Paulo da Costa Domingos
“Abandonei tudo pelos livros aos dezoito anos.”
Na baixa lisboeta, ao longo da Rua Anchieta, no Chiado, há uma pequena feira de alfarrabistas. As mesas estendem-se por toda a rua, cobertas de livros de todos os tipos: arte, cultura, ficção, fantasia e até alguns tesouros escondidos, raros e invulgares, no meio do que é comum.
Atrás de uma dessas mesas está Paulo da Costa Domingos: alfarrabista, poeta e escritor, designer de livros e antigo editor e paginador. Tudo começou aos dezoito anos de vida, quando trocou pelos livros a vida que tinha. “Entrei nos livros e nunca mais os deixei”, diz.
Para Paulo, a profissão de alfarrabista vai para além da venda de livros em segunda mão. Trata-se de proteger os livros, aqueles que foram e são marcos da história literária. “É preciso retirar, identificar o que é bom, o que é raro, retirar da rua e colocar nas mãos de clientes que possam fazer andar para frente, porque um dia desaparecem!”, afirma Paulo. Num tom mais baixo, quase de uma tristeza conformada, reforça:“Há livros que um dia desaparecem.”Até porque alguns são tão únicos e tão raros que nem as grandes bibliotecas os têm.
Um dos problemas prende-se exatamente com os alfarrabistas portugueses. “A grande maioria das pessoas que estão neste negócio compra livros como podia ter comprado batatas”, afirma Paulo. Compram aos sacos, sem saber muito bem o que lá vem e depois revendem em feira. É um negócio, nada mais.
O que acaba por acontecer é uma grande troca e venda entre os próprios alfarrabistas e, eventualmente, lá aparece uma ou outra joia escondida por entre o comum. Paulo diz que já chegou a encontrar primeiras edições de Fernando Pessoa, inclusive d’A Mensagem, um livro que pode chegar até aos quatro mil euros em leilão.
Para além de vender na feira, Paulo também tem um site (https://frenesilivros.blogspot.com/), que é onde estão os seus livros mais valiosos. É aí que faz a maior parte das vendas, no entanto, os preços são mais elevados do que na feira.
O alfarrabista confessa que houve algumas peças das quais não se conseguiu desfazer. Uma delas são os desenhos do rei D. Fernando. Existem apenas cinco livros no mundo e foram guilhotinados e divididos em pequenas partes. De tal modo que não há coleções completas. Paulo tem uma das maiores, com cerca de setenta destas partes. “Num leilão, por imprudência, o leiloeiro deixou aquilo ser vendido muito barato. Muito barato que, na altura, foram cinco mil euros”, conta.
Outra peça da qual nunca se conseguiu desfazer foi um álbum de fotografias da rainha Dona Amélia, uma das primeiras mulheres a usar a máquina fotográfica. O álbum retrata uma ida ao Egito com amigos e com a corte. Paulo conseguiu adquirir o que tinha pertencido ao médico pessoal da rainha.
“São peças que, à partida, não tenho interesse em vender, porque tenho gosto de tê-las, de vê-las e folheá-las.”
António Pereira da Trindade
“O livro raro tem de ser raro e, portanto, raramente aparece.”
A Livraria Trindade está na família desde os anos 30 do século passado, quando foi fundada. De avós para pais e para filhos, há cerca de 10 anos que está nas mãos de António Pereira da Trindade, a terceira geração. Apesar de se situar agora no Chiado, nem sempre foi assim. Inicialmente, estava à frente do Mosteiro de Alcobaça.
Quando se entra na loja, os livros envolvem-nos por completo. Estão em cada canto e recanto, arrumados em estantes altas e cheias. Uns mais velhos, outros mais jovens, uns de capa dura e dourado na lombada; outros de capa mole, marcados pelo uso e pelo tempo. A Livraria Trindade não se dedica apenas à venda de livros na loja física: há também antiguidades, disponíveis para compra no website (https://www.livraria-pt/).
António Trindade foi professor de secundário de filosofia durante vinte e três anos. Mas a velhice do pai e a doença da mãe levaram-no a tomar a decisão de agarrar na loja. Era, desde pequeno, e de todos os seus irmãos, o mais próximo da livraria.
Na loja, tem normalmente apenas livros de que gosta. Cada alfarrabista tem a sua especificidade e a de António Trindade é “Portugal”. “Tento guardar aquilo que é a nossa identidade literária nacional e também da história portuguesa”, diz. Compra os livros maioritariamente a bibliotecas privadas.
As razões para vender são sempre as mesmas, semelhantes de alfarrabista para alfarrabista: um parente morreu e os herdeiros não têm interesse na literatura, alguém vai mudar de casa e não quer levar os livros todos consigo, ou a pessoa simplesmente já não tem espaço. E vendem. “Muitas vezes, dessas bibliotecas grandes aproveita-se uma pequena parte, porque a maior parte dos livros, com raras exceções, não têm assim muito interesse”, afirma António Trindade, encolhendo os ombros.
