“Estão a criar-se novas dinâmicas na vida comunitária em Lisboa”

11 de Janeiro, 2023
Observador atento das mudanças ocorridas, nas últimas décadas, na capital portuguesa, João Seixas considera que a sociedade e, em particular, o poder político têm evidenciado dificuldade em acompanhá-las. “A cidade pede, quase que grita, por novos modelos de desenvolvimento económico e ecológico”, diz o professor e investigador da Universidade Nova, salientando já não fazer sentido falar do “município central versus a periferia”. Lisboa é hoje toda a área metropolitana, com núcleos de dinamismo social, económico, cívico e cultural espalhados por vários concelhos e bairros. Por isso, afirma, “é essencial debater o que queremos para a cidade e para a grande região urbana”. Mais urgente só mesmo resolver o grave problema de falta de habitação acessível.

Entrevista

Samuel Alemão

Artéria: Lançou há pouco mais de um ano o livro “Lisboa em Metamorfose“. Nele, dá conta de uma cidade e de uma área metropolitana em mudança acelerada. Ao falar do centro histórico, diz, a dada altura, que o mesmo foi quase totalmente reabilitado, mas tem agora poucos residentes e está dependente de compradores estrangeiros de imobiliário. Dizia que sobravam incógnitas. Desde então, elas adensaram-se ou já é discernível uma tendência?

João Seixas: A pergunta tem várias questões. Não se pode desligar as questões do centro histórico da evolução recente da metrópole da Grande Lisboa e do seu posicionamento face às questões globais e de políticas. E à própria evolução da cidade que vinha de trás, do lastro anterior e das perspectivas para o futuro. Preferia não especificar apenas em termos de centro histórico. Prefiro falar de uma perspectiva global.

Se bem que nessa passagem, em particular, especificava o centro histórico…

Sim. Também específico um pouco partes de subúrbios, o que se passa em Sintra, Amadora, Almada…

Mas estamos a falar de uma parte muito icónica da cidade…

Respondendo à questão: se há mudanças desde há um ano? Não. Há um ano, ainda estávamos com a pandemia de forma bastante activa. Nesse aspecto, há relativas mudanças. Quer dizer, nós viemos de uma sucessão de crises desde pelo menos há duas décadas. Mas, quando a crise pandémica amainasse bastante, havia a expectativa de saber se nós, como sociedade urbana, teríamos aprendido alguns ensinamentos e faríamos alguma mudança nas questões urbanas, nas políticas urbanas e daquilo que desejamos para a nossa cidade e para a nossa metrópole. Ou se iríamos reincidir em velhas perspectivas de desenvolvimento económico e urbano pré-pandémicas. Ao fim de um ano, o que posso dizer é que estamos totalmente a reincidir. Não vejo grande ensinamentos ou, pelo menos, grandes alterações face ao período pandémico. Portanto, temos uma cidade muito pouco resiliente e que aprendeu pouco.

Toda aquela conversa de que isto agora vai ser diferente…

Não duvido que tenha havido aprendizagens muito importantes directamente relacionadas com as questões pandémicas, como a saúde, na saúde pública ou em algumas questões relacionadas com as escolas ou métodos educativos. Mas em relação a políticas urbanas, parece-me que há aqui uma…não diria absoluta, mas uma grande reincidência nos modelos seguidos anteriormente.

Que são a tal financeirização do imobiliário…

Depende muito dos territórios. A cidade é, hoje em dia, um sistema urbano muito complexo. No caso de Lisboa, que extravasa até a própria área metropolitana. Isso é importante referir. De cada vez que falo de Lisboa, tenho que falar necessariamente do corpo inteiro, bem como das suas expressões e interligações. Não posso dissociar – exceptuando numa análise mais específica – a análise de um determinado território do diagnóstico global e das tendências, quer físicas quer mentais do corpo inteiro, do ecossistema em que está inserido.

Quando digo ecossistema, para simplificar, falo de duas formas, pelo menos: o ecossistema biofísico, ou seja, a cidade na sua estrutura geográfica, na sua dispersão ou concentração humana. Mas também considero que há outro elemento essencial – que é a “mente”, se quiser -, que é a questão política. Não falo apenas das instituições politicas, mas também da cidadania. A política vista à maneira de Platão, de o indivíduo, ao estar na cidade, se tornar também cidadão. E isso é muito importante.

