As inesperadas aras romanas da Travessa do Almada

Autor

Rui Martins
9 de Janeiro, 2023

Ao andarmos pelo centro histórico de Lisboa, o nosso olhar é banhado por sucessivas camadas de evidências de outras épocas históricas, testemunhando a rica biografia da cidade. Mas a profusão de motivos de interesse é tanta que, por vezes, nos tolda a capacidade de “ver com olhos de ver”. Tanto que alguns dos indícios de épocas remotas se nos escapam. Estão lá desde sempre, mas nunca reparámos neles. Ciente disso, o leitor Rui Martins, historiador de formação e observador atento da vida urbana, alerta-nos para um caso particular. E nele mergulha numa informada e aturada leitura.

Quem passar pela Baixa de Lisboa, mais concretamente pela Travessa do Almada, encontra incrustadas, numa parede do Prédio Almada, quatro pedras com inscrições, menos legíveis ano após ano, que me ficaram na memória da primeira vez que aqui passei com o meu pai nos idos de finais da década de 1980.

Se nos aproximarmos, é possível ler algumas palavras e perceber que se tratam de aras romanas e ficarmos surpreendidos com a presença inusitada de tais objectos expostos – como estão, ali, na rua – a vandalismos e intempéries. As quais, aliás, já fizeram cobrar o seu preço, porque as letras estão hoje claramente menos visíveis do que estavam na década de 1980 e em algumas fotografias antigas do Arquivo Municipal de Lisboa.

De facto, quem passar ali e tiver a sorte de encontrar este momento raro e silencioso nesta turistificada e ruidosa cidade de Lisboa quase pode ouvir as aras a sussurrar: “salvem-nos!” e “tirem-nos daqui enquanto ainda resta algo de nós”. Alguns dirão que, estando num prédio de meados do século XVIII, a sua presença no dito é, ela mesma, um fenómeno histórico e que, por isso, não podem ser removidas.

Outros dirão que a sua remoção e posterior musealização colocaria riscos estruturais para o prédio pombalino. Outros ainda -como eu – que seria possível rodear as aras de uma estrutura em vidro ou plástico transparente, que as protegesse da poluição e de vandalismos.

O prédio onde se encontram estas quatro aras foi construído em 1749 por João Manuel de Almada e Melo, que o Terremoto de 1755 encontraria em Lisboa enquanto comandante da guarda do rei D. José I, na Real Barraca. Figura muito importante do regime como brigadeiro, Presidente da Junta da Marinha do Porto, governador militar das províncias do Minho e Trás-os-Montes, Presidente da Junta das Obras Públicas (1763-1786), Governador das Justiças e Casa do Porto (1765-1786) e Diretor do Depósito Público do Porto (1774).

João Manuel de Almada destacou-se à frente da Junta das Obras Públicas, onde modernizou a cidade de Lisboa, abrindo e renovando eixos viários, construindo várias obras públicas, contribuindo para a formação de um novo modelo arquitetónico e na definição de novas normas para o licenciamento de obras particulares. Além de político e militar, Almada e Melo foi também um dos portugueses que, na sua época, mais se interessou sobre questões ligadas ao ensino e à cultura, tendo trazido o Teatro Lírico até ao Porto e criado a Aula de Náutica.

Neste contexto, não é de estranhar que, tendo sido informado pelos construtores do Prédio Almada que haviam sido encontradas na abertura das fundações e nas demolições de ruínas do terremoto, ou nas suas imediações entre o Largo da Madalena e a Travessa do Almada, entre 1749 e 1753, cinco lápides romanas – entre, certamente, outro espólio, hoje perdido, havia, de facto, uma quinta lápide, esta funerária, também entretanto desaparecida -, as tenha mandado incrustar nas paredes do prédio por forma a as preservar e a informar o transeunte da riqueza histórica deste local de Lisboa.

Apesar de, nos últimos anos, o projecto “Lisboa Romana”, com App para telemóvel, ter instalado no passeio uma sinalética com QR Code que remete para uma explicação do monumento que está perante o transeunte, a dita placa é muito discreta e só será vista por quem está previamente preparado para a encontrar.

Centenas de pessoas passam diariamente por aqui, sem se aperceberem da raridade daquilo que têm – literalmente – à sua frente. Pelo menos, a caixa de ar condicionado que esteve sob uma das aras durante muito tempo foi retirada há alguns anos, mas a parede onde estão as aras continua a ser indignamente tratada, com os famosos “cabos selvagens” que proliferam pela cidade, placas de uma empresa de segurança privada e até um algeroz.

