Medo das alturas? Talvez. Mas sobretudo “pequenez de vistas”, sustenta o leitor Vítor Oliveira Jorge, numa informada digressão retórica sobre as razões de Lisboa e do país, em geral, nunca terem mostrado apetência por construção de cariz monumental. Apesar da tão propalada grandiosidade da sua história, e tiradas honrosas excepções, a arquitectura lisboeta sempre se mostrou timorata, diz.
Desde que, como estudante de história da arte (do professor Jorge Pais da Silva), tomei conhecimento deste autor do século XVI e do pensamento que está resumido no título do seu famoso escrito (inicialmente publicado em 1571 em Lisboa) – o qual, traduzida a mensagem que veicula em termos atuais, seria algo como “Da monumental arquitetura de que Lisboa, grande capital europeia, necessita” – que ele profundamente me tocou.
De facto, algo a partir dessa ideia ressoou em mim naqueles anos salazarentos: a consciência de uma tendência para alguma “pequenez de vistas” e evidente carácter periférico do nosso país, onde os projetos de vulto não eram, nem ainda são, abundantes. Basta pensar, hoje e agora, na limitação das nossas ligações à grande Europa, uma coisa vital para pensar e construir Portugal. De bradar aos céus!
A primeira (primária, e portanto de certo modo errónea) ideia com que se conotaria essa impressão seria uma pequena escala (e/ou tendência para a horizontalidade em detrimento da verticalidade) da imagem monumental, artística, urbanística e em geral física, paisagística, do nosso país (onde nem existem altas montanhas…), das relativamente modestas dimensões de muita da sua arquitetura, bastando dar como exemplo algumas pequeninas, maravilhosas contudo, igrejas românicas do Norte.
E, mesmo em Lisboa, a belíssima torre de Belém é uma joia arquitetónica precisamente nas suas dimensões relativamente reduzidas, e ainda, mais acima em latitude, o mosteiro da Batalha, nosso gótico mais “flamejante”, maravilhoso e altaneiro sem dúvida, dá uma impressão menos “vertical” do que à partida seria de esperar (sobretudo quando comparado com as grandes catedrais góticas europeias)…é certo que aí, na Batalha, estamos perante um mosteiro e não diante de uma catedral inserta numa cidade… Mas, que me desculpem os escalabitanos, quando vamos na autoestrada, e vemos o anúncio de “Santarém, capital do gótico”, não podemos deixar de sorrir… apesar das maravilhosas obras que essa cidade, a cidade do meu afável e erudito Prof. Veríssimo Serrão, contém.
Também é verdade que “small is beautiful”, e que a própria pequenez de escala de alguma da nossa arquitetura preservada (popular ou erudita) é, em si mesma, uma característica distintiva, diria mesmo identitária, de Portugal… com o seu charme próprio, como até chega a acontecer com o romântico palácio da Pena, alcandorado em Sintra e bem visível em toda a região… embora de inspiração estrangeira, como sabemos. Por outro lado, lembramo-nos de como o historiador norte-americano George Kubler caracterizou a arquitetura portuguesa dos séculos XVI e XVII, contribuindo para a definição do austero e sóbrio “estilo chão”… o que é importante ter em linha de conta no contexto do que estou aqui a dizer.
Saltando agora para uma dimensão mais ampla (porque de facto falar de Lisboa implica falar de todo o país), parece ter havido sempre uma certa tensão em Portugal, entre um provincianismo apoucante e autocomplacente (corporizado no ruralista Salazar, por exemplo), por um lado, e um desejo de grandeza que, falhadas as tentativas de expansão para a Europa, levou a que esta periferia de marinheiros, de homens do mar, se lançasse na algo louca expansão marítima. A nossa grandeza e salvação, traduzida por Camões n’ Os Lusíadas, foi também de certo modo a nossa tragédia: essas duas faces da mesma moeda- Gil Eanes e Sebastião, a dobra do Bojador e Alcácer Quibir.
Ainda hoje, a maior parte do território português fica no mar…é por isso que sempre defendi que uma das coisas que falta a Lisboa, ou a Portugal se quisermos, é um grande Museu (não de “descobertas”, mas…) do Mar. Um hino à especificidade de Portugal, praia ocidental da Europa!
Claro que houve sempre “estrangeirados”, os que iam “lá fora” e de lá de fora, ou seja, da Europa mais grandiosa, nomeadamente na amplitude dos seus conceitos e das suas obras, traziam inspiração para Portugal, como foi Pombal, e tantos outros. A corte portuguesa não estava tão desfasada do resto do continente como ignorantemente se poderia imaginar, até pelas alianças implícitas ao sistema régio. Por exemplo, grandes músicos estrangeiros (e portugueses, claro) tocaram e ensinaram no reino, bastando lembrar que o terramoto de 1755 destruiu em Lisboa a maior coleção de pautas de música da Europa. O que se não terá perdido, em termos de música barroca – que adoro – nesse tremendo desastre…
O lisboeta Holanda, como homem viajado, como renascentista, humanista, inspirado no que se passava em Évora (embrião do colecionismo de antiguidades tão típico da Renascença) e no que vira em Itália, pensava, e com total razão, que Lisboa, na sua época (séc. XVI), uma cidade-chave, nó do comércio marítimo, devia ostentar uma outra arquitetura, uma mais imponente fachada, própria de um país e de um povo que tinha “dado novos mundos ao mundo”.
