Crónica

Ana Ribeiro Nel

Andar na rua na zona central de uma grande cidade, e de Lisboa em particular, é uma experiência que, muitas vezes, remete para o mais íntimo de cada um. Paradoxalmente e apesar de ser a mais pública das vivências. Nela intuímos afinal um reflexo do que somos. A leitora Ana Ribeiro Nel sabe bem disso e devolve-nos tal percepção em forma de uma crónica com muito de pessoal, mas também de universal. Caminhar é preciso, pois então.

Deixei o carro e desci à Baixa a pé, coisa que não fazia há algum tempo. O sol faz um rendado de sombras nas calçadas, onde pessoas sentadas nos bancos de jardim olham a avenida como se admirassem o mar. Uma corrente de motores, é certo. Alguns bancos de jardim têm aglomerados de cartões por baixo. O elevador da Glória e, na sua ausência, dezenas de turistas equipados e que aguardam vez em fila. Nos Restauradores, um vendedor de castanhas assentou a banca à porta de uma loja de roupa interior, deixa o seu tapete de fumo voar para a montra de manequins, lycra e cetim.


Chego ao Rossio e há tanto para ver, procuro referências visuais de outros tempos. O fotógrafo onde tirei fotos tipo-passe e dessa vez não fiquei com os óculos embaciados. Encontro um café onde costumava ir, ainda existe mas está remodelado, uma montra gigante de pastéis de nata, a esplanada que ocupa o passeio, os transeuntes que quase cheiram a comida de quem está sentado, camarões grelhados, esparguete à bolonhesa, taças de vinho rosé, jantares às cinco da tarde.


Finjo que vejo uma montra de sapatos para observar um engraxador de sapatos. Penso: como podem estas pessoas continuar a andar como se nada se passasse? Será que não veem este engraxador e o seu cliente, de calças arregaçadas, não precisam de ir a museus, nem de estar em filas, pois que estes dois são uma instalação viva de arte.


Continuo a minha viagem. Há pequenas mercearias que tudo vendem, especial destaque para bebidas e lembranças, ímanes de galos de Barcelos e panos da loiça de Viana, bordados, abre-latas, camisolas da seleção. Vendedores ambulantes ilegais estabelecem-se na rua Augusta, vendem malas de imitação, dispostas sobre longos panos, para proteger as malas do chão e para servir o pano no momento da fuga. Há também um rapaz que vende cães de peluche a ladrar e está de mãos nos bolsos atrás da sua barulhenta matilha.


Espero que o elétrico passe na Rua da Conceição, cheio de passageiros com smartphones e certamente a fazer reels e stories. Alguns condutores de tuk-tuk aguardam clientela, um está junto à passadeira, o seu veículo decorado com fotos de miradouros e locais importantes da cidade, como se fosse um pescador à espera que o peixe morda o isco.


Na Praça do Comércio, um grupo de estudantes ouve um professor sobre a história da estátua de D. José I. Os miúdos fizeram uma montanha no chão com as suas mochilas e casacos e eu tento ouvir parte da explicação.


Sento-me nas escadas da Ribeira das Naus, um músico de rua toca Pink Floyd. Algumas pessoas estão na areia, umas têm roupa de praia. Sinto-me cansada pois pensei ter trazido o calçado adequado, mas os meus pés dão sinal da má escolha. Antes de descer para o alívio do metro, vejo que o músico que tocava Pink Floyd fez uma pausa. Deixou a guitarra pousada na sua cadeira, sentou-se no muro com os pés para o rio e ao seu lado poisou uma gaivota.

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