O que está a acontecer – antes da pandemia e agora depois da pandemia -, em territórios concretos como o centro histórico ou fora do município de Lisboa, está tudo interligado nesse aspecto. E aí, o diagnóstico que faço no livro é que a Grande Lisboa é um território altamente paradoxal. Como referi na badana do livro, é um território com extraordinárias potencialidades e exasperantes fragilidades.

À medida que o tempo avança, e sobretudo neste período pós-pandemia, esta contradição entre as potencialidades que uma grande urbe tem e as exasperantes fragilidades é cada vez maior. Porque a cidade pede, solicita, quase que grita, por novos modelos de desenvolvimento económico e ecológico. E, ao mesmo tempo, quer a sociedade, quer a política – sobretudo a política -, estão com uma grande incapacidade de conseguir estruturar estes novos modelos de desenvolvimento.

Não está a ser capaz de fazer uma leitura correcta da realidade no terreno?

Acho que não está a fazer sequer a leitura. A frase é extremamente injusta para algumas instituições. A Área Metropolitana de Lisboa fez um “plano estratégico 20/30”, que é muito interessante e vale a pena referi-lo. Mas, de facto, quando tanto está a mudar, quando cada um de nós tem a percepção de que há um passado que já não volta e que ainda está muito presente na nossa mente – cada vez mais nostálgica (risos) -, e um futuro que não se vislumbra, que está cheio de nevoeiro, o ponto absolutamente essencial é conseguir criar…não diria uma visão, pois parece-me muito redutor…mas criar, debater em conjunto, perspectivas do que queremos para a nossa cidade e para a nossa grande região urbana, para o futuro.

Esse é o elemento absolutamente essencial, é uma construção política colectiva. É isso que, neste momento, mais falta faz à cidade. Isso em termos políticos. Porque há questões muito concretas de direitos urbanos, que estão a fazer muita falta na habitação…Ia dizer outras, mas fico na habitação. Ia dizer na mobilidade, no espaço público e noutras, mas o que se passa na habitação é de tal maneira grave que eu próprio tenho relutância em colocar uma lista em que a habitação esteja a par com outras questões, porque a habitação é…

É basilar, dela depende muito do resto…

Sim. Mas há a questão política de que falei há pouco, de se construir uma visão partilhada, debatida e consensualizada para a cidade do futuro.

Como é que os efeitos dessa alteração tão dramática, e que se tem vindo a acentuar, se estão a fazer sentir ao nível de uma coisa tão elementar numa cidade como é a vida comunitária?

A análise da história mostra-nos que as épocas de transição são particularmente sensíveis, onde se acentuam desequilíbrios. Em Lisboa, há vários factores que se interligam e um deles estamos a vivê-lo ao nível do planeta – um período de transição entre eras anteriores, mais industriais, mais modernistas, e uma nova era que, para já, chamamos de era digital, mas que ainda estamos com falta de definição para aquilo que será o século XXI, verdadeiramente.

É uma época claramente de transição e estes são períodos particularmente instáveis, mas em que, ao mesmo tempo, também há estruturas sociais e económicas que desmoronam, há outras muito interessantes que são criadas. Mas há grandes desequilíbrios, grandes desigualdades no acesso às novas oportunidades e, por seu lado, no aumento das fragilidades face a todos os grupos que estavam dependentes dos modelos anteriores.

Quais são as consequências negativas, as coisas que se vão perder na vida comunitária de Lisboa? O que é que está a desaparecer em termos de espírito comunitário?

Não gosto do termo desaparecer. Gosto do termo mudança. Há muitas coisas que estão a mudar.

Mas a mudança significa que há coisas que se perdem. O que é que se está a perder que já não volta?

Percebo…Mas não concordo que, mesmo na vida comunitária, se esteja a perder. Está a mudar muito, está a passar muito para as áreas digitais, mas, por outro lado, estão-se a criar novas dinâmicas de vida comunitária, que são completamente distintas daquilo que eram há 10 ou 20 anos, no meu entender.

Está a falar da nova cidadania ao nível dos bairros? Acha que as pessoas hoje estão mais conscientes do seu papel enquanto cidadãos na cidade?