Este conjunto – monumento nacional – merecia ser tratado com maior dignidade: numa parede limpa de distrações, com uma sinalética adequada num passeio alargado que permita a sua devida contemplação e com protecções que as defendam de vandalismo e da erosão do tempo e da poluição de Lisboa. Isto mesmo foi proposto pelo Fórum CidadaniaLx em 2011, mas sem eco além da retirada do ar condicionado e da limpeza de tags.

Entretanto, as inscrições são cada vez mais difíceis de ler, estando já claramente menos legíveis do que estavam nas fotografias presentes no Arquivo Municipal de Lisboa, datadas de 1890, 1901 e 1944 e daquilo que me lembro em finais de 1980. Esta degradação evidente e o risco de vandalismo (especialmente grave numa das aras) levam-me a propor a sua substituição por réplicas e a transferência para um local que garanta a sua preservação: designadamente, para o “Museu da Cidade – Teatro Romano” que se encontra a 5 minutos a pé.

As quatro aras romanas – três votivas e uma honorífica – do Prédio Almada são, de facto, monumento nacional pelo Decreto de 16-06-1910 e são:

  1. Uma dedicatória de Lisboa a um pretor romano: “Felicitas Julia, Olisipo dedica a Lúcio Cecílio, filho de Lúcio Celero, recto questor da província da Bética, tribuno do povo e pretor”.

2. Uma dedicatória de Caio Julio a Mercúrio e a César Augusto.


3. Uma dedicatória à mãe dos deuses, desta feita de “Tito Licínio Amarantio por voto dedicou à mãe dos deuses”.


4. Por fim, assente numa coluna, a última ara é uma dedicação de Tito Licínio Cerno, de Lychaonia (hoje na Turquia) à “mãe dos deuses, a grande Ida da Frígia, sendo nobre duunviros Cássio e Cassiano, e cônsules nobilíssimos Marco Atílio e Afroniano, e sendo governador Gaio”.

O facto de terem estado concentradas numa pequena zona pode indicar que aqui existia um templo a Cibele/Deusa-mãe, onde os crentes também colocavam outro tipo de aras, como a ara a Mercúrio e a honorífica, sendo todos os nomes aqui referidos adoradores prováveis dessa deusa-mãe.

A referência a “Felicitas Julia” da primeira ara recorda a recompensa dada pelo Império Romano a Lisboa, através da atribuição da cidadania romana aos seus habitantes, numa época em que esse privilégio era dado apenas a título muito excepcional. “Felicidade Júlia” assumiu, assim, o estatuto de município, bem como todos os territórios 50 quilómetros em redor, que ficaram, como ela, isentos de impostos, ao contrário dos territórios que rodeavam a cidade.

Quanto a “Olisippo”, a leitura é mais polémica. Mas poderá estar em torno do celta “lys” (“Tejo”) com o sufixo fenício -ippo – de recordar que, não muito longe da Travessa do Almada, foi encontrada uma ara funerária em fenício. Tradicionalmente, pensava-se que Olisippo vinha de Ulisses, que Marciano Capela e Solino diziam ter conquistado a cidade. Outros faziam a ligação a “hippo” (cavalos), com os cavalos velozes que se diziam existir em Monsanto.

Quanto ao título “Questor”, referido na ara, tratava-se do primeiro passo na hierarquia política romana e habitualmente era preenchido por membros da classe senatorial com menos de 32 anos. A Bética era uma das três províncias romanas em que se dividia a Hispânia, com a capital em Córdova.

Os “Tribunos do Povo” (Tribunus plebis) assumiam o primeiro cargo que Roma permitiu aos plebeus e eram o mais importante contrapoder ao Senado. Podiam convocar a Assembleia da plebe (“Concilium Plebis“), convocar uma reunião do Senado, de propor novas leis, intervir em nome dos plebeus em assuntos legais e, mais importante, de interpor um veto às ações dos cônsules e outros magistrados para proteger os interesses da plebe.

Por fim, os pretores mencionados nesta ara eram um dos títulos que Roma concedia a quem comandava um exército em campanha ou a quem servia como magistrado. Uns e outros exerciam a sua autoridade no “Pretório” (“praetorium“), o qual podia ser o quartel-general do seu exército, ou o tribunal onde se reunia com a sua equipa ou tinha a sede do seu governo provincial.

