Fotografias: Fototeca do Centro de Estudos Geográficos – Instituto de Geografia e Ordenamento do Território – Universidade de Lisboa
Apaixonado por cidades, o leitor Vítor Oliveira Jorge escreve um longo e entusiasmado texto sobre o mais afamado dos geógrafos portugueses do século XX. E também sobre a sua relação com Lisboa. Orlando Ribeiro ficou conhecido pelo estudo do país rural, com especial destaque para a sua área meridional, de influência natural e cultural do Mar Mediterrâneo. Mas também se interessou bastante pelos fenómenos urbanos. E em especial pela capital portuguesa, “último exemplo ocidental de um sítio mediterrâneo típico”. Afinal, era esta a sua cidade.
Tive a sorte e o privilégio de ser aluno – e amigo, amizade essa correspondida, embora não íntima, pois nunca fui a sua casa – de Orlando Ribeiro, porque, durante o meu curso de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), entre 1965 e 1972, escolhi duas cadeiras de opção de Geografia Humana de que ele era regente. Verifiquei que falava sempre com conhecimento de causa, fundamentadamente, sobre qualquer área do planeta, e sobre qualquer tema histórico-geográfico-antropológico, numa articulação problematizante cheia de inteligência: um deleite, que tornava frustrante ter de abandonar a sala, no final de cada fascinante aula!
Assim estimulado, durante o curso, li praticamente toda a sua obra mais importante publicada até então, e desde logo o célebre “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”, obra-prima da literatura portuguesa – sim, da literatura e não só da geografia…- que todas as pessoas deviam ler, não para conhecer o Portugal presente, pois muitas transformações sofreu desde que o livro foi escrito, nem para conhecer um qualquer “Portugal em si” (mas o que seria isso?!… uma realidade fora do tempo e do espaço?!… tal não faria obviamente qualquer sentido…), mas para perceber o que era para Orlando Ribeiro um certo Portugal, dominantemente mediterrânico, por ele amado e idealizado – o livro foi escrito nos anos 40 e publicado pela primeira vez em 1945, só que teve diversas edições, algumas atualizadas, posteriores. E é um grande deleite, mesmo estético, entrar num livro tão belo, tão sentido, tão primorosamente evocativo como este.
Formado na escola francesa que vinha de Vidal de la Blache, Orlando Ribeiro, embora atento a todos os desenvolvimentos da sua disciplina, manteve-se sempre fiel a essa escola, valorizando uma geografia qualitativa, profundamente ligada à história e à experiência direta de contacto com as populações – não nos podemos esquecer de que em Portugal ele foi discípulo de Leite de Vasconcelos – e considerando que a introdução de métodos quantitativos, e metodologias conexas de raiz norte-americana, propostas e praticadas pela “Nova Geografia” (cuja figura pioneira em Portugal é Jorge Gaspar), seriam úteis, mas não captavam o essencial da experiência humana.
Para Orlando Ribeiro, tudo quanto dizia respeito a esta nossa milenar experiência sobre toda a Terra, assente na geologia, no solo que pisamos e alimenta a vida, e nos fenómenos naturais em que essa experiência se entrosa, era igualmente importante, e alvo do seu interesse e estudo. Não se tratava nunca de simplesmente acumular informações, ou de considerar que o meio-ambiente determinava as ações humanas, mas antes criava condições diversas para uma grande variedade de articulações mútuas terra-homem, dentro de um “possibilismo”, como foi chamado, responsável pela formação das paisagens, todas produto da história, e portanto sempre em mutação. Paisagens evidentemente não entendidas como algo visto à distância, para contemplação do viajante automobilizado, mas como a própria realidade mesma do mundo em que o ser humano está imerso e onde ele tem de aprender a viver, calcando o solo, falando com as pessoas que dele vivem, em cada momento, em comunidade.
É verdade, como justamente defende o antropólogo João Leal num lúcido texto de 2001, que tanto Orlando Ribeiro como Jorge Dias, o etnólogo, se caracterizavam por uma certa ideologia pastoralista, arcadiana, que tendia a ver no campo, e na ruralidade algo mitificada de Portugal – nessa íntima relação do agricultor com a terra cultivada -, a verdadeira essência das regiões e, em última análise, da identidade nacional que as conjugaria todas entre si, na sua diversidade. Diversidade aliás dependente de isolamentos antigos, mantidos por rotas de comunicação muito rudimentares.
Por isso, a primeira atração de Orlando Ribeiro foi dirigida à geografia rural. É interessante que, muito embora ambos dividissem o território português em três grande zonas (um esquema, na realidade, proposto por Ribeiro e acolhido por Dias), o Norte Atlântico, o Norte transmontano e o Sul mediterrânico, era evidente a propensão afetiva de Orlando pelo Sul, pelo Mediterrâneo, e de Jorge Dias (formado na Alemanha) pelo Norte. O que tinha a ver com a valorização de realidades civilizacionais diferentes, o Sul, com os romanos e os árabes, para Orlando, e o Norte, com os lusitanos e os suevos, para Dias.