Acho, sinceramente. A perspectiva cívica, anteriormente, via-se muito em questões que continuam a ser completamente essenciais – como as laborais, por exemplo. Hoje, há um crescendo de consciência cívica para as questões de direitos urbanos. Anteriormente, havia para a questão da habitação…Gostaria de falar de uma das maiores falhas que a cidade tem, neste momento, que é a incapacidade de proporcionar direitos urbanos às novas gerações. É um dos pontos mais essenciais neste momento.

O direito à habitação já era uma perspectiva de consciência de luta cívica, nas décadas anteriores. Mas, hoje, o direito à habitação é, cada vez mais, essencial e é já visto também, felizmente, como uma forma de direito ao habitat. Não apenas à habitação, mas ao espaço público de qualidade, o direito à mobilidade, o direito às questões ecológicas em torno dos quotidianos urbanos das pessoas.

Creio que, claramente, nas novas gerações, há uma consciência muito mais ecossistémica daquilo que são as potencialidades de desenvolvimento, mas também os direitos cívicos das comunidades. Isso faz com que, inevitavelmente, a forma como se estruturam as percepções dos direitos humanos, como se estruturam os movimentos sociais, como se estruturam até as reivindicações e as dinâmicas sociais seja diferente, torna-os muito distintos do que eram anteriormente. As instituições não estão ainda, completamente, a fazer essa transição.

Olhando para o mapa da cidade, sente que há áreas que são mais dinâmicas do que outras em termos de cidadania?

Claramente que sim. Não era preciso fazer um mapeamento, olhando para a metrópole, de onde estão as dinâmicas cívicas. Bastaria fazer um mapeamento de onde estão as gerações mais novas e mais qualificadas.

E que são, neste momento…

Claramente, em Lisboa, à volta de todo o eixo da Almirante Reis, em bairros como Telheiras e mesmo em Marvila. Mas também em áreas urbanas que não apenas Lisboa-centro. Neste momento, há movimentos cívicos e uma consciência cívica que extravasam bastante a cidade central…Não gosto do termo periferia, cada vez menos. Porque há zonas fora do município de Lisboa que são mais urbanas do que muitas zonas do município de Lisboa. São muito menos periféricas. Há muitas zonas, em Cascais, Oeiras, Sintra, Almada, em Loures, há muitos territórios que são menos periféricos do que alguns de Lisboa.

Não apenas em termos de consciência cívica, de cosmopolitismo, mas inclusivamente em termos de direitos urbanos: proximidade a equipamentos, qualidade das escolas, qualidade dos centros de saúde. As coisas complexificaram-se bastante, já não é centro versus periferia. Já não é assim, o mapa é muito mais um patchwork, polinucleado e diversificado em termos de oportunidades, de direitos, de riqueza, de pobreza, de capitais…O que torna a visão da cidade muito mais rica e interessante. Ainda bem que vai por aí, nesse aspecto. Mas, por outro lado, também a torna muito mais difícil de gerir.

Dizia no seu livro que a metamorfose tem que ver, sobretudo, com a criação de novas e múltiplas centralidades. Isto veio para ficar?

Obviamente que sim. Até porque a velha estrutura de mobilidade, que era radial, que era um centro com 3/4 de todos os equipamentos, culturais, educativos, desportivos, administrativos, e depois a tal periferia à volta, feita sobretudo de cidades dormitório, com radiais como a Linha de Sintra, a Linha de Cascais, a Linha da Azambuja, a ponte sobre o Tejo e a Linha do Sul…tudo isso se complexificou bastante. Hoje, para além das radiais, temos as circulares e muitíssima gente, centenas de milhar de pessoas, que fazem a sua vida já sem passar pelo município de Lisboa sequer. A própria estrutura económica, empresas importantíssimas e menos importantes, sedes de empresas, passaram para Oeiras, Sintra, Almada e outros locais.

Manifestamente, percebe-se que o sistema de transportes não acompanhou essa dinâmica económica e social…

Acompanhou, mas de forma rodoviária. Os transportes colectivos não acompanharam, mas as notícias mais recentes em termos dos investimentos esperados na infraestruturação de transportes colectivos para a Área Metropolitana de Lisboa são positivos.

Mas já vêm muito atrasados, não vêm?

Sim, vêm muito atrasados, mas antes tarde que nunca. Mas são muito interessantes, perspectivam-se grandes investimentos nas circulares ferroviárias, perspectivam-se grandes investimentos até na circulação fluvial. E isso são notícias muito importantes, pois ajudarão a uma maior fluidez desta metrópole, que se tornou muito complexa em termos geográficos e que necessita muito desta fluidez, que não pode depender unicamente do automóvel privado.

