Opinião

Vitor Oliveira Jorge

A notável família Bordalo Pinheiro: três gerações de grandes artistas de Lisboa

19 de Abril, 2023

Manuel Bordalo Pinheiro, seus filhos Columbano Bordalo Pinheiro, Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Augusta Bordalo Pinheiro, e ainda o seu neto, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (filho de Rafael) são, incontestavelmente, cada um a seu modo, figuras incontornáveis da nossa Lisboa… das suas tradições artísticas… e do nosso país como um todo, é claro. 

Cada uma delas tem, na sua vida e obra, uma tal riqueza e diversidade de facetas, que eu, aqui, em rápida “crónica”, mais não posso apresentar do que um primeiríssimo esboço, a grandes pinceladas e forçosamente muito imperfeito, de tão notável genealogia! Cada uma destas figuras, assim genericamente “cartografadas”, merece, ou mesmo exige, muitos livros!… e muitos até já existem, claro. Mas terei de voltar a este assunto tão vasto!

Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880) foi, em vários sentidos, um prolífico pintor (grande admirador da tradição flamenga), gravador (ressuscitou a gravura em madeira), e escultor romântico, amigo e colaborador de Alexandre Herculano, nomeadamente nas ilustrações do bem conhecido jornal lisboeta O Panorama (1837-1868), expressão do romantismo português. A sua atividade foi de facto imensa: por exemplo, também colaborou com os teatros de S. Carlos e de D. Maria, através do desenho de figurinos e até da tradução de peças que foram encenadas e apreciadas pelo público. Como pintor, um dos temas que tratou foi o de história nacional, muito característico desta fase artística.

Na apresentação que dele se faz no portal do Parlamento refere-se, em útil síntese, entre outros, estes dados essenciais sobre ele: “Manuel Maria Bordalo Pinheiro (…) Como chefe de repartição da Câmara dos Pares, dedicou apenas os tempos livres à arte, tendo-se estreado na 1ª Exposição Trienal da Academia Real de Belas-Artes.  Em 1849 iniciou, ao serviço do Duque de Palmela, um itinerário de viagens artísticas com intuito de copiar as obras de grandes pintores espanhóis, franceses, holandeses e flamengos, terminando com a participação na Exposição Internacional de Londres, em 1851. Essencialmente inspirado nos pormenores e miniaturas flamengos, desenvolveu um estilo satírico social realista muito apreciado na época que viria, por sua vez, a influenciar a obra dos seus filhos Columbano e Rafael.”

Segundo José́-Augusto França, citado por Regina Anacleto (Historia da Arte em Portugal, Vol. 10, Lisboa, Publicações Alfa,1986, p.145) ele personificaria o “artista amador, de orçamento garantido ao fim do mês, trabalhando por devoção e não se confinando a um só género». E foi assim que germinou, no ambiente da sua casa e da sua família, seguindo o seu exemplo, o gosto da arte, que se prolongou no tempo. Ao fim do dia era hábito ele rodear-se dos seus filhos, em volta da mesa, iniciando-os na arte do desenho: assim, foi grande por si, e ainda por ter sido o fomentador de um autêntico “ninho de artistas”, de entre os mais importantes de Lisboa, de Portugal e, mesmo, de toda a sua época, sempre surpreendentes. Que família fabulosa!

A Fábrica de Faianças das Caldas foi fundada a 30 de Junho de 1884, ficando Raphael Bordallo Pinheiro responsável pelos aspetos técnico-artísticos e seu irmão Feliciano Bordallo Pinheiro pelos aspetos organizativos (imagem e legenda retirada do site da Bordallo Pinheiro — bordallopinheiro.com)

Com Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) acercamo-nos de um “gigante”, de um “génio” da pintura, nem sempre compreendido no seu tempo, sobretudo nos inícios da sua carreira… são notórias as várias tentativas inglórias que fez para obter uma bolsa no estrangeiro (fator fundamental para qualquer artista, então como agora, nomeadamente provindo da periferia europeia), até que finalmente esteve em Paris (1881-83) em viagem patrocinada pelo rei D. Fernando.

Notável retratista, é considerado por muitos o maior pintor português do século XIX, e alguém já afirmou que foi ele que trouxe a modernidade para a pintura portuguesa. Entre as diversas obras fundamentais escritas sobre ele, está por exemplo esta tese de mestrado de Margarida Elias, “A Recepção Crítica de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1997)”, de 2002 (revista em 2010) e a tese de doutoramento da mesma autora (Columbano no Seu Tempo”, 2011 são trabalhos exemplares.

