“Quando as pessoas se agrupam para tentar resolver um problema, surgem ideias interessantes”

31 de Agosto, 2022
O Artéria entrevista a Artéria. Ana Jara, fundadora e actual presidente da associação com o mesmo nome, que põe em diálogo arquitectura, urbanismo, antropologia e produção cultural, também é vereadora em Lisboa. Mas foi na condição de pensadora sobre os problemas da capital portuguesa que falou connosco. E também na de arquitecta no ateliê com o mesmo nome. Confuso? Apenas complexo, como as cidades. A solução é sempre trabalhar em comunidade, diz.

Entrevista

Samuel Alemão

Artéria: Esta entrevista nasce de uma coincidência e de uma irritação. A vossa irritação com o nosso nome. Gostava que me falasse um bocado do porquê da escolha deste nome, Artéria.

Ana Jara: Nunca foi irritação. Foi talvez uma coincidência interessante, porque o nome Artéria nasceu com uma associação que se formou há 10 anos em Lisboa, num contexto muito diferente e em que era necessário falar dessa maneira. O contexto era a cidade degradada, a necessidade de reabilitação urbana, a crise que abalou o país em 2010/2011, que paralisou muitas actividades, inclusivamente a actividade que a maioria das pessoas que fundaram a Artéria tinham, que era a arquitectura. De uma forma muito taxativa, importa dizer que a Artéria nasceu num momento em que a arquitectura era necessária para resolver alguns problemas. Nomeadamente, os problemas existentes no sítio onde a Artéria nasceu, que é aqui na Baixa, entre a Baixa e a Mouraria. Se nos lembrarmos, tudo isto, há dez anos, tinha muito que se lhe dizer.

Sim, a cidade mudou muito, sobretudo esta parte aqui. Para melhor?
Acho que aquilo que se reivindicou nessa altura – e a Artéria fez parte disso, na altura em que se reivindicou a reabilitação urbana -, o olhar para os bairros históricos, olhar para as pessoas e as condições de vida que elas tinham…isso, enfim…a reabilitação que chegou não foi de encontro a isso. E isso continua a ser uma evidência. As pessoas que ainda vivem nos bairros históricos vivem mal, cada vez vive menos gente. E os bairros históricos, entretanto, foram o palco de um processo de turistificação.

Mas a recuperação do edificado é um facto. Não se compara com o que era há dez anos. As pessoas diziam que a cidade estava a cair, ninguém ia à Baixa.
Acho que a reabilitação que chegou não foi para as pessoas. Foi uma reabilitação do edificado, não foi uma reabilitação com a componente social, com a componente comunitária. Com uma série de componentes e valências que até poderiam produzir uma cidade muito mais eficaz do ponto de vista da sustentabilidade, ecologicamente centradas numa cidade com características ambientais diferentes. Aqui foi muito visível, porque dava aqui à costa todo o tipo de demolição que se projectou durante esses anos. E ainda continua. Os edifícios são completamente esventrados e depois reconstruídos, numa perspectiva apenas de rentabilidade e de uso que não é um uso que privilegie as pessoas que habitam. Muita gente foi despejada, muita gente perdeu o seu direito ao lugar.

Isso foi consequência da chamada “Lei Cristas”?
Sim…da lei que, entretanto, entrou em vigor de forma a esvaziar e permitir os esvaziamento de zonas da cidade como estas, que estavam muito habitadas. Não concordo com a ideia de que a Baixa estava vazia.

Mas era muito frequente, nos anos 90 e na primeira década deste século, um discurso público sobre a Baixa estar vazia à noite, de não se ver vivalma a partir de certa hora…
Acho que a nossa relação com a Baixa sempre foi uma relação de vir aqui…Os lisboetas todos sentem que têm na Baixa o centro da sua cidade. As dinâmicas que se produziram na Baixa foram sempre do centro para a periferia, descurando muito a ideia de que há pessoas a viver na Baixa. E há pessoas a viver na Baixa, sempre houve. Basta abrir aqui a janela e ver que ainda há ali neste prédio…sempre viveu aqui muita gente. E isso ainda era possível de ver há dez ou cinco anos atrás, talvez. Ainda era possível ver a vida de bairro que a Baixa tem, que parece invisível à maioria das pessoas. Quem passa o dia aqui consegue ver isso.

