Crónica

Vítor Oliveira Jorge

A “hora parada”: passeando na Lisboa de Botelho

18 de Novembro, 2022

“Ramalhete de Lisboa”, Carlos Botelho, 1935

Apesar de confessar não pretender ser erudito, o leitor Vítor Oliveira Jorge entrega-nos mais um texto pleno de conhecimento e de sensibilidade. Desta feita, e já depois de nos ter lembrado a grandeza da obra do pintor Manuel Amado e da sua relação com Lisboa, escreve a propósito de um outro artista plástico pouco referido pela maioria das pessoas na sua ligação criativa com a cidade: Carlos Botelho. Urge (re)descobri-lo.

Não desejo, nem posso aqui, escrever mais um artigo erudito, literário, ou científico sobre o artista Carlos Botelho (1899-1982) e sua imensa e multifacetada obra, já bem divulgada e conhecida. Muitos o fizeram. São notáveis, por exemplo, os textos que Raquel Henriques da Silva elaborou para o grande livro publicado pela Presença em 1995, com a colaboração de Manuel Botelho, neto do pintor.

Quero apenas dizer, a abrir, que há olhares que nos fazem parar, imagens que nos olham. Deve talvez ter havido algures, no meu passado, uma das muitas paisagens de Lisboa, pintadas por Botelho, que entrevi, que me entreviu, e que, como tudo o que nos marca, nem que seja fugidiamente, só mais tarde, pela recorrência com que volta à memória – neste caso, sobretudo visual – essa experiência, essa surpresa, esse entreolhar, se nos vai relevando como significante. Volta a olhar para nós, a interpelar-nos. Cumplicidade subtil de silêncios, que não conhece a cronologia.

Cruzamento, afinal, entre uma Lisboa imaginária de Botelho e essa Lisboa que contemplo agora aqui de cima, por exemplo do jardim do Torel, do alto da Graça ou do Castelo de São Jorge… ou ainda do terraço magnífico, panorâmico, de uma afortunada amiga que vive no centro antigo, e cuja vista excede a de todos os miradouros possíveis da cidade.

Lisboa, sempre a imagem de algo que “me pertenceria” de raiz, porque aqui nasci, e de algo que paradoxalmente sempre se me escapou e escapa, em metamorfoses e astúcias constantes, como as de uma “mulher fatal”…inalcançável – a da minha mitologia pessoal, bem entendido. Mas, afinal, qualquer cidade nos foge inevitavelmente assim. Nunca se deixa abraçar. E nas telas de Botelho, como seria de esperar de um grande artista, Lisboa metamorfoseia-se constantemente, qual sucessão elástica de perspetivas, de cores e de volumes, que, observada em sequência, nos transporta para um universo onírico, em movimento constante, sobre o pano de fundo de uma suspensão do tempo, e do olhar maravilhado.

Terá sido então essa Lisboa (a dos quadros dele e a da minha memória) parada, antiga, imaginária, feita de um casario entrelaçado até ao rio, e de pequenas ruas, vielas, e diminutas figuras humanas, que ficaram ali a passar, evanescentes, como podiam não estar lá, marcando a ausência de si mesmas (como também por vezes as de pequenas silhuetas de barcos que Botelho colocava em pano de fundo, sobre um Tejo imóvel e plano) que eu vi.

Nesse tempo em que conheci os quadros da Lisboa de Botelho, parecia que não se passava nada, mas nós sabíamos, claro, que esse aparente “nada” era apenas o inverso de uma torrente que se escoava sem som, a torrente da história que continuava, febril, lá fora, no mundo, por detrás do silêncio e da nossa suspeita: sem dúvida também dentro de cada casa, dentro de cada janela. Portugal estava suspenso do porvir. Mas Botelho – que, como tantos dos seus amigos, viveu e teve de trabalhar enquadrado no regime que quis parar o país numa mística salazarista – nunca cedeu ao folclorismo reinante, como se vê bem nas imagens que no livro citado Raquel Henriques da Silva e Manuel Botelho agruparam sob o título geral de “Narrativas”.

Botelho compôs uma arquitetura pictórica que, por vezes, dir-se-ia quase “infantil”, ou “ingénua”, ou, como sugeriu Max-Pol Fouchet, aquando da exposição de Botelho no Centro Cultural Português (Fundação Gulbenkian) de Paris, “angélica”, mas no mais importante que tem o “angelismo”, ou a pretensa ingenuidade da infância, e que a arte nos pode devolver.

Tudo isso dado por ele através de uma construção imagética que nada tem de simples, afastado que está de todo o academismo “representacionista” ou naturalista, antes produto de uma reinvenção livre, metafórica, imaginária, musical, própria de uma maneira muito pessoal de exercer um modernismo amadurecido. Mas ainda ecoando, como “pré-texto”, um espaço “típico” português, corporizado na Lisboa antiga, com as suas secretas vielas, escadinhas, prédios, tudo “muito chegadinho a tudo”, como acontece e nos fascina na cidade histórica, com esse casario em escada, e, lá em baixo, muito ao longe, o rio Tejo, como se fosse um lago. Tudo muito “posto em sossego”… um sossego, claro, apenas aparente. Pois há uma “inquietação” sempre, paradoxal, em toda a grande obra, desassossegada por natureza, e tal decorre, no caso de Botelho, de tantos dos seus desenhos, caricaturas, cartazes, pinturas, em que a vida mexe, ou então se congela (como no retrato frontal da sua filha Raquel, 1935) para melhor nos captar na estranheza do gesto assim fixado.

