Crónica

Vítor Oliveira Jorge

Aeroportos, aviões e outras elevações

6 de Outubro, 2022

O sobrevoo de Lisboa por aviões comerciais tem sido uma constante nas últimas décadas. Difícil, por isso, não os associar à cidade. Mesmo que, devido ao ruído, à poluição e à insegurança, sejam fonte de constante irritação. Não a ofuscando, de todo, o leitor Vítor Oliveira Jorge usa as aeronaves, porém, como motivo para uma afetuosa rememoração de outras viagens. E dela descola para uma cultivada digressão sobre o simbolismo do acto de voar. Um texto sempre em movimento ascendente e em velocidade de cruzeiro.

Não, fique descansado(a), não venho falar do novo aeroporto de Lisboa. Começo apenas por referir esta originalidade da nossa cidade. Um dia, estava dentro de um avião na Portela, os motores no máximo, uma fila de outros aparelhos à frente, à espera para levantar voo para os Estados Unidos. Naquela certa ansiedade que sempre antecede a descolagem, sou descontraído pelo dito de um norte-americano que ia na fila à minha frente, e que, pelo que percebi, dizia, com humor, à mulher: “olha, que engraçado, os portugueses até nisto são originais… mesmo no fim da estadia proporcionam-nos aqui um passeio pela cidade…”. Claro que aquilo era uma blague, pois o que se podia ver do avião eram apenas umas casas feias, clandestinas, que então se amontoavam ao lado do aeroporto, para lá da vedação, e que entretanto foram todas removidas.

Mas, realmente, tive algumas atribulações no aeroporto. Chegava à Portela carregado, precisava de um táxi, eles às vezes esperavam ali horas pelos passageiros, e eu, que vivia na Avenida Rio de Janeiro, ali ao pé, e depois numa certa altura em Olivais, ainda mais perto, tinha de aturar a má catadura do motorista que me transportava, contrariado, e deveras frustrado. Embora eu alimente o maior respeito por taxistas, é uma profissão dura e até perigosa.

De tal modo, mesmo, e em contraste com aquela atitude, um dia, em Dublin, um taxista foi tão amável que até, no fim da corrida, saiu do carro para me abrir a porta e disse-me esta frase que nunca mais esqueci, perante o meu espanto: “meu caro senhor, o taxista tem de receber bem quem chega, é a primeira pessoa que o viajante encontra quando aterra aqui, no meu país”. Tinha razão, uma razão universal. E depois disseram-me que lá na Irlanda os taxistas são todos assim; ou eram, já não vou lá há uns anos. Mas cá também há muita gente simpática nessa profissão.

As atribulações continuam, claro, com a poluição sonora – e não só, evidentemente – que os aviões criam em Lisboa. E o perigo… Passando por cima da Universidade, de hospitais, do Arquivo da Torre do Tombo (meu deus, se temos a pouca sorte de um dia um cair ali, o diabo seja surdo, cego e mudo – pobres também dos que lá forem dentro – lá se vai ao ar a nossa memória nacional, mesmo a que resistiu ao grande terramoto ou à “partida” da corte, com o que pôde arrebanhar de património, para o Brasil, para escapar ao Junot).

Mas, por exemplo, estar regalado a ouvir um bom concerto de jazz ao ar livre nos jardins da Gulbenkian, em agosto, e ter aviões em cima com todo aquele ruído (sobretudo quando vão a levantar, pouca sorte) de 15 em 15 ou de 20 em 20 minutos, é uma experiência que dilacera a sensibilidade – quase como quando estamos a ouvir um concerto de Bach no YouTube e vem a meio um anúncio de um novo creme para qualquer coisa. Pior porém para a saúde, saúde física mesmo, é realmente habitar certas zonas de Olivais Sul, onde o pessoa se habitua a tudo, e depois já nem ouve os aviões, mas, por vezes, pode acontecer-lhe vir à varanda e apanhar mesmo em cheio uma baforada daqueles gases dos motores em arranque…quase asfixiante. Comigo aconteceu muitas vezes.

Os encantos de outros tempos

Mas deixemo-nos de tristezas e de coisas negativas. Tanto quanto possível. Dantes, o aeroporto não tinha o aparato que tem agora, mas era um sítio apetecível, as pessoas iam despedir-se de quem partia, e subiam a um terraço de onde se podia dizer adeus, e até verter lágrimas de comoção; momentos que podiam ter algo de glorioso, de épico! Viajar de avião era um luxo, uma experiência sonhada durante muito tempo por um miúdo como eu. Tanto, que um dos meus passeios preferidos era ir a pé até ao aeroporto.

A Associação dos Estudantes do Técnico (AEIST), uma das que o regime permitia, a determinada altura criou uma possibilidade que utilizei duas vezes, com grande proveito, a de viagens de estudantes muito mais baratas. Íamos para um país da Europa trabalhar em quintas ou em tarefas que nos dessem, no campo ou em fábricas, e com o pouco (para nós muito) que nos pagavam, aguantávamo-nos lá um mês a ver belezas e a ter experiências: era o nosso sonho.

Eu fui logo na primeira viagem dessas, creio, em 1965, mas não começou bem. O avião fretado era tão pequeno que, quando aterrou aqui na pista, ficou escondido entre os outros; parecia do tempo da 1ª Guerra. Bem, era movido a hélice, isso era o menos, mas com poucos lugares, e teve de parar em Biarritz, no sul de França, para reabastecer de gasóleo. OK, até aí tudo bem, mas depois o atravessamento do canal da Mancha até Londres foi mesmo tormentoso. Apanhámos uma tempestade tão grande que um amigo que me acompanhava e ia lívido à minha frente (havia bancos virados uns para os outros) “entregou a alma ao Criador”, como eu costumo dizer. Ou seja, convenceu-se mesmo de que íamos morrer.