É certo que Lisboa, depois do terramoto de 1755, teve um plano formidável de reconstrução, o da Baixa pombalina, o qual culmina na criação de uma das mais belas praças neoclássicas da Europa, o Terreiro do Paço, porta da cidade. Mas, mais uma vez, com a característica portuguesa: grandiosa, mesmo desmesurada, em espaço e, no entanto, ladeada de edifícios que não procuram impor-se pelo seu vulto.
É certo também que já D. João V dotara os arredores da cidade de um magnífico convento-palácio, o de Mafra, que de forma tão feliz José Saramago aproveitou para uma das suas muitas inspiradas obras, hoje célebre em todo o mundo. Quando lá vou, fico sempre deliciosamente “esmagado” pela grande “fábrica” que ali demora, que ali se impõe à paisagem, a compensar a relativa pequenez do chamado “palácio de Queluz”, na verdade uma antiga quinta de recreio, a qual, mau grado a sua beleza, é diminuta, nomeadamente quando a comparamos (sem que se trate, de facto, de uma analogia pertinente) com o majestoso Versalhes.
Eu até sou um grande apreciador do barroco (de introdução tardia em Portugal e do rococó), nomeadamente na música e na arquitetura, e temos no nosso país, além de Mafra, grandes e abundantes manifestações do barroco, como todos sabemos, nomeadamente no Norte do país, bastando lembrar o monumental escadório do santuário do Bom Jesus de Braga.
Por isso, gosto tanto da zona de Belém, em Lisboa: dos Jerónimos, por certo, grandiosa igreja-salão (o que corresponde ao nosso gótico final) e claustro; do Centro Cultural de Belém, magnífico na sua maciça “fábrica”, quase evocando um zigurate mesopotâmico (mas não em altura, tudo bem, porque assim fica melhor enquadrado no conjunto…); do próprio novo Museu dos Coches, os quais bem o mereciam; e, finalmente, do próprio MAAT, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, que confere uma acrescida grandiosidade e contemporaneidade (por alguns não acolhida…) à zona ribeirinha do Tejo.
Um Francisco de Holanda dos nossos dias haveria de gostar de se passear por ali…num Portugal finalmente de novo devolvido à sua terra-mãe, a Europa. A Europa (e através dela o mundo todo) relativamente à qual só nos faltam, clamorosamente, duas infraestruturas básicas, já aludidas de início: um aeroporto digno da capital, necessário e urgente há décadas, e uma rede ferroviária rápida que nos ligue de forma célere, com conforto e com eficácia económica, às outras grandes capitais europeias (e ao Porto, claro).
Estas duas infraestruturas, que continuam a falecer a Lisboa e ao nosso território em geral, são cruciais para que Portugal se realize, verdadeiramente, como país europeu, cosmopolita, não apenas no efémero (embora vital) turismo, mas também nos grandes debates e desafios da contemporaneidade. Esses desafios passam pelo arejamento de ideias que é necessário num país democrático e liberto de mitos passados, e portanto sem passadismo, mas também, é claro, pela economia, por tirarmos partido da nossa “frente” marinha, a começar pelo terminal de Sines, que se afigura cada vez mais interessante no contexto que vivemos.
Porque um país e uma cidade capital, tal como o vejo espelhado em filigrana no pensamento, inovador para a época, de Francisco de Holanda, é uma realidade que tem de ser pensada em conjunto. Lisboa é o coração do país, mas ele é regado pelo sangue vital que lhe vem de todo o território, continente e ilhas, e que, em última análise, é uma placa giratória do que queremos para um mundo articulado, mais belo, mais grandioso, mais harmonioso e justo. Onde não há praticamente uma área, por longínqua que seja, em que não vivam portugueses, que são também Portugal, que são também Lisboa, seu símbolo, seu hino e sua bandeira.
Lisboeta como Francisco de Holanda, sinto-me português, europeu, e cidadão do mundo. E, reconhecendo as muitas atribulações por que a Europa ao longo da sua história passou, é daqui, desta capital brilhante de luz no seu “Mar da Palha”, no seu magnífico estuário, que eu olho para o resto do mundo, contente por ter nascido e me ter formado aqui.
Aos leitores mais interessados em História, e que desejem conhecer Francisco de Holanda, aconselho este texto (que contém abundante bibliografia final) da investigadora Cristina Osswald, que poderão aqui encontrar: www.academia.edu/83213665/Francisco_de_Holanda_Da_fábrica_que_falece_à_cidade_de_Lisboa.
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