A Lisboa imaginária e maravilhosa de Botelho é, portanto, afinal, o contrário, em absoluto, daquilo que as torrentes de turistas ávidos hoje parece procurarem – “animação” –, saindo e entrando de forma surpreendente das mais recônditas casas ou vielas. Todavia, não andará cada pessoa, cada viajante, sempre em busca da, se possível, secreta surpresa?… Não estará por detrás do rosto de cada visitante sempre a ânsia e uma certa “des-ilusão” que toda a viagem contemporânea causa?

Encontro, nesse silêncio surreal que perpassa nas panorâmicas urbanas botelhianas, no segredo das fachadas, na arquitetura de ruas e janelas, algo que agora associo a um outro pintor de Lisboa, de facto totalmente diferente, de outro tempo já, Manuel Amado. Porém, há em ambos, e em Lisboa também, que agora já vivenciamos através deles, e do diálogo que instalamos entre um e outro, algo que nos interroga de modo tão particular…talvez essa nostalgia que se sucede à festa, como também refere Fouchet a propósito de Botelho.

É a imagem (mais uma vez, a do entreolhar do quadro de Botelho e a da minha memória, sobretudo, claro, a dos bairros antigos) no seu torvelinho de ruas e vielas, que se pode tornar também “atabafante”, só pitoresca e afável para quem passa apressado, que tenho de Lisboa da minha infância e juventude, a imagem de um país e de uma cidade ausentes na sua própria presença, suspensos, como suspensa era a longa noite em que vivi até acordar com o 25 de abril. Um acordar de um pesadelo?

Sim, mas apenas essa palavra seria demasiado simples para caracterizar esse sono em que Botelho se moveu, atarefado, e em que vivemos todos os que são da minha idade. Foi um acordar de uma vida de sonho estranho, surreal como todos os sonhos, como essa cidade imaginária que Botelho não cessou de pintar, de um modo que, por mais que se explicasse, nem ele próprio saberia porquê. Os porquês, as respostas, não entram na feitura artística, são sempre um embaraço para os fazedores, os porquês vêm depois, da boca ou da pena dos comentadores, dos historiadores de arte, dos críticos, de todos esses intermediários, que todos são precisos, evidentemente.

Mas os artistas – como nos filmes mais “pessimistas” de Ingmar Bergman (um autor que descobri ao mesmo tempo que “vi” Botelho) – são os únicos que, pela sua capacidade mágica, transformam os piores sonhos em beleza, em sublimidade, erguendo algo que ninguém conseguirá jamais atabafar. Por isso, todas as ditaduras tentam debalde instrumentalizar a arte, torná-la folclore ou simplesmente destrui-la ou escondê-la.

Não se trata de sacralizar nada. Mas a obra – ou sucessão de obras que, neste caso das imagens da Lisboa de Botelho, é conveniente observar em série, como resultado de uma tentativa quase obsessiva de repetir, para ver o diferente, para “entender” ou “captar o espírito” da cidade – por mais que a interroguemos, conserva sempre um segredo que é diferente de pessoa para pessoa, de momento para momento, e que é sempre estranho mesmo para o seu fazedor.

Não é possível, já o disse, abraçar uma cidade! Como não é possível abraçar uma pessoa! Como não é possível resumir uma vida, dar-lhe um sentido, sem a matar antes de tempo, que a vida é morte também: mil mistérios sempre em multiplicação. Por isso nos dói, mas também – quando se teve uma vida cheia, e rica de experiências, como a de Carlos Botelho – paradoxalmente nos sossega, quando alguém parte: que descanse em paz. Como o ponto final de uma longa frase, que só então começa a ter sentido, retrospetivo.

Botelho partiu em agosto de 1982, com 82 anos (faltava um mês para completar 83…), e ainda nesse ano (em maio) deu uma entrevista à RTP que resultou num documentário interessante (com texto de Rocha de Sousa e realização de José Elyseu) sobre alguns aspetos da sua vida e obra (se fosse mais completo, teria de ser uma longa metragem, bem merecida aliás): https://arquivos.rtp.pt/conteudos/botelho-um-olhar-na-cidade/. Nada fazia adivinhar nessa figura que nos fala, tranquila, serena, simples, bem disposta, ativa diante do seu cavalete, que aquele pequeno filme de cerca de 30 minutos seria o (que julgo ser) seu último testemunho pessoal significativo.

Ficam-nos as suas palavras, ditas muito antes, em janeiro de 1950, a João Gaspar Simões, numa entrevista para o “Diário Popular”: “Van Gogh e a Costa do Castelo para onde fui viver (…), eis os meus “reveladores”. Um deu-me o segredo das cores e das formas, a outra deu-me o modelo. Pus-me a pintar a “minha” Lisboa.” (cf. Raquel H. da Silva e Manuel Botelho, “Carlos Botelho”, Lisboa, Ed. Presença, 1995, p. 46).

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