Mas pode-se sempre contra-argumentar que é verdade, muitos dos moradores que cá estavam foram expulsos, mas chegaram outras pessoas. Ou essas pessoas têm uma relação muito diferente com o espaço da cidade?
Vou dar o exemplo do sítio onde estamos situados. Este prédio era um prédio que tinha várias actividades. Este espaço era uma oficina de joalharia, havia ali um escritório de advogados, havia uma imobiliária, havia armazéns de lojas da Baixa, que vinham aqui colocar os seus produtos. Neste momento, o prédio inteiro é de alojamento local. Aqui no último piso, temos resistido para não abandonar o lugar, até numa óptica de perceber que isto veio e isto vai. Quem tem a força maior são as pessoas que habitam, são as pessoas que ficam, que pertencem aos lugares. Nesse aspecto, a Artéria continua a estar no mesmo local onde surgiu, embora não trabalhe neste lugar onde foi gerada. Começámos a trabalhar aqui, entre a a Baixa e a Mouraria, e os primeiros trabalhos foram muito centrados num trabalho de campo aqui.

Aliás, o vosso primeiro trabalho foi o edifício-manifesto que viria a ser a sede da Associação Renovar a Mouraria. O trabalho que fizeram na altura deu frutos?
Foi num momento em que não havia um trabalho muito visível a ser feito. Quer dizer, ele visível era, porque estes bairros estavam abandonados e as pessoas precisavam de melhores condições. Mas nasceu do contacto com essa outra associação que é a Renovar a Mouraria e da necessidade que ela tinha de ter um trabalho junto ao público, às pessoas do bairro e nós termos a predisposição para trabalhar com eles essa ideias. E a ideia do edifício-manifesto nasceu muito antes de existir a Renovar a Mouraria e até mesmo o próprio edifício, porque o ateliê nasceu exactamente com um aspecto, que era o de reivindicar um outro lugar para a arquitectura nos debates sobre a reabilitação urbana, com uma componente social, com ideias de sustentabilidade. O manifesto era produzir essa obra.

Isso foi conseguido?
Foi conseguido, porque, entretanto, à mercê desse trabalho de envolvimento, de trabalhar com a associação, com as pessoas, fomos percebendo essa necessidade e a questão chegou exactamente pela Renovar a Mouraria, que aderiu ao projecto sem nenhuma hesitação. Eram duas associações, a Artéria e a Renovar a Mouraria, a trabalhar em prol de conseguir construir aquela obra, que era e foi um manifesto da reabilitação urbana, concretizado…

Em 2011, em declarações ao PÚBLICO, e a propósito da casa manifesto, dizias “fala-se muito em reabilitação, mas depois não se faz nada”. Era a realidade da altura…
Sim, sim, mas era verdade. Este país passou anos a falar de reabilitação urbana, toda a gente reivindicava a reabilitação urbana. Era um chavão. Havia estratégias, legislação, o regime geral para a reabilitação urbana, que apareceu em 2004. Isto apareceu tudo antes, estava todo o país a falar disto, que tem que vir financiamento, haver benefícios fiscais. E não se viu nada a acontecer. Depois, sabemos hoje, aquilo que acontecia era que se perfilavam forças para fazer um outro tipo de reabilitação urbana. Não essa que era requerida e que deveria ter sido feita, em lugar da outra, que envolve a capitalização do imobiliário, reabilitação do edificado sem pensar nas questões sociais. Porque a reabilitação e a regeneração urbanas são dois termos que incorporam questões sociais. Se formos à raiz da palavra, temos ali questões que são sociais. Não há dissociação, porque reabilitação do edificado é reabilitação da cidade, que tem essa componente da adaptação, de regeneração, de melhoria das condições de vida das pessoas que habitam uma cidade.

Ao mesmo tempo, houve uma acção concreta dos poderes públicos, através da Câmara Municipal de Lisboa liderada por António Costa. Essa operação centrava-se, precisamente, na Mouraria. A intervenção irradiou depois para o Intendente e a Avenida Almirante Reis. É inegável que houve ali uma alteração, apesar da prevalência dos problemas sociais. Nesse aspecto, não foi uma intervenção conseguida?
Sim. A Artéria fez parte do Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria (PDCM). Éramos a única estrutura colectiva que tinha arquitectos, e também tinha uma antropóloga, que esteve ali. Acabámos por fazer muito trabalho dentro do PDCM, muito dele invisível, mas muito estruturante daquele programa. Fizemos parte do programa. Fizemos obras em quase todas as associações, colectivos. Construímos o GAT InMouraria, um espaço temporário para pessoas que usam drogas. Fizemos disso, do mais visível, para o mais invisível. Fizemos trabalhos de acupunctura urbana. Em casas de pessoas de idade que não conseguiam sair de casa, colocámos corrimãos e degraus, para adequar esses espaços. Em lojas, adaptar o comércio local a questões de acessibilidade e mobilidade, com a Escola de Comércio de Lisboa.