Outra das coisas que assinala no livro tem que ver com a existência de uma população muito envelhecida no centro, que padece de uma grande solidão. Como é que podemos resolver isto? Temos aqui um problema em relação ao qual uma parte da população activa não parece estar consciencializada…

Eu acho que está mais. Embora, grande parte da solidão esteja escondida ou mesmo envergonhada. Isso também é, no meu entender, produto da enorme dispersão da urbanização que tivemos ao longo de cinco ou seis décadas. As questões das densidades são absolutamente vitais para o dinamismo e para a qualidade de uma cidade. O que é que aconteceu durante cinco ou seis décadas em Lisboa? Uma enorme dispersão sobre o território e, portanto, fragilizámos bastante as nossas densidades.

As densidades são importantes. E porquê? Porque fragilizamos os laços sociais, os laços económicos, fragilizamos inclusivamente a nossa capacidade de resposta como sociedade face a todo o tipo de equipamentos – escolas, centros de saúde, etc.- porque as pessoas estão dispersas por um vasto território. E é muito mais complexo gerir, quando a população está bastante dispersa.

O município central de Lisboa está com uma densidade populacional 5.500/6.000 habitantes por quilómetro quadrado. Ainda por cima, bastante envelhecidos. Embora tenha havido muito imigração para o município de Lisboa. Quando há uma grande dispersão de densidades, é natural que os laços sociais também fiquem mais fragilizados. E a atenção, não apenas familiar, mas das próprias entidades públicas, fica mais dispersa. Isso faz aumentar muito a solidão.

Ao mesmo tempo, se temos fenómenos, como temos assistido em Lisboa, com a enorme concentração comercial, em que vai tudo para os centros comerciais e o comércio de rua está muito mais fragilizado, é em grande medida também devido à perda das densidades. Se abrir uma loja num bairro banal de Lisboa e se abrir uma loja num bairro banal de Barcelona…Lá a densidade é 2,5 a 3 vezes maior. À frente da sua loja passam 2,5 a 3 vezes mais pessoas. Isso é para uma loja.

Agora, imagine para equipamentos públicos, para redes de metropolitano, para escolas, centros de saúde. Fica tudo mais deficitário. A utilização, a fruição, é menor, quer de investimentos públicos, quer de investimentos privados. E essa é também uma das principais razões porque vemos tantas lojas a abrir e depois a fechar. Por um lado, estão altamente pressionadas por rendas altíssimas, por outro lado, por uma facturação difícil, porque a densidade está dispersa.

Na sua obra, aliás, refere uma coisa muito curiosa. Recorda que, nas décadas de 70 e 80, os espaços públicos, sobretudo os cafés, estavam sempre cheios. Isso mudou. De que forma é que esta alteração da convivialidade mudou a vida comunitária?

Alterou bastante. Mas há aqui vários fenómenos. Nos anos 70 e 80, estávamos aqui ainda com uma cidade bastante densa, com alguns problemas da densidade, incluindo a falta de qualidade da habitação em algumas zonas. Tudo isso se foi provisionando e até através da dispersão. Além disso, tínhamos cerca de meio-milhão de pessoas que vieram das ex-colónias e que vieram, em grande medida, para aqui, para a região de Lisboa. Foi um período em que havia uma grande concentração cultural e comercial no centro da cidade, mas, nas décadas seguintes – sobretudo anos 80 e 90 -, houve um aumento da explosão metropolitana. Foram as décadas mais intensas desse fenómeno.

Muitas das actividades económicas e comerciais preferiram ir para outros locais. Houve essa dispersão. Hoje em dia, temos uma vida comunitária que não se baseia tanto no espaço público físico. Baseia-se muito mais no digital, mas que tem focos de concentração em espaço público urbano, como nesses casos onde falei, há pouco, de locais onde há maior concentração dos mais jovens, mais qualificados, que têm esse tipo de cosmopolitismo.

Essa forma de convivialidade alicerçada no digital veio agudizar a clivagem social entre os mais velhos e os mais novos…

Creio que sim. Creio que há um “gap” que é necessário analisar melhor, que não é a minha área. É mais para os sociólogos e os antropólogos. Entre as visões daquilo que chamamos os nativos digitais e os migrantes digitais…

Aliás, isto vai bater numa outra pergunta que lhe queria fazer. É possível inventar um novo discurso público agregador, que não ponha novos contra velhos na definição da cidade?

