
(continuo a passo apressado, esperando que ninguém tenha reparado que fiquei ali especado a olhar para escadas rolantes à espera de palavras)
descanso na esquina do bar da Mouraria que se transformou em alojamento local e já não resta cheiro das sessenta e uma noites em que realizámos impossibilidades, cantámos abraços, fumámos madrugadas preenchidas por paixões mentirosas, um recreio para os jovens descobrindo-se adultos se entregarem aos licores coloridos, idiomas desconhecidos e depois quase de manhã atirarem vasos pelas janelas, partirem copos de vidro frágil e derrubarem as muralhas dentro de si, e rir até a cabeça se empapar no dia a seguir. O dia a seguir chegou.
Veja mais sobre os trabalhos de dualgo em: http://instagram.com/du.algo
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.
TAMBÉM QUER PARTICIPAR?
Envie-nos um email para arteria@publico.pt, dizendo-nos que histórias quer contar ou como gostaria de contribuir para o Artéria. Terá sempre resposta.