Crónica

Vítor Oliveira Jorge

Deambulações de um futuro arqueólogo pela cidade de Lisboa

9 de Setembro, 2022

Mais um precioso exercício de memória pela mão do leitor Vítor Oliveira Jorge. Desta vez, dando conta de como era a vida de um estudante universitário, em Lisboa, na viragem da década de 60 para a de 70. E dos percursos físicos e afectivos que tal vida acarretava. Reminiscências de caminhadas pela cidade, mas também de outras vivências. Outra forma de estabelecer um mapa emocional da capital de há meio-século.

Aqui vai mais uma “crónica” que obviamente não tem como objetivo falar de mim, mas sim, através da minha experiência, dar testemunho pessoal de uma época em que ser jovem, vindo de família modesta, mas tendo ambições, não era nada fácil. E sê-lo-á ainda hoje? Por certo que não.

Em 1965-66, com 17 anos, entrei na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) para estudar História. Ao subir os seus degraus, esperava muito daquela nova etapa da minha vida: numa época ingrata, antidemocrática e com uma guerra colonial em curso, tudo eu queria fazer para obter boas notas e assim procurar que se me entreabrisse a possibilidade, mais que improvável então, de ser convidado para assistente universitário.

Não apenas era essa a única carreira que realmente a todo o custo queria abraçar (a de professor do ensino superior, já com uma vocação clara para a arqueologia pré-histórica), como também ela me permitiria, após a licenciatura, conseguir mais cinco anos de adiamento da incorporação militar…e, portanto, ampliar as possibilidades de que o regime entretanto acabasse, e com ele a temida e odiada guerra, como felizmente viria, de facto, a acontecer com o 25 de abril de 1974.

Tive na FLUL alguns bons professores, com destaque para Jorge de Macedo e Orlando Ribeiro, de quem, para meu proveito e honra, me tornei amigo: mas isso fica para outra oportunidade.

Era então uma peregrinação diária a pé, a partir da casa dos meus pais em Alvalade, pela Avenida da Igreja fora, e depois, atravessando o jardim do Campo Grande, na altura bem mais aprazível que agora, subir a alameda da Universidade até à Faculdade. Ainda não havia ali a Torre do Tombo, instalada muito mais tarde no local que chegou a estar pensado para se colocar o Museu Nacional de Arqueologia, que permanece nos Jerónimos, em Belém.

Ao regressar das aulas, normalmente caminhando, quase sempre sozinho, pela alameda abaixo – naquele tempo, a relação entre rapazes e raparigas não era nada facilitada… a maior parte dos(as) colegas era constituída por raparigas, muito controladas nos seus horários de sair e de chegar a casa (incluindo a minha primeira namorada), e a maior parte dos meus muitos bons amigos estavam noutros cursos, e desfasados de mim nos seus horários -, meditava preocupado no meu (mais que) incerto futuro.

Mas havia, é claro, bons momentos, três livrarias logo ao chegar mesmo ao Campo Grande, ali perto do Colégio Moderno e da casa que hoje me recorda sempre o Mário Soares, livrarias essas onde eu me perdia, deliciado, embora só de vez em quando conseguisse ter dinheiro para comprar um livro, e dos mais baratos. Por exemplo, da velha coleção “Que Sais-je?”. Na altura, o francês dominava os nossos estudos.

Mas a Avenida da Igreja, o Largo da Igreja, onde havia a pastelaria Biarritz, a Avenida de Roma, com os seus vários cafés/pastelarias/restaurantes, o Sul-América, o Vá-vá, entre outros, eram todos locais de tertúlias, encontros e brincadeiras (conversas leves e com muito riso à mistura) frequentes: tenho a sorte de ter pertencido a uma geração fantástica. Aprendi imenso com os meus amigos. Foi a minha universidade paralela.

O que mais me foi afastando fisicamente deles e desses convívios é que eu era, desse núcleo, o único de arqueologia. E na altura, antes do 25 de abril, o curso compunha-se de cinco anos letivos e mais uma tese de licenciatura – equivalente ao atual mestrado, para mais, em exigência e volume, e não para menos…E, de facto, esta tinha de ser, para impressionar o júri, obra de tomo. Nomeadamente para quem, como eu, precisava de ter boas classificações. Assim, quando em 1969 cheguei ao terceiro ano, decidi dividi-lo em dois, para começar a trabalhar na tese. Tanto mais que tinha abraçado um campo até então nunca tratado a este nível na Faculdade de Letras, o do período Paleolítico, o mais antigo da história da humanidade, nada fácil pelo que envolvia de conhecimentos interdisciplinares, incluindo geologia ou paleontologia humana.