Fizemos uma diversidade de trabalhos interligados, transversais a toda aquela zona do plano para a Mouraria. Houve uma coisa que não fizemos, que era a questão do espaço público. Porque isso ficou vedado ao PDCM. A transformação da Mouraria, que foi óbvia, teve que ter um programa de desenvolvimento comunitário. Se não, não ia a lado nenhum, porque era um sítio de escassez, onde havia muita população vulnerável, em que havia uma série de forças, de associações críticas e com trabalho muito diversificado, que ainda hoje persiste. Não é por acaso que aquela zona é toda ela…não é por acaso que assistimos a estes movimentos da Almirante Reis.

Por outro lado, havia uma parte reservada ao urbanismo, que, essa sim, era destinada a outro tipo de interesses. Isso ficou claro, porque nós não trabalhámos com essa dimensão. Aliás, às tantas, a Artéria meteu-se neste território e produziu um trabalho, a Avenida Intendente, que foi paradigmático da nossa maneira de entender a cidade, porque foi o trabalho que contrabalançou essa intervenção acrítica e desfasada do PDCM, feita pela mesma entidade, a CML, de requalificar aquela praça, com aquela pedra branca, aquela luz, deixando aquelas ruas, a do Benformoso e dos Anjos, como troços soltos.

Aquela realidade, aqueles comércios, aqueles bares, aquelas pessoas que ali habitavam e por ali passavam também soltas da realidade que era a requalificação da Mouraria. Na altura, já toda a gente sabia que estes processos, estas levas de gentrificação, vêm por via de obras em espaço público, com determinadas características que depois descolam aquele imobiliário para um sítio…fazem processos de financeirização da cidade. Portanto, começa por aí.

Mas esse processo descambou, foi por um caminho que vocês não estavam à espera?
Acho que a coisa foi por um caminho que não estávamos à espera. Aliás, a Artéria saiu desse processo. Não fomos até ao fim, por uma questão de coerência. Nós e outras estruturas. Houve outras estruturas que saíram exactamente pela mesma questão, que não se reviam naquela forma de fazer aquele processo, deixando de acreditar.

Sentiu que aquela parte da cidade que estava a ser intervencionada estava a ser objecto de uma experiência com outros fins?
Sim. Falando assim, em traços muito largos, acho que aquele território teve sempre muita participação, muita capacidade de ser uma coisa que nunca foi, até hoje. Vemos isso hoje, não é? A quantidade de processos de participação que passou por ali e a quantidade de aspectos que nunca foram tidos em consideração, colmatados, trabalhados com as pessoas, é crítica. Estou-me a lembrar de vários. A questão do Martim do Moniz, que nasce daquela equação que lá foi imposta. É quase sempre uma coisa falhada o que acontece ali. Estamos a ver isso outra vez a acontecer na Almirante Reis, exactamente o mesmo. São muitas vezes. Houve processos do Orçamento Participativo que nunca foram avante.

O que é que pode ser feito para contrariar isto?
Acho que a visão de soluções comunitárias, feitas para as pessoas, com as pessoas e com voz, tem de estar presente. Por oposição, e em paralelo, à cidade que é objecto edificado, contruído – que é a visão actual sobre a cidade. Tem de começar a aparecer a outra. Tem de começar a aparecer a vida quotidiana das pessoas, vozes críticas, movimentação social. O (arquitecto Rodrigo) Lefèvre dizia que a cidade é tanto quanto construção edificada, tanto quanto relações sociais e de vizinhança. É tanto uma coisa como a outra. Se uma apaga a outra…

Mas que soluções advoga?
Esta visão tem que ganhar cada vez mais poder. É a voz das pessoas da cidade, é o direito à cidade. O direito que as pessoas têm a dar forma à sua cidade. Este é um direito que está em muitas constituições. Nós todos que habitamos nesta cidade…esta cidade pertence-nos, de alguma forma. Temos direito a dar forma à cidade, de acordo com a cidade que imaginamos. Isso só nasce se as pessoas tiverem espaço para pensar assim.

Mas que instrumentos podem os cidadãos utilizar para contrariar essas forças de financeirização?
As pessoas já se organizam e, geralmente, em torno de causas. Por regra, as pessoas organizam-se quando sentem que algo está ameaçado, é a forma mais fácil de organização. Mas também há outras forma de organização, que têm em vista a construção de coisas que vão para além disso. Estamos a falar de causas ambientais sobre a cidade. A Artéria surgiu numa altura em que havia uma crise e os arquitectos eram vistos como uma elite. Dissemos que iríamos lutar para que a arquitectura fosse uma coisa com uma componente social e para todos. E esse manifesto foi exactamente isso.