Columbano, pelo gosto dos fundos escuros de onde ressaltam, em contraste, os rostos dos seus retratados (é célebre o de Antero de Quental) – já que foi no retrato que, entre outros, particularmente se notabilizou – revela não só uma influência da pintura barroca, do seu “tenebrismo”, como também ainda uma filiação romântica na arte que colheu de seu pai, muito embora com um programa muito mais moderno, com os motivos dados por vezes a grandes pinceladas, onde não há tanto um contorno nítido das figuras, como uma procura de “dar” o ambiente íntimo e a psicologia do/a retratado/a.

É uma arte que até certo ponto se contrapõe ao modo mais luminoso, por vezes solar, desse outro grande artista que foi Malhoa, seu contemporâneo, e também, como ele, elemento do chamado “Grupo do Leão” (que se reunia na cervejaria de Lisboa de que tirou o nome). Columbano, ao contrário dos naturalistas – que em Paris desembocaram no impressionismo – nunca procurou situar a sua pintura em ambientes de ar livre, mas antes em grandes figuras, suas contemporâneas, ou em temas camonianos, que muito prezava. Essa a sua profunda originalidade, desde os primeiros quadros. De referir, ainda, que Columbano foi diretor, dedicado, do Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Por sua vez, contrastando com esse carácter mais fechado e recatado do irmão, Rafael Bordalo Pinheiro (1848-1905), extrovertido, amante da “boa vida”, adorando rir e fazer rir, criador da célebre figura do Zé Povinho, para ele um símbolo do povo português, foi também um excecional, frenético artista, multifacetado, bem conhecido de um mais amplo público, nacional e internacional, pela sua atividade incansável de caricaturista, artista gráfico, ilustrador, mas também devido à famosa “louça das Caldas”, pois foi na faiança que uma faceta importante do seu génio grandemente se exprimiu, inaugurando uma tradição que vem até hoje.

Na verdade, ele assegurou a direção artística da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha – uma empresa modelar e inovadora, do tipo  “sociedade anónima”, criada em 1884, com sede e loja em Lisboa, e instalações fabris naquela cidade do distrito de Leiria – enquanto que a direção técnica da mesma estava a cargo de um outro irmão de Rafael, Feliciano Bordalo Pinheiro. 

Rafael Bordalo Pinheiro

Rafael viveu numa época de profunda transformação social, coetânea de uma monarquia constitucional (a da fase da Regeneração) já em declínio (porque, com exceção de algumas ações isoladas, vivia imersa em total “bolha”, e de uma minoria burguesa urbana, contraposta a um Portugal em que a maioria da população existia miseravelmente, no seu ruralismo de subsistência, largamente dominado pela Igreja.

Foi uma fase histórica de transição, em que se começou a assistir à mecanização e aceleração da vida, de que o comboio é o símbolo, mas também a eletricidade, novas formas de arquitetura concretizadas na arte leve do ferro e do vidro (por oposição à estética neoclássica), à tipografia onde também as máquinas se introduziram e modificaram práticas e estéticas, às obras do Fontismo, etc., etc.

Rafael (como também depois o seu filho e continuador Manuel Gustavo) produziu uma série enorme de jornais, sobretudo ilustrados – a imagem ganhando prevalência sobre o texto e preludiando a “explosão” da banda desenhada – que tinham grande impacto público, e onde ele exercia uma crítica permanente, sarcástica, mas no fundo bem humorada, das contradições dessa minoria e das suas pequenas “histórias”, a que o Zé Povinho ia assistindo, impotente, entre a indiferença e a curiosidade de quem contempla o ridículo e absurdo jogo dos poderes, sabendo não ter meios para modificar nada.

A obra de Rafael é tão diversificada e rica, que desafia qualquer síntese, bastando, para uma primeira ideia, visitar o Museu a ele dedicado e ler o respetivo “Guia” ali publicado em 2005, e ainda disponível: é espantosa a sua atividade em todos os aspetos!

Estamos, com certeza, perante um dos mais geniais criadores do seu tempo, à escala mundial. Apesar de ter trabalhado no Brasil  e, mais perto da capital, nas Caldas da Rainha, por causa da cerâmica, Rafael teve o seu “palco” principal em Lisboa, aliás como muitos dos seus contemporâneos e outros posteriores, uma Lisboa provinciana onde as elites intelectuais se arrastavam entre os teatros, os cafés-restaurantes como o Martinho da Arcada, ou as casas de uns e de outros em que se geravam tertúlias e se comentavam novidades, muitas vezes sob esse clima nostálgico, de algum tédio, de quem se sabe longe do Centro, como Paris, mas também se regala afinal por poder ir ao campo respirar ar puro, paradoxo tão bem dado por Eça em “A Cidade e as Serras”. Enfim, os dois mitos do burguês citadino, que vêm até hoje…

A título de curiosidade, refira-se ainda que Columbano teve algumas colaborações esporádicas com a Fábrica do irmão, nomeadamente executando uma pintura alegórica à Cerâmica, destinada ao depósito da mesma, nas Caldas da Rainha. 