Pelo que, além das minhas regulares deslocações a Campo de Ourique, a casa do meu orientador informal Eduardo Serrão, tinha de ir frequentemente à Rua da Academia das Ciências, passado o Largo do Rato e a Rua da Escola Politécnica, para consultar o Doutor Georges Zbyszewski, russo naturalizado francês que trabalhava nos Serviços Geológicos de Portugal (Museu do Instituto Geológico e Mineiro), e que era a única pessoa que em Portugal me podia ajudar a distinguir os calhaus talhados pelo ser humano, para fabricar os seus mais toscos instrumentos, dos que eram mero produto aleatório de acidentes naturais.

Essa aprendizagem empírica levou-me anos. De princípio, ia carregado de malas, cheias de pedras pesadas por ali fora. E o Zby, como era conhecido pelos amigos, deitava-mas quase todas para o lixo…Não tinham talhe humano. Até que, por fim, não só não as deitava fora, mas me elogiava as recolhas de superfície que fazia, e ainda me deu a conhecer o célebre Abade Jean Roche – pesquisador do CNRS que ali se deslocava, e que percebia muito de materiais líticos da última fase do Paleolítico e da seguinte, o Mesolítico –, para este me ajudar a classificar as peças mais recentes que íamos (normalmente em equipa) recolhendo pelos campos dos arredores de Lisboa.

Mal eu sabia a importância que o Roche viria a ter na minha vida (foi meu coorientador de doutoramento, quando eu já ensinava no Porto, depois do 25 de abril, e tornámo-nos amigos muito próximos nas nossas diferenças… ele padre, eu descrente) e, através de mim, de dezenas de aprendizes de arqueólogos. Na altura, em Portugal só havia amadores e jovens interessados, e em formação, como eu.

As minhas deambulações para a tese de licenciatura trouxeram-me a várias regiões para norte e sul de Lisboa. Mas na cidade de Lisboa mesmo levaram-me sobretudo quotidianamente para Belém, para o Museu dos Jerónimos, onde prepararei a tese nos seus dois volumes, o segundo de ilustrações, e totalmente a escrevi em 1972. Aí em Belém – que bem conhecia desde miúdo, porque o meu pai tinha sido aluno da Casa Pia e havia a tradicional deslocação ao Museu (que se chamava então Museu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcelos, que o fundou) e à imperdível casa dos pastéis de Belém – trabalhei como um louco, numa sala sem janelas para a rua, e, nos intervalos breves, namorei naqueles jardins e sobretudo nos claustros, que eram então de acesso gratuito e não estavam ainda invadidos por multidões de turistas.

Conjunto dos membros do Grupo para o Estudo do Paleolítico Português (GEPP) – Foto de Rui Homem, Fevereiro de 1972

No Museu, criámos o informal Grupo para o Estudo do Paleolítico Português (GEPP), o descobridor do complexo de arte rupestre do vale do Tejo em 1971 – com as suas cerca de 40.000 gravuras, hoje em grande parte sob as águas da barragem de Fratel -, e uma dinâmica de trabalho em equipa que foi extremamente estimulante, e à qual pertenceram numerosos futuros arqueólogos “célebres”, incluindo uma espanhola, a colega Maria Angeles Querol, da Universidade Complutense de Madrid.

Assim, Belém, Campo de Ourique, Rua da Escola Politécnica, Faculdade de Letras (onde eu tinha uma amiga freira que prontamente me permitia aceder aos seus apontamentos das aulas das cadeiras a que passei a faltar, concentrado no hercúleo trabalho que acometi…) e Alvalade eram os polos das minhas deslocações em Lisboa. Aos quais devo acrescentar um, o da Fundação Gulbenkian, cujo Serviço de Ciência, pela mão do seu diretor, Egídio Namorado, me atribuiu em 1969 uma bolsa, para poder assistir em Marselha ao primeiro colóquio internacional realizado no mundo sobre computadores aplicados à arqueologia.

Esse colóquio foi decisivo para mim, como também um outro que organizei no Instituto Superior Técnico com dois grandes amigos (José António Meireles e Luís Moniz Pereira, este hoje uma figura cimeira da IA a nível mundial), em abril-maio de 1970, sobre Epistemologia das Ciências do Homem, o primeiro também que se efetuou em Portugal sobre tal tema, publicado depois pela Presença em duas edições.

Assim consegui, ao acabar a minha licenciatura em 1972, ser convidado para assistente da Universidade de Luanda, para cujo calor lá segui de avião, a partir de uma nebulosa e fria manhã de Lisboa. Uma nova deambulação ia começar…

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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