Vila Aspera: a última das Quintas do Vale do Areeiro

Autor

Rui Martins
2 de Maio, 2023

As vilas operárias já foram (ainda são?) uma das imagens de marca de Lisboa. Rui Martins, activista e dirigente associativo, fundador do colectivo Vizinhos do Areeiro, escreve sobre a Vila Aspera, que, apesar de muito degradada, continua a existir e subsistir naquela zona da cidade, entre a Rua Margarida de Abreu e a Avenida Gago Coutinho. Mas tudo indica que não por muito mais tempo.

Existe um plano para realizar uma construção civil, para habitações de luxo, nos terrenos da actual Vila Aspera e nas últimas habitações térreas da Rua Alves Torgo (antiga Estrada de Sacavém). A Vila pode ainda hoje ser vista entre a Rua Margarida de Abreu e a Avenida Gago Coutinho e é uma das duas Vilas Operárias que encontrei como tendo existido no Areeiro.

Com efeito, o Areeiro, no período entre 1870 e 1930 em que se registou alguma industrialização em Lisboa, era predominantemente povoado por quintas agrícolas que abasteciam a capital de gado e produtos hortícolas. Em particular toda a zona que se estendia desde o actual Bairro dos Actores, Avenida Afonso Costa, Gago Coutinho e Vale da Montanha, Casal Vistoso e Quinta das Ameias era preenchida com uma densa rede de quintas que, na década de 1970 e 1980, seriam convertidas em habitações irregulares com o nomes das quintas do Vale do Areeiro que hoje em dia estão preservadas na memória colectiva através dos nomes de algumas ruas da freguesia.

Deverão ter existido em Lisboa mais de um milhar de vilas operárias e um levantamento realizado em 2015 e apresentado no X Congresso da Geografia Portuguesa, listava ainda – nessa data – 405 vilas operárias que sobreviviam na cidade. Entre estas, contavam-se apenas uma no Areeiro: a Vila Aspera e, há algumas décadas, a Vila das Varandas.

Quer a Vila Aspera quer a Vila das Varandas nasceram nos terrenos destas quintas que começaram a surgir nesta zona na época do reinado de Dom João I compondo um “anel verde” que rodeava e abastecia Lisboa e que eram especialmente numerosas nas zonas de melhores solos e com mais amplos fornecimentos de água, conforme sucedia nesta zona do Areeiro.

Imagens: Rui Martins

Embora quase nada se saiba sobre a Vila das Varandas, excepto que dava para a Barão de Sabrosa, sobre a Vila Aspera, contudo, já se sabe um pouco mais: a origem da vila recua provavelmente ao século XVIII, o primeiro grande período de povoamento desta zona de Lisboa. São também desta época a Quinta do Pina (que, mais tarde, daria nome à extinta freguesia do “Alto do Pina”), a Quinta do Mendonça, a Quinta do Monte Coxo (que existia em 1989 havendo então notícia de um incêndio, que era fronteira à Rua Alberto Pimentel e em cujos terrenos seria construído o Bairro Gebalis do Areeiro), a Quinta do Garrido (que daria origem à “Rua do Garrido”), a Quinta dos Passarinhos que tinha casario na zona do Alto de São João e onde existia o “Retiro Manuel dos Passarinhos”, a Quinta da Holandesa, que foi fotografada por Arnaldo Madureira, já em ruínas e cuja população – de maioria hindu – foi realojada em finais dos anos de 1990 no Bairro do Armador, em Marvila e a remanescente no Bairro da Gebalis junto ao Portugal Novo, assim como as Quintas da Noiva, do Pilão e do Pombeiro e ou de N. Sra. da Conceição em cuja casa senhorial norte, recuperada, funciona hoje a Casa de Acolhimento Para Crianças Refugiadas da SCML. Esta quinta teria pertencido a um lavrador de nome Joaquim Augusto Pombeiro, mantendo-se assim a tradição de designar as mesmas com o nome do seu proprietário original, que a terá construído no século XVIII. As suas ruínas, designadamente com a zona dos jogos de água, ainda hoje podem ser vistas no Parque Urbano do Vale da Montanha.

Em praticamente todas estas quintas, durante as décadas de 1980 e 1990 surgiram vários bairros de barracas que tomaram os seus nomes. A Quinta dos Pacatos (ou Vila), onde está hoje a Rua Abade Faria, seria usada para construir as habitações sociais do Bairro Carmona (hoje Rua Capitão Henrique Galvão). Na Azinhaga Fonte do Louro residiam ainda em finais de 2020 cinco famílias numa última construção fechada sobre si mesma muito no formato de uma “vila” ou “pátio” e que foi finalmente demolida (após um complexo processo de negociação com o senhorio) em meados de 2021.