É essencial, é absolutamente essencial. Porque vejo que, neste momento, uma parte significativa dos direitos urbanos está em questão, sobretudo para as gerações mais novas. O direito à habitação, a possibilidade de ter um emprego minimamente estável. Os mais jovens estão, neste momento, confrontados com vários tipos de precariedade. Que é uma situação bastante distinta daquilo que as gerações anteriores tiveram. Têm precariedade residencial, têm precariedade laboral. Provavelmente, muitos deles, até têm precariedade familiar, mais do que as gerações anteriores.

São razões mais do que suficientes para que as políticas urbanas devessem incidir muita atenção no bem-estar e na qualidade de vida das gerações mais novas. A habitação acessível é talvez, neste momento, a par da ecologia, a principal de questão de política urbana para Lisboa. Os jovens necessitam de esperança, de garantias de direitos e de oportunidades. O arrendamento acessível, nesse aspecto, é absolutamente vital.

Outra das áreas em que se nota uma clivagem etária refere-se à mobilidade…

Acho que as gerações mais jovens têm claramente mais preocupações ecológicas. Nelas incluem-se as questões de mobilidade. Não é pelas questões da mobilidade tout court, é mais pelas preocupações ecológicas. No campo oposto, o automóvel é visto como um símbolo da época anterior, que não tratou propriamente bem o planeta, embora tenha criado muitas oportunidades económicas para milhões e milhões de pessoas. Não podemos simplificar as coisas, mas é um facto que as gerações mais jovens têm uma consciência ecológica maior.

Isso é um potencial que deve ser mobilizado também. Há essa clivagem face à mobilidade, mas nada é garantido. Se continuarmos a ter uma metrópole que não cria condições suficientes em termos de espaço público e de capacidade de acesso e do usufruto dos modos suaves de mobilidade e da sua intermodalidade com o transporte colectivo, isso vai obrigar os jovens a ter automóvel. Temos que criar as condições para isso também.

Estávamos, há pouco, a falar de zonas de Lisboa e da Almirante Reis. Vê outras áreas dentro da Área Metropolitana de Lisboa que possam perspectivar novos pólos de dinâmica comunitária, cultural e económica?

Posso responder de uma forma que, talvez, para o leitor, possa parecer genérica. Vejo dinâmicas seminais em muito sítios, em muitos pontos. Posso vê-las no Cacém, em Rio de Mouro, na Cova da Piedade, na Costa da Caparica. É só dar melhores garantias e oportunidades a essas dinâmicas para, de facto, se desenvolverem, se instalarem. E depois conseguirem criar um novo tipo de vivência, de dinamismo até económico. Vejo isso em muitos sítios, não vejo apenas em dois ou três sítios. Vejo em Cascais, em Queluz, na Bobadela, em Vila Franca de Xira, vejo em muitos locais.

É evidente que não posso ser assim tão genérico na resposta. É evidente que alguns locais têm melhores capacidades, equipamentos, escolas ou até programação das escolas. Mas, em termos sociais, essa capacidade é latente em muitíssimos locais. Porque a sociedade metropolitana está a ficar claramente urbana e cosmopolita. Não é apenas em Lisboa centro. Temos é que criar um grande programa de oportunidades para que todas essas dinâmicas latentes sejam expressivas.

Do que é que estamos a falar, quando fala em criar um programa de oportunidades? Como é que isso se materializa?

Creio que é preciso trabalhar em termos percepcionais e educativos. É preciso muito aproximarmo-nos todos da cidade. Há pouco, aquilo de que lhe falei de que estamos todos ansiosos, entre um passado que já não volta e um futuro que já não conseguimos discernir muito bem, e uma vida quotidiana que para muitíssima gente tem um difícil sentido – deixa grande parte da população ansiosa…Creio que é muito importante aproximarmo-nos todos da cidade. E discutir o que a cidade pode ser. E depois, em termos muito práticos, é criar por toda a metrópole, verdadeiramente como cogumelos, centenas ou milhares de espaços e de programas para debater com as pessoas, para ouvi-las, para dar oportunidade, às novas gerações sobretudo, para que falem das suas ideias, das suas perspectivas, para fazerem experiências.

