Uma cena observada numa caixa de supermercado, bem no centro da cidade, a servir como motivo para uma meditação sensível e amarga por parte de uma leitora do Artéria. E a funcionar também como lembrança à comunidade de que é preciso fazer muito mais para resolver o isolamento de muitas das pessoas mais idosas da capital portuguesa. A solidariedade é a resposta.
Ontem conheci a Dona Maria de Lurdes. Baixinha. Cabelo curto, branco. Olhos claros. Tem um olhar triste, mas doce. Usa uma bengala. Estava na caixa à minha frente no Continente da Av. de Roma ao final do dia, já noite caída. Sozinha e com algumas compras. Muitas e pesadas, verifiquei depois. Pesadas para a idade que tem e a fraca compleição física de um corpo já mirrado. A menina da caixa perguntou se ia levar tudo sozinha. A senhora respondeu que morava perto. – “Não é assim tão perto” – disse a menina da caixa que saberá onde mora aquela cliente habitual. Ofereci-me para levar as compras até casa não sabendo quão perto ou longe seria. Era na Sacadura Cabral. Não muito longe para mim, mas bastante para uma pessoa daquela idade carregada de compras.
Saímos com as minhas compras e as da senhora. Ainda lhe disse que não devia ir ao supermercado à noite. Que era perigoso e podia aproveitar as manhãs. “- Pois é, mas não tive coragem para sair e só agora vim à farmácia medir a tensão porque não me estava a sentir bem. Pensei que fosse hoje que me ia… São 90 anos, menina”.
“Toda a gente me conhece aqui! Sou a Maria de Lurdes. Se perguntar por mim, toda a gente me conhece”.
Não demos muitos passos até que a Dona Lurdes me começasse a contar a sua vida. A perda do filho pródigo que lhe “ligava todos os dias mesmo quando ia ao estrangeiro”. Filho que lhe morreu numa cirurgia. Da depressão que teve pelo luto. Da perda do marido. Falou-me então do outro filho. O que vive lá em casa. “Era um menino lindo que toda a gente queria ver, mas foi muito mimado. Vive lá em casa e não trabalha nem faz nada. A culpa é minha, mas é meu filho, o que hei-de fazer? Desaparece durante dias sem uma chamada que seja.”
A tristeza misturada com a doçura no olhar eram comoventes. Não há mais família. Amigas – perguntei. “Família não tenho e as amigas foram desaparecendo ou estão num lar”. A Dona Lurdes confessou-me que está a pensar ir para um lar para estar mais acompanhada. Mas que o filho não quer. Com a vizinha de baixo às vezes desabafa, mas o filho não gosta dela porque uma vez chamou a polícia. “É que uma pessoa precisa de desabafar”, diz-me em lágrimas. Falou-me da solidão sem a nomear.
Falou-me da sua juventude e de como o marido a catrapiscou e foi amor à primeira vista. Falou-me de como um filho era bom aluno e exemplar e o outro correu várias escolas porque não se adaptava a nenhuma. E culpou-se também por isso.
Chegando ao prédio deixei as compras no elevador e já não subi, não fosse o filho não gostar e descarregar na mãe. Avisei a Dona Lurdes de que tinha de ter cuidado e não confiar em toda a gente. Eu não iria fazer-lhe mal, mas anda por aí muito lobo com pele de cordeiro.
Iam uns vizinhos a entrar que a trataram pelo nome e com carinho que só deve ter de estranhos. Agradeceu-me. Dei-lhe um abraço e saí do prédio desfeita. A Dona Lurdes vive num “silêncio no meio de tanta gente”, como cantou Maria Guinot.
Há muitas Donas Lurdes nesta cidade. Quem não se lembra do “Senhor. Do Adeus” que ia para o Saldanha fazer adeus às pessoas que passavam só para não se sentir sozinho.
Vivemos numa cidade moderna, cosmopolita, cheia de vida, de sítios modernaços e trotinetes. Há muitas iniciativas de putativa inclusão das minorias, mas não se vislumbram acções da Juntas e outras entidades para incluir verdadeiramente os que foram excluídos porque são um fardo e já não produzem. E todos lá chegaremos mas andamos distraídos e não nos lembramos disso.
Há muito silêncio e muita solidão. Não, não “vai ficar tudo bem”! Esta cidade, definitivamente, não é para velhos.
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