A aeronave dançava no céu como uma folha ao vento, tudo aos solavancos, as hospedeiras tentavam equilibrar-se, a cabeça delas colada a sacos de vómito, ouvia-se o ruído ensurdecedor das “pedras” de gelo a baterem na carlinga, e tudo aquilo era iluminado amiúde pelos raios de uma trovoada imensa. Não sei como, passadas sete horas depois de sair de Lisboa, chegámos ilesos a um aeroporto secundário de Londres. Um dia conto o que aconteceu depois. Londres é Londres e aqui trata-se de Lisboa. Como dizia bravamente o Batista Bastos, ter medo de andar de avião é uma coisa, ser cobarde e não ir é outra; ora, ser cobarde, não!

De modo que as minhas experiências posteriores em todos os tipos de aviões – nomeadamente em Moçambique -, de helicóptero, algumas bastante diferentes do comum, dariam para muitas histórias que não têm aqui cabimento. O que é certo é que a minha sina é “ver passar aviões”, pois vivo atualmente, de novo, não longe do aeroporto, e vejo-os praticamente no “take off”, mas fico sempre nostalgicamente, talvez invejoso, a pensar para onde irá cada um. Com espírito de humor recordo tudo isto.

Passarola, a ascensão e colunas

Realmente, eu gosto de tudo o que sobe orgulhosamente no ar, acho isso maravilhoso, adoro pássaros, quanto mais exóticos e coloridos melhor, incluindo a famosa Passarola, tanto a original como a do Saramago, gosto de árvores antigas e caprichosas, catos gigantescos, admiro arquiteturas contemporâneas que se elevam a grande altura, aprecio muito a Joana Vasconcelos e as suas surpreendentes obras enormes, gosto do exagero barroco, e aprecio o próprio bailado ocidental (sobretudo o menos convencional) que sempre foi uma tentativa de pôr os corpos a fugiram do chão, a voar. Na atmosfera, respiramos, somos livres, libertados da horizontal em que nascemos e para onde voltaremos.

Por alguma razão a nossa religião cristã católica, em que fui educado em miúdo, celebra a ascensão ao céu, de Jesus, da Virgem Maria, de santos, de almas, eu sei lá. A nossa civilização é ascensional. Subir na vida, o elevador social, erguer-se do chão e caminhar, a própria posição bípede do ser humano, tudo isso são formas ascensionais, cultos laicos da verticalidade, crenças muito antigas, tipificadas logo nos menires pré-históricos, enormes pedras trabalhadas fincadas no solo, algumas com símbolos (incluindo o do sol) gravados. Para não falar do seu falicismo, do falo que é o órgão mais estranho do corpo humano, incontrolável, e, quando intumescido, portador da vida, ou, pelo menos, símbolo disso.

De facto, uma base essencial de toda a arquitetura é a coluna, que dizem que provém do menir. Elementarmente, espeta-se uma coisa altaneira, imponente, no chão, um marco visível que possa durar ali, nem que seja um grande poste, e tem-se logo assim um espaço artificial, em torno do qual se pode andar. Um espaço que delimita, condiciona, ritualiza o movimento, que em torno dele descreve círculos.

Um povo chega a qualquer lado e põe lá um símbolo, quanto mais alto melhor, e se puder ser uma bandeira que flutue, como a norte-americana no próprio solo lunar. Mas Lisboa, que até não se caracteriza por grandes estátuas ou monumentos públicos – veja-se o diminuto símbolo que Cutileiro concebeu para o 25 de abril, que naquele espaço não funciona bem… – também as tem, bem entendido, a de D. João I na Praça da Figueira ou a de D. José no Terreiro do Paço, até à do Marquês de Pombal, que paira lá bem alto na praça do mesmo nome.

Os antigos sumérios construíam zigurates, torres em andares para celebrarem os deuses lá no topo, e depois nunca mais os mesopotâmicos posteriores deixaram de os imitar. Contraste entre subir, símbolo de honra, e ser apeado, símbolo do cair em desgraça. Por isso se diz daquele que não tem imaginação, “falta-lhe o golpe de asa”, por isso os apóstolos, unidos pelo Espírito Santo – que é o que verdadeiramente ressuscita e cimenta a comunidade dos fiéis, e vem sob a forma de uma pomba que desce do céu – são figurados no Pentecostes com uma pequena chama que levita sobre a cabeça de cada um: uma imagem que sempre me impressionou.

Levitar, voar, olhar para cima e desprender-se do chão, sem cair ingloriamente como Ícaro, mas podendo cegar com a fulguração da luz resplandecente para assim ver melhor, mais profundamente, é esse o fascínio de todos os momentos em que o ser humano se ultrapassa a si mesmo, na arte, no amor, no êxtase da criação, até, de um texto modesto como este… em que o seu autor, qual aviador no cockpit de piloto, agarra bem na manivela do texto, e põe o que é já movimento, corpo de palavras, em impulso de subida, de take off. É esse impulso, esse frisson ascensional, que é já um avião, metafórico, que ninguém segura, e que parte para um aeroporto longínquo, onde o fantástico está em movimento de despontar.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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