Filha mais velha do casal Manuel B. Pinheiro e Augusta Prostes, Maria Augusta Bordalo Pinheiro (1841-1915), que se manteve sempre solteira, distinguiu-se, em Portugal e no estrangeiro, nos domínios das artes aplicadas e das artes decorativas, com particular acento na arte das rendas, de que foi professora em Peniche, não deixando por isso de também se manifestar na pintura, nomeadamente de temas naturalistas; o que não a impediu de colaborar com o irmão Rafael, com quem manteve sempre uma relação muito próxima. É de destacar o grande impulso que deu à requalificação das rendas de bilros, particularmente na já citada Peniche, cuja Escola dirigiu, tendo as suas obras, de invulgar qualidade, e integrando os motivos naturalistas de sua predileção, obtido grande reconhecimento internacional.

O Museu Bordalo Pinheiro fica localizado no Campo Grande, em Lisboa

Por seu turno, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (1867-1920) foi o continuador inspirado da obra bordaliana, em diversos aspetos, mas não sem algumas atribulações. Desportista, frequentador da sociedade burguesa de Cascais e Estoril, colaborou com o pai como ceramista, caricaturista, desenhador, ilustrador em inúmeras revistas, foi professor de desenho, e chegou a receber honras de Cavaleiro por parte da coroa espanhola. Mas, entretanto, a magnífica empresa caldense acima referida, que começara a laborar em 1884/1885, e onde se fizeram peças espantosas de inovação e criatividade, entrou depois em dificuldades financeiras, acabando por chegar à falência técnica – no âmbito da conhecida crise do sistema liberal oligárquico de 1890, com a respetiva componente financeira, a qual levou à bancarrota parcial do Estado de 1891-92, e finalmente viria a redundar na própria queda da monarquia constitucional, totalmente incapaz de compreender e de controlar o que se passava…

Na prática, a fábrica reduziu então consideravelmente as suas áreas de laboração e o número de operários, e ficou restringida a uma pequena oficina de louça decorativa dirigida por Rafael Bordalo Pinheiro, tendo, depois do falecimento deste (quando finalmente foi executada a falência), sido vendida em hasta pública. Não conseguindo então adquiri-la, Manuel Gustavo fundou posteriormente com a mãe, nas Caldas, em terrenos que tinham sido registados em nome de Rafael, uma pequena oficina, que designou “Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Limitada”. E foi isso que lhe permitiu dar continuidade, acrescentado novos modelos, à louça decorativa bordaliana. Após o falecimento de Manuel Gustavo, e até hoje, a unidade fabril passou por diversas vicissitudes, que não são objetivo desta crónica, bastando referir aqui que, como é público e bem sabido,  apesar de tudo essa tradição se tem mantido e mesmo expandido, com êxito, até ao presente. E ainda bem, porque é um património importantíssimo!

Através dessa repercussão social – hoje será talvez rara a casa “burguesa”, provida de um certo número de meios e de gosto, que não possua ao menos uma peça desta proveniência – , por um lado, e do renovado Museu Rafael Bordalo Pinheiro, no Campo Grande, em Lisboa, existem sobre ele e a figura a que está dedicado diversos vídeos no YouTube; foi fundado em 1916 graças à generosa ação do poeta e colecionador Artur  Ernesto Magalhães), por outro, a memória de Rafael Bordalo Pinheiro mantém-se bem viva nos nossos dias. 

Já agora, e por curiosidade, acrescente-se que uma outra filha de Manuel Bordalo Pinheiro, Maria Amélia Bordalo Pinheiro, se casou com Henrique Lopes de Mendonça, homem multifacetado (e retratado aliás por Columbano!) nas suas atividades, entre elas a de prolífico escritor, e autor da letra do hino nacional adotado pela República, com música de Alfredo Keil, A Portuguesa.

O jardim fronteiro ao Liceu Camões, em Lisboa, perpetua o seu nome. E um dos filhos do casal, o ceramista e caricaturista Vasco Lopes de Mendonça, sobrinho de Rafael, concebeu diversas peças de cerâmica para a “Faianças Artísticas”, nos anos 1940 e 1950, sendo dele nomeadamente alguns dos “bonecos” popularizados nesse anos, entre eles o também famoso “Churchill”. As voltas que o mundo dá!

A concluir, volto a aconselhar vivamente o(a) leitor(a) a visitar o Museu Bordalo Pinheiro e, pelo menos, a ler o já referido “Guia” do mesmo, editado em outubro de 2005, ali à venda (tem textos muito interessantes); e cumpre-me agradecer ao meu amigo, o historiador João B. Serra, algumas dicas que me deu sobre detalhes de tão vasto tema como este a que aqui me abalancei.

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