Víctor Mota, antropólogo e filósofo, publica a sua primeira crónica no Artéria.
O grito histriónico do gato começa em casa. Não se cala, horas e horas uma gritaria que ecoava por toda a casa, como se ele quisesse não sei o quê, estava com o cio, isso é certo.
Dizia-lhe “Por qué no te callas?”, mas ele continuava, no seu miar, que se estendia desde a Praça da Figueira até à Expo, como se fosse o homem do Vitrúvio, à vontade no seu estertor felino. Por isso, deixei-me adentrar no seu universo, a fim de compreender o seu medo, mesmo no metro, a tensão da pulsão do Ser, do ver e do parecer, ou seja, todos funcionamos devido a certos mecanismos que ainda não compreendi totalmente mas que, com o tempo aqui na orla da Europa do Sul, vou tentando compreender e isso não sem intercâmbio com pessoas, pois é disso que se trata, não é somente o PS que o diz.
Embora não lesse frequentemente, procurava folhear alguns livros, o certo é que vivia rodeado por eles, mas as palavras estavam-me cravadas na mente como uma tatuagem na alma, depois de ter visitado o cemitério do Alto de São João. Já há algum tempo que não ia a diversos sítios, talvez preferisse mais os da internet, por aquele tempo de quase Verão.
Sabemos que os gatos são adorados pelos chineses, nós trazemo-los para dentro de casa, onde ecoa o respigo de uma alma no metro, com o fedor próprio dos pós e suores diversos. Portanto, resolvi apanhar um autocarro para Marvila, que deu voltas e mais voltas por volta da minha antiga casa, naquela zona, a biblioteca era assinalável, o seu espaço interior bastante arrumado e ao mesmo tempo arejado, parecia uma casa holandesa, perdão, neerlandesa. Ainda assim, não havia só pombos na estação do Oriente, ele vinham ter comigo a casa ao fim da tarde, quando fechava a janela de mais um dia, com alguns corpos de quando em vez, como lá na terra, dizia o meu velhote que era “sinal de morte”.
No segundo dia, voltei a Marvila e à biblioteca, para entregar uma obra de Camus, mas desta feita fui de comboio, até lá só passaria por Braço de Prata. Eram os lugares onde andamos todos os dias, onde cultivamos o uso do espaço e do tempo combinando com algum “estertor dos critérios”, ou seja, quando o corpo obedece é disposicional face à alma e à cena em redor. Por isso, também Lisboa não é apenas a minha cidade. Lisboa está na moda e esse é o eco de todo um mundo, não tem que ver somente com o espaço mais ou menos “nacional”.
A esponja, diz a ciência, é o ser vivo mais antigo do planeta, disse eu ao meu irmão para o entusiasmar a correr, o certo é que fez dali a pouco tempo uma maratona de Lisboa. Ia com força e desenvoltura na 24 de Julho e eu fui de comboio até Cascais dentro, que também é Lisboa, tal como a margem sul o é. O certo é que, nos meus dias, desde o tempo que vim para estudar, fui sendo uma esponja e fui também sendo apertado por todos os lados, daí ter dado tanto fruto, pelo menos em quantidade, em palavras.
O que pretendo provar? É que há uma absoluta forma de cidadania em Lisboa que não há em mais nenhum lugar do mundo, tal como a Rádio Marginal e a extinta Rádio Vox, para não falar do cinema Xenon, não esquecendo os idos King e Quarteto onde ia com o meu falecido amigo de infância Domingas. Se me sentia só? Sim, claro, todo o tempo, mas combatia isso fazendo festas ao gato, logo que me deitava vinha fazer um misterioso amplexo dentro dos meus braços, no escurinho do estertor nocturno das gaivotas, que também elas apareciam…
Portugal estava longe de ser um país falhado, se alguém pensa nisso, como eu que estudava filosofia e não tinha namorada há doze anos, guardava isso para mim quando pensava que a cidade estava comigo, com o reflector de bocas que eu próprio construíra para mim, uma espécie de canudo, aparelho, geringonça, que montada nas costas para me deixar prosseguir no espaço urbano…
Com tudo isso, percorria o mundo na minha cidade, que era a minha aldeia de antropólogo e optei pelo sedentarismo geográfico por vícios filosóficos, optei por ficar, como o meu pai fizera na aldeia onde de tudo acontece e não-acontece. Portanto, mesmo esse não acontecimento trazia prenhe a natureza dos homens e das coisas, ainda que debaixo do um vulcão de em águas tranquilas de bonança. Seria, então, naqueles dias, Lisboa, um não-lugar, para me referir ao termo de Marc Augé?
Sim, talvez o fosse, talvez não fosse apenas uma ponta da “Jangada de Pedra” de que fala Saramago, e talvez, devido ao seu fado, fosse uma Jangada de Perda… Porque todos estávamos em perda, em contínuo desconto face ao tempo, embrulhados em caixas e caixotes como em Blade Runner.
ARTÉRIA
O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.
TAMBÉM QUER PARTICIPAR?
Envie-nos um email para arteria@publico.pt, dizendo-nos que histórias
quer contar ou como gostaria de contribuir para o Artéria. Terá sempre resposta.