A cidade deve ser um laboratório vivo do futuro. E é um futuro que já não vai ser do século XX. Vai ser do século XXI. Portanto, não se vai basear tanto nas economias industriais ou de urbanização que se desenvolveram no século XX. Vai ser um futuro muito mais digital, mas até mesmo as novas formas sociais e comunitárias vão ser processadas de outra forma. Temos de criar as condições.

A política e a sociedade devem criar condições para que essas expressões sejam debatidas, sejam atendidas e sejam testadas, tal e qual como num laboratório, em que as pessoas se sintam mais incluídas. Em que tenham a noção até dos outros, de debater com o seu vizinho, com o cidadão que vive na mesma metrópole, mas que está a 20 quilómetros e tem uma vivência completamente diferente. E para isso acontecer temos que envolver de forma activa todas as autarquias, mas também os equipamentos que já existem. Não é preciso criar muitas coisas, construir muitas coisas novas. É preciso é que o edificado e os equipamentos existentes sejam potenciados muito mais do que, neste momento, estão a ser utilizados.

Isso é válido também para o parque habitacional, não é?

Sim, claro. Estamos agora com uma grande necessidade de habitação. Qual é a ideia? Construir mais? A política da habitação tem de ser estruturada por vários pilares, porque se tornou uma situação de tal maneira grave, mas ao mesmo tempo de tal maneira complexa, que é preciso avançar em vários sectores. Algumas vozes defendem um aumento do parque público da habitação social. Certo, mas será sempre insuficiente, porque vimos de muito de trás. É preciso também chamar os privados para criar condições para que eles fiquem interessados em colocar os seus alojamentos em habitação acessível.

E isso implica, de facto, uma política pública bastante musculada, no sentido de dar-lhes benefícios fiscais ou mesmo isenções fiscais. Por seu lado, dar também aos jovens grande apoio para poderem arrendar. Mais do que comprar. Isso é muito importante. Arrendamento é muito mais importante do que a aquisição, para esta dinâmica urbana. Porque os jovens, por definição, vão fazer vários tipos de experiências. Uma cidade dinâmica tem de ter, obrigatoriamente, um mercado de arrendamento dinâmico e acessível. Para que estas coisas tenham consistência, creio que é necessário repensar também os próprios modelos de administração pública da cidade e da metrópole.

Isso terá que ter consequências ao nível da organização política…

Sim. Estamos num dos países mais centralistas da Europa. Apenas 12% de toda a despesa e investimento do Estado é ao nível das autarquias. Pior que nós, só a Grécia. E acima de nós a Irlanda. Mostra muito sobre a eficiência da despesa pública. Continuamos a ser um país muito centralista. Era muito importante alterarmos esta visão. Sou defensor de estruturas regionais autónomas e com responsabilidade, mas, ao mesmo tempo, também de uma descentralização de competências e de recursos.

A tão propalada regionalização…

De certa forma, na Área Metropolitana de Lisboa, uma regionalização, mas que pode ser através de uma descentralização de competências. Se dá origem ou não à regionalização, ou seja, a uma eleição directa, isso é outra questão. Para já, eu defenderia uma importante descentralização de competências. Mas, ao mesmo tempo, a nível dos municípios também há uma série de sectores de dimensão que devem ser vistos de uma forma metropolitana, integrada. Há algumas competências que, se calhar, até têm que subir dos municípios para área metropolitana.

Nomeadamente…

Por exemplo, mobilidade urbana, sistemas ecológicos, grandes equipamentos e ainda o grande estuário do Tejo. Uma série de elementos que devem ser vistos como um todo. E depois, ao mesmo tempo, nesta alteração política, envolver cada vez mais a cidadania e as organizações não governamentais, porque acredito muito que, em épocas de transição, as ideias mais inovadoras, que no futuro se consolidarão como “mainstream“, como novo paradigma, vêm das organizações alternativas e cívicas. E é importante essa perspectiva. Essa ideia de reorganizar o modelo político da cidade, nas diferentes escalas – desde a escala das freguesias até à da metrópole – é essencial.

É importante que os lisboetas digam que, em grande medida, o Estado central, que está em Lisboa, não é salutar para as cidades portuguesas como um todo, incluindo Lisboa. Como cidade e como metrópole, Lisboa também sofre imenso com o centralismo. Tem toda a conveniência em que as cidades tivessem mais recursos e mais competências. Que Lisboa fosse governada mais como cidade e menos como capital.

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