A dedicatória de Caio Julio a Mercúrio da segunda ara e a César Augusto reflecte a provável pertença à actividade mercantil de Caio Julio, já que Mercúrio é um mensageiro e deus da venda, lucro e comércio. A dedicação a “César Augusto” refere a admiração e a busca por influência política local por parte deste mercador, dado trata-se de uma referência directa a Augusto, o Imperador romano (63 a.C.-14 d.C.) em cujo governo Roma se tornou num poderoso império austero e centralizado, mas muito desenvolvido do ponto de vista cultural e económico.

Dado que Caio Julio era um mercador, deve ter prosperado muito neste contexto económico tão favorável. E esta prosperidade levou-a dedicar a ara ao deus do comércio e, simultaneamente, ao imperador.

A dedicação de Tito Licínio Cerno à “mãe dos deuses, a grande Ida da Frígia, sendo nobre duunviros Cássio e Cassiano, e cônsules nobilíssimos Marco Atílio e Afroniano, e sendo governador Gaio”. Foi feita por mais um provável mercador – já que não era normal existirem soldados ou administrativos frígios na Lusitânia – à sua divindade favorita na sua Lychaonia (hoje na Turquia) nativa.

Esta “Mãe dos Deuses” ou Deusa mãe (Cibele) simbolizava a fertilidade da natureza. E o seu culto espalhou-se por toda a bacia do Mediterrâneo, a partir da origem na actual Turquia, sendo também conhecida por Cibele e associada ao ciclo natural e agrícola da vida-morte-renascimento, ligada à ressurreição do seu filho e amante Átis.

Por sua vez, os duúnviros (em latim: duumvir, “um dos dois homens”; plural: duoviri, “os dois homens”) da quarta e última ara eram magistrados que exerciam a sua função em conjunto com outro. Estes pares de magistrados eram uma peça essencial da administração imperial e a dualidade do cargo era uma forma de reduzir a possibilidade deste ser exercido com corrupção e de aumentar a capacidade e qualidade da função.

Quanto à expressão “cônsules nobilíssimos Marco Atílio e Afroniano, e sendo governador Gaio”, é uma forma convencional de datar a inscrição, já que seria possível facilmente referir a que época se referia a ara, através do conhecimento do ano em que estes cidadãos prestigiados haviam assumido essas funções. No exemplo desta ara, Marco Atílio Régulo foi um político da gente Atília da República Romana eleito cônsul por duas vezes entre 299 a.C. e 246 a.C.

No Prédio Almada, encontramos ainda uma segunda dedicatória à mãe dos deuses, desta feita de “Tito Licínio Amarantio”, outro provável mercador estrangeiro exercendo a sua actividade comercial em Olissipo ,o que revela a importância da cidade nos circuitos comerciais que ligavam o Mediterrâneo (Mare Nostrum romano) às províncias da Gália e do norte da Ibéria.

Testemunho, aliás, dessa importância são os tanques da cintura manufatureira de salga e conserva de peixe que rodeava a cidade e se estendiam desde a zona da Casa dos Bicos (Rua dos Bacalhoeiros), até à da Rua Augusta. Esta actividade permaneceu na cidade até, pelo menos, ao século IV d.C. O mesmo indicia a presença de cerâmica de tipo Kuass, encontrada nas escavações realizadas na zona do Teatro Romano de Lisboa e que foi datada da segunda metade do século II a inícios do século I a.C.

As aras da Travessa do Almada são um dos mais fascinantes pequenos pedaços da História de Lisboa. Merecem ser melhor tratadas, devidamente protegidas e explicadas para que continuem a surpreender o transeunte com a sua raridade e profundidade histórica, assim como me surpreenderam a mim, pela primeira vez, já há mais de quarenta anos. Para que o presente não permita a morte do passado mas, pelo contrário, possa garantir que ele passe até às gerações vindouras.

Para saber mais:
https://toponimialisboa.wordpress.com/2019/03/13/as-oficinas-de-conservas-de-peixe-na-baixa-lisboeta/
https://geo.cm-lisboa.pt/index.php?id=6703
https://repositorio.ul.pt/handle/10451/40406
https://cidadanialx.blogspot.com/2011/05/lapides-romanas-na-travessa-do-almada.html
https://lisboaromana.pt/imovel/monumentos-epigraficos-rua-das-pedras-negras
http://monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6474

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