Na opinião de António, o termo “livro raro” é usado demasiadas vezes e com demasiada leviandade. Afinal de contas, “o livro raro tem de ser raro”, diz. “E, portanto, raramente aparece.” O raro é uma primeira edição d’Os Lusíadas¸ do qual só se conhecem duas cópias em mãos privadas no mundo. Ou uma primeira edição de Dom Quixote, de Cervantes, que não aparece no mercado desde os anos 80, segundo António Trindade.
O alfarrabista diz nunca ter encontrado nenhum e que nunca teve a sorte de ter um em loja. No site da Livraria Trindade, o separador diz, por isso mesmo, “Livros Invulgares”: livros difíceis de encontrar, mas que se encontram no mercado. Já na loja física, esses livros estão guardados. São para determinados clientes, para quem sabe o valor do que ali está.
Maria Eduarda Sousa
“Se a gente diz o nome do livro em voz alta, ele aparece.”
Na Livraria Bivar, os livros voam das estantes entre entradas e saídas, postos e repostos, vistos e folheados. Estão divididos por secções e, se se descer as escadas à frente da estante pintada na parede, encontra-se ainda outro mundo cheio de livros e mais livros. A dona e gerente está sempre na loja, com um sorriso no rosto, pronta a ajudar.
Maria Eduarda Sousa é natural dos Açores, mas logo em muito pequena foi levada para o Canadá, onde viveu durante 50 anos. Apenas após se reformar, decidiu voltar para Portugal – desta vez, para Lisboa. Foi nessa altura, em 2015, que conheceu a Livraria Bivar, uma peculiar loja de livros em segunda mão.
Em 2019, a proprietária na altura, natural da Finlândia, decidiu voltar para o seu país e fez-lhe a proposta de ficar com a loja. “Perguntou-me se eu queria comprar a loja e eu disse «sure, eu posso vender livros»”, conta. Antes disso, Maria Eduarda nunca tinha pensado em ter uma loja, muito menos em vender livros.
A Livraria Bivar é a única loja de Lisboa dedicada à venda de livros em segunda mão exclusivamente em inglês. “Todos os alfarrabistas e as lojas que vendem livros em Portugal também têm livros em inglês, mas não vendem muito. Não há muita seleção. Então, quando uma pessoa vem a esta loja, há muito mais para escolher do que nos outros alfarrabistas”, garante.
Para espanto de Maria Eduarda, os seus principais clientes são portugueses: desde pais a comprar livros para as crianças que estão a aprender inglês na escola a entusiastas da literatura inglesa. “Durante a pandemia, se não fossem os meus clientes portugueses, a loja já estava fechada”, conta. No entanto, ainda aparecem alguns turistas e estrangeiros.
No mundo encantado dos livros, histórias são o que não falta. Maria Eduarda conta que, por várias vezes, já entraram pessoas na Bivar à procura de determinado livro. Acaba por ter de responder: “desculpe, mas o que eu tenho está aqui”. E a pessoa vai embora de mãos a abanar. No entanto, eis que, no próprio dia, entra outra pessoa na livraria a querer trocar ou a vender livros e lá no meio surge, quase que por magia, o livro que momentos antes tinha sido procurado. “Agora, digo às pessoas que se a gente diz o nome do livro em voz alta, vai aparecer”, diz Maria Eduarda, rindo.
A preocupação em arranjar constantemente livros “novos” faz parte da vida de um alfarrabista. Maria Eduarda diz mesmo que, às vezes, nem dorme de noite, só de pensar nisso. Um dos métodos que a proprietária arranjou para combater o problema das estantes vazias é a troca de livros por créditos. Na Bivar, pode-se levar livros que se tenha a mais ou que já não se leiam e Maria Eduarda converte-os em créditos para gastar na loja.
É também nas feiras, onde se encontram outros alfarrabistas, que Maria Eduarda vai à procura de livros em inglês, para revender na Bivar. Mas continua a ser um processo difícil. A maior parte dos alfarrabistas não tem interesse por livros em inglês. “Houve uma vez que comprei um livro a um alfarrabista, numa feira no Arco do Cego, de capa dura, uma primeira edição. Era linda!”, afirma ainda chocada a contar a história. “E eu comprei por cinco euros e disse-lhe «Mas sabe que isto é valioso?». E ele disse-me «sim, mas eu não vendo livros em inglês, então são cinco euros!»”, conta Maria Eduarda Sousa.
Pelas mãos de Maria Eduarda já passaram todo o tipo de livros, desde os vulgares aos raros. Na Bivar, estão disponíveis muitas primeiras edições, livros de capa dura com as folhas já amarelas.
John le Carré é o autor do livro mais raro na Livraria Bivar. Para além do autor ser muito reconhecido pelo seu género literário, o exemplar é ainda mais valorizado por ter uma dedicatória escrita pelo próprio. Estes livros são, muitas vezes, doados ou encontrados nas feiras, desvalorizados por vendedor e comprador.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.