De facto, em “Portugal, O Mediterrâneo e o Atlântico” e noutras publicações posteriores – em especial, “Mediterrâneo, Ambiente e Tradição”, de 1968, nova obra-prima, muito influenciada pelo historiador Fernand Braudel e por toda uma tradição de estudos sobre este grande mar interior, cadinho de civilizações – o geógrafo mostrava bem o seu fascínio por um Sul mediterrânico e por algo que acentuava nas suas aulas: de que não nos esquecêssemos de que existem três penínsulas mediterrânicas, a grega, a italiana e, a mais extrema, a ibérica. Assim se explica o ênfase dado ao “mar interior” no seu livro sobre Portugal, um país cuja costa é toda atlântica.
Mas tanto Orlando como o seu colega alemão Hermann Lautensach, com quem conviveu – dois autores e duas obras incontornáveis sobre Portugal que mais tarde Suzanne Daveau, grande geógrafa também, e mulher de O. Ribeiro, procurou articular em quatro volumes –, sempre ressalvaram o facto da paisagem portuguesa se apresentar como um mosaico, em que até as espécies botânicas mediterrânicas e atlânticas se encontravam mescladas no coberto vegetal de muitas regiões do país.
Em geral, poder-se-ia dizer que para o grande geógrafo as influências “nórdicas” e “continentais” da Europa tinham, de facto, afetado a realidade portuguesa, mas o seu substrato mediterrânico é de tal modo antigo, e fortemente sedimentado, que ele é aquele que, afinal, prepondera na caracterização de Portugal como entidade histórico-geográfica.
Importa ainda acrescentar que, no mesmo texto em que aborda as obras de Orlando Ribeiro e de Jorge Dias como duas manifestações desse género pastoral, João Leal se refere, por contraste, a um terceiro pioneiro das ciências sociais em Portugal, João Cutileiro, que nos deu a célebre obra inaugural sobre uma aldeia (não especificada) do Sul: escrevendo no estrangeiro, em 1971 – o livro foi traduzido só depois do 25 de abril, em 1977, com o título de “Ricos e Pobres no Alentejo. Uma Sociedade Rural Portuguesa” -, Cutileiro pôde ter a distância e a liberdade de espírito de já não ver o Sul mediterrânico de Portugal em tons tão “líricos”, mas antes como uma grande área de intensa exploração humana, de profundas diferenças sociais e de dura dominação dos camponeses sem terra. Apropriadamente, Leal refere-se a essa obra de Cutileiro como contra-pastoral. E, de facto, ela abriu para diversos autores um outro horizonte, crítico e ajustado à longa ditadura que sofremos, para a compreensão de Portugal.
Assim, este enquadramento ajuda-nos – sem diminuir um milímetro a grandeza de Orlando Ribeiro, o seu incontornável, infatigável, fascinante e multímodo labor, que se estendeu à vulcanologia, à fotografia, à botânica, entre outras disciplinas – a compreender o carácter de “obra situada” num tempo e num espaço, que toda a produção humana afinal tem, nomeadamente quando é inspirada, e inspiradora de uma escola, como é o caso.
Devemos-lhe mais do que um simples incremento, devemos-lhe a verdadeira institucionalização e internacionalização da geografia portuguesa (e temas conexos, que sempre abordou) como jamais tinha acontecido antes: basta atentar na fundação do “Centro de Estudos Geográficos” (primeiro em Coimbra, depois em Lisboa) e da revista “Finisterra”, que criou, entre tantas outras atividades (organização de reuniões científicas internacionais, etc.) impossíveis de referir aqui. Só lembrar, como símbolo da sua postura, que, sobre uma porta do Centro de Estudos Geográficos da FLUL, ele tinha mandado colocar, bem visível, a imagem de um grande olho humano aberto, para acentuar que a geografia começa por ser, sempre, um exercício de observação atenta da realidade, e de estudo sedimentado nessa observação.
Tudo o que escrevi até agora serve afinal, nesta breve crónica, para integrar o labor de Orlando Ribeiro no tema que mais nos importa evocar aqui: o seu trabalho sobre as cidades e, mais concretamente, sobre a de Lisboa. Neste caso, é preciso também ter presente que, em particular a geografia urbana só tardiamente se emancipou da geografia da população em que tradicionalmente se integrava, o que se compreende dado o papel crescente, avassalador mesmo, que as cidades foram ganhando, nomeadamente a partir da II Guerra Mundial e até hoje. O que assistimos é a uma urbanização crescente do mundo, e a uma tendência para o esbatimento da distinção tradicional cidade-campo. Por isso a explicação das cidades e do campo está interligada. E em Orlando Ribeiro também.