E também aparecemos para desmistificar a ideia, então existente, de que a reabilitação era mais cara que a construção nova. Na prática, perguntar porquê. Não tinha que ser assim. Era assim porque a reabilitação que se fazia era cara, elitista, para gente que podia pagar e nunca para pessoas que precisam, com obras simples, eficazes e de acordo com as necessidades daquelas pessoas. Este agrupamento de pessoas que se juntou tinha a consciência que havia um espaço que não estava a ser falado, que tinha uma grande carga e que, de certa forma, a maioria dos arquitectos estava alheada da questão social dos bairros.

A Lei de Bases da Habitação foi um passo importante…
Foi uma conquista das pessoas, dos activistas, dos investigadores, dos académicos, que fizeram as coisas voltar de um determinado paradigma para outro.

Continua a haver largas camadas da população destituídas desse direito à habitação.
Sim, tem que ver com os poderes políticos, que têm à sua disposição mecanismos para resolver esses problemas. A questão é sempre porque é que não se resolve.

Podem haver soluções comunitárias de habitação? Isso é possível?
Claro que pode. Nem tenho dúvida nenhuma que pode. Quando as pessoas se agrupam em torno de um problema e o tentam resolver, normalmente, surgem ideias interessantes. A inteligência colectiva de pessoas que não têm a regulá-las um interesse próprio, mas sim um interesse colectivo, desemboca sempre em coisas muito interessantes. Pode haver modelos de resolução do problema que passem por aí. Acho que já estão a existir. Por exemplo, a reconversão do Quartel do Cabeço da Bola, em Arroios. Um belo exemplo de uma ocupação que está a ser feita, juntamente com a CML, e com os poderes públicos, e que produz criativamente uma solução que ninguém imaginava. Essa solução nasce da junção de vontades de várias pessoas que se agregaram e são de diferentes instituições e diferentes profissões, com diferentes olhares, que resolvem um espaço urbano que ninguém dentro de um gabinete poderia imaginar.

É sempre possível encontrar soluções…
A imaginação está lá, as relações estão lá. As pessoas querem melhorar a sua vida, querem ter um espaço no seu bairro, tratado por elas, cuidado por elas.

Tem-se assistido ao multiplicar pela cidade de projectos colaborativos e comunitários muito interessantes, como hortas comunitárias…
Exacto. E então experimentem lá escalar isso, até ser realmente transformador. De poder realmente transformar aquele lugar e as condições de vida das pessoas e não ser só vazos e plantinhas, o clássico projecto comunitário. É escalar aquilo para outro campeonato.

Os orçamentos participativos, quer o municipal quer os das freguesias, são um bom exemplo, não são?
São. Mas acrescento que muitos deles ficaram pelo caminho, até talvez aqueles mais interessantes, os que eram realmente transformadores. Conheço bem o OP de Lisboa e até posso dizer que ele tem sido alvo de uma certa captura por forças que nada têm que ver com participação, bairros e comunidades. É um orçamento descapacitado de se proteger. Se calhar, vai dar poder às forças que já constroem a cidade e não às forças que não constroem a cidade.

Está ali numa vertente muito ambígua, correndo o risco de ser alvo de captura. Há muitos projetos em que isso existiu e está provado. Fazer cidade assim, desta forma participada, é complexo. É exigente. É complicado ouvir, dar poder, executar essa visão, porque, muitas vezes, ela não é só uma coisa. É muitas coisas.

A CML criou recentemente o Conselho de Cidadãos. A multiplicação de processos participativos, sobrepondo-se até aos órgãos legitimamente sufragados eleitoralmente, não vem tornar a governação da cidade uma coisa altamente complexa?
Lisboa é uma cidade altamente preparada para se construir de uma forma participada. Já está num estado de maturidade enorme. Em relação a qualquer assunto, as pessoas já falam sobre como é que vêm, o que é que querem, o que é que não querem. Não acho que sejam necessários Conselhos de Cidadãos.

Quais acha que serão os maiores desafios da cidade na próxima década?
Há um desafio-chapéu, que tem a ver com a questão ambiental. E essa incorpora uma data de outras questões. É uma questão fundamental, porque é aquela que tem sido protelada sempre. A forma como nós vivemos a cidade, a forma como a cidade é construída hoje.

Pin It on Pinterest