Na cidade, o bom vizinho não é aquele que oferece couves ou ovos, como no campo, mas aquele que nos deixa usar o contentor de lixo do seu prédio. Uma bem-humorada diatribe da leitora Sofia Tomás sobre uma das mais comuns irritações do quotidiano lisboeta.
Existe um manual de etiqueta em relação a contentores de lixo, coisa que o comum dos mortais (como é o meu caso) desconhece. Perto do meu prédio e, apesar da existência de ecopontos, não tenho nenhum contentor de lixo indiferenciado público. O mais próximo situa-se na Avenida Infante Santo. Contudo, existem dois prédios na vizinhança que têm os seus contentores próprios e que os colocam na rua ao início ou final do dia: um condomínio cor-de-rosa e um velho palacete dividido em apartamentos.
Usei esses contentores, durante anos, sem qualquer tipo de problema, até que um dia, uma das inquilinas do velho palacete, sentada dentro do seu geriátrico e avariado automóvel (como tinha a janela aberta ouvi a conversa que mantinha ao telemóvel, queixando-se do reboque nunca mais aparecer), viu-me a pôr o lixo no “seu” contentor. Como devia estar furiosa com a avaria do automóvel aproveitou a ocasião para me passar uma descompostura, num tom frustrado e altivo de “tia da Lapa”, dizendo que o contentor era só para uso dos inquilinos do prédio. Ainda tentei explicar-lhe que não havia nenhum contentor público nas redondezas, mas ela, aborrecida por estar à espera do reboque, nem quis ouvir.
Não sei porquê, mas disse-lhe que a caridade era uma virtude (às vezes, digo coisas estranhas e despropositadas, como um profeta de terceira categoria) e voltei para casa. Mas isso não me impediu de deixar o saco no contentor de lixo do palacete. A outra opção seria arrastar o saco pesado e malcheiroso até à Avenida Infante Santo e eu estava cansada.
A partir daí, passei apenas a pôr o lixo no contentor do condomínio cor-de-rosa. E olhava sempre em volta para não ser apanhada, como um ladrão que ainda não se habitou a violar a lei.
Um dia, retirei o lixo de casa pela manhã e o contentor ainda não estava lá. Ia deixar o lixo no sítio onde o contentor costuma estar aparcado, mesmo correndo o risco de apanhar uma coima, quando o porteiro apareceu a arrastá-lo. Com cara de poucos amigos, abriu a tampa do mesmo para eu colocar o lixo, dizendo que era preciso fechar bem o saco por causa dos cocós do cão. Expliquei que era uma gatinha (o peso da Conchita é mais para gatona XXL) e sorri atrapalhada. Desejei bom dia ao senhor e agradeci, indo para casa aprontar-me para o trabalho. Fiquei aliviada por não começar o dia a discutir por causa de lixo. Há coisas tão mais interessantes para se perder a cabeça, não é mesmo?
Desse dia em diante, passei a cumprimentar o porteiro do condomínio, ao que ele começou por responder de cara fechada, mas que se foi suavizando com o passar dos tempos. Fiquei grata por me deixar usar o contentor de lixo, ao contrário da gélida criatura do palacete. Talvez por isso, nem levei a mal a observação indiscreta que fez sobre nunca mais ter visto o meu “esposo” (na realidade, namorado). Expliquei-lhe que a Pandemia servira para clarificar certas coisas, que já não estávamos juntos, mas que continuávamos amigos.
Nas aldeias, dá-se pão, ovos ou couves aos vizinhos, mas na cidade os contentores de lixo são bens mais escassos e uma pessoa fica feliz com estas pequenas bondades. E por isso até desculpa uma certa coscuvilhice.
Voltei a ver a “tia” no Pingo Doce uns dias depois. Mantinha a expressão carregada, por isso, algo na sua vida continuava a não pegar. Gostaria de compreender o que, além da prepotência, justificou o zelo na proteção do “seu” contentor de lixo, mas fingi que não a conhecia e dirigi-me à secção dos champôs. Há mistérios nesta vida que não são para serem resolvidos.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.