Daqui que falemos sobretudo de áreas metropolitanas, e que Lisboa, como O. Ribeiro bem sabia, se não podia nem pode compreender sem a sua envolvente “saloia” (e além dela), tanto no passado, como numa época mais recente, em que o aumento da população que demandou emprego na cidade – devido à pobreza no mundo agricola e à entrada da indústria – e depois o encarecimento progressivo da vida naquela, foi, em vagas mais ou menos importantes, derramando para a periferia, por vezes de forma descontrolada, uma população imensa.
População essa que hoje a povoa, num mosaico estranho de urbanizações improvisadas, antigos bairros clandestinos, pedaços de campo agrícola à mistura com instalações empresariais e industriais, enfim, compondo uma paisagem predominantemente desordenada, irracional e em geral desqualificada: o subúrbio. A cidade, que atraiu, também acabou por repelir muita gente.
Valorizando afetiva e cientificamente o rural, atitude afinal própria de um citadino como O. Ribeiro, que viveu a sua infância na Rua da Escola Politécnica, ali bem no centro de Lisboa, e em frente à antiga Faculdade de Ciências e ao Jardim Botânico, onde brincou, todavia não deixou nunca de estudar as cidades – desde os anos 30 e 40, datando dos anos 80 um trabalho sobre Évora e dos anos 90 outro sobre Viseu, e vários sobre Lisboa ao longo desse tempo todo -, tanto mais que elas eram básicas para compreender a história que, para ele, sempre se entrosou com a geografia. Licenciara-se, aliás, num curso que unia as duas disciplinas.
Mas Lisboa era “a sua pátria”, sobre a qual, inclusivamente no quadro dos “Estudos Olisiponenses”, cuja cadeira regeu, foi escrevendo sem nunca ter chegado a abraçar tanta reflexão num grande livro de conjunto e de síntese com que, todavia, sonhou.
Em 1970, o mestre afirmava: “Vivendo e trabalhando em Lisboa, tendo até ensinado «Estudos Olisiponenses», quando a Câmara Municipal criou esta cadeira, ocupei-me por mais de uma vez da capital; embora a minha predileção fosse para os estudos rurais e a variedade dos contatos de civilização, comecei a preocupar-me, nos últimos anos, com o estudo geográfico das cidades e as dificuldades e hesitações da sua metodologia”.
Situada no extremo da Europa, para Orlando Ribeiro, Lisboa era a “última cidade mediterrânica”, assente nas suas sete colinas: para ele, o estudo da urbanidade começava por compreender o sítio da implantação topográfica original, e daí prosseguia então para as suas diversas transformações sofridas ao longo do tempo. Só desse modo se poderia perceber a estrutura desse organismo vivo que a cidade representa, em cada momento do ser devir.
São, de facto, suas estas palavras sobre o sítio de Lisboa (1949): “Lisboa é assim o último exemplo ocidental de um sítio mediterrâneo típico, combinando as vantagens de uma baía abrigada do vento do largo e de um relevo fácil de defender, a partir do qual se pode vigiar o porto.“ Compreende-se pois facilmente que após a sua conquista aos mouros se tenha tornado capital do país desde o séc. XIII”. No mesmo texto, o autor escreve, na legenda de um esquema, que apresenta, do “sítio genético de Lisboa”: “ A velha povoação estendeu-se primeiro pela vertente meridional da colina do castelo; depois a Baixa estruturou-se no vale situado a oeste, entre a Ribeira e o Rossio; a expansão às outras colinas é mais recente e é feita sobretudo a partir das igrejas conventuais.”
E o apaixonado pela vida rural vai, a seguir, acentuar quanto esta penetrava o “próprio coração da cidade”, através de vales férteis com aluviões propícios à agricultura, entre colinas ainda povoadas de oliveiras. E assim Orlando Ribeiro, através da história da sua cidade, plasmada no espaço do passado, reencontrava o clima bucólico a que a sua sensibilidade aspirava…
É preciso terminar, pois quem aborda este magnífico e prolífico autor tem, a determinada altura, de pôr um ponto final na tentativa, resumidíssima, de colocar “ o Rossio na Betesga”: ele é grande de mais! Desejo apenas referir que me foi útil, para elaboração deste breve escrito, a dissertação de mestrado de José Vicente Braga Costa, “Geografia de Lisboa segundo Orlando Ribeiro” (FLUL, 2012), e ainda acrescentar que aconselho aos interessados a leitura do volume V dos Opúsculos Geográficos sobre Temas Urbanos, coligido por Susanne Daveau e publicado pela Fundação Caloust Gulbenkian.
No bairro de Telheiras, no Solar da Nora, existe, desde 2003, a Biblioteca Orlando Ribeiro, outra forma de fazer perdurar o seu nome na cidade e não só (https://blx.cm-lisboa.pt/local/biblioteca-orlando-ribeiro/). A Universidade de Lisboa resume a sua personalidade numa breve resenha disponível online: http://orlandoribeiro.igot.ulisboa.pt/home.htm
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