No seguimento destas quintas encontramos ainda as ruínas da Quinta das Ameias ou do Casal Vistoso (onde nasceu a urbanização de mesmo nome), que no século XVII pertencia aos Abreus e Castros e já mereceu uma série de artigos: https://amensagem.pt/tag/quinta-das-ameias/

Em finais de 1990 e começos de 2000 começam os realojamentos das barracas destas quintas agrupadas sobre a designação de “Vale do Areeiro” sendo os moradores de maioria indiana (especialmente de Diu ou, melhor, de Fudam no Oeste deste território da Índia Portuguesa) que chegaram a Portugal, sobretudo, em finais da década de 1970. Em 1991 viviam aqui cerca de 1400 pessoas, quase todas em condições muito precárias.

Não longe destas quintas e muito perto da antiga Estrada de Sacavém (cujos últimos troços, hoje abandonados e cobertos de vegetação, ainda se observam junto à Azinhaga da Fonte do Louro) nasceu a Vila Aspera, nos terrenos de uma Quinta provavelmente de mesmo nome “Aspera” e situada perto da Rua Alves Torgo (troço junto à Avenida Gago Coutinho no Areeiro e que agora está marcado para demolição). Esta quinta, seguindo a regra das demais, seria propriedade de uma família Aspera, cujo nome está associado à pequena nobreza italiana de começos do século XVII da zona de Bergamo e que surge mais tarde perto de Fuente Arcada, na região de Caceres (Estremadura) e perto da nossa Serra da Malcata.

Hoje em dia a Vila Aspera está dividida em duas metades, separadas por um caminho coberto a calçada rústica e que pertencia a dois irmãos espanhóis, descendentes do antigo proprietário: sendo cada um deles o proprietário de cada um dos grupos de habitações que ainda hoje aqui podem ser observadas (em grau de ruína diverso) e cuja periferia é usada como casa de banho pública pela comunidade nómada que habita a algumas centenas de metros na Rua Margarida de Abreu.

Antes de 1959 a zona era abrangida pela extinta freguesia de Beato António a partir do nome do Convento de São Bento de Xabregas ou “Convento do Beato António”. Neste ano a zona foi integrada na freguesia do Alto do Pina e, em 2012, na nova freguesia agregada do Areeiro. Em 1978 a Câmara Municipal de Lisboa realizava um levantamento aerofotográfico da zona da Vila constando numa planta do Instituto Geográfico e Cadastral de 1951. Em 2005 faleceu perto da Quinta Aspera um cidadão cabo-verdiano, na zona da Quinta das Holandesas tendo então ficado várias pessoas sem alojamento. A barraca que ardeu estaria “paredes meias” com a Vila Aspera cujos moradores se queixavam do “ruído” e perturbação constante nessa zona. Em 2008 veio para aqui a primeira família moldava que, nos anos seguintes, foi seguida por outras. Em 2013 quase todas as casas eram habitadas ou por reformadas portuguesas, que viviam sozinhas depois do falecimento dos seus maridos ou já por famílias moldavas mas a degradação da Vila era já notória em 2016 tendo a Câmara Municipal declarado alguns edifícios como “devolutos” e determinado a necessidade de os dois proprietários realizarem obras de conservação.

A última habitante portuguesa desta última vila do Areeiro deixou a sua casa em 2017 para um lar de terceira idade e a outra (Rosa Ramos) havia falecido pouco antes. Em 2018 a maioria das casas da Vila já estavam vazias.

O último contrato de arrendamento na Vila expirou e não foi renovado. Noutra habitação funciona uma igreja evangélica que é usada como habitação, mas onde há muito tempo já não é visto ninguém (desde que começou a pandemia). As uvas que hoje podemos ver entre as casas são de castas moldavas e foram plantadas por emigrantes desse país do Leste europeu sendo que a maioria das famílias moldavas trabalhava no sector da construção civil (os homens) e das limpezas domésticas (as mulheres). Alguns destes imigrantes ainda passam aqui ocasionalmente, sobretudo para cuidar da vinha, e verificar se alguém ocupou as casas (recentemente houve algumas tentativas de ocupação por toxicodependentes). Apenas a igreja evangélica com origem em Minas Gerais do “Ministério Filhos da Promessa” tem aparência de estar a funcionar (embora não abra as portas há muito). Esta igreja funcionava no mesmo edifício do antigo restaurante Molha Pão (2009) precisamente onde começa a localização “oficial” da Vila Aspera, o 346 da Rua Alves Torgo (antiga Estrada de Sacavém) que é a localização correcta da vila e não a “Rua Humberto da Cruz” conforme é indicado no Google Maps.

É para aqui, e para a zona fronteira da Alves Torgo que se diz que será o investimento do “The Edge Group” noticiado em Agosto de 2018 que refere “dois prédios na zona de Alvalade e Areeiro onde vão nascer apartamentos para habitação” num investimento no Areeiro que rondará os 35 milhões de euros em 300 casas na forma de “pequenos apartamentos destinados ao arrendamento de média duração, de um ou dois anos” e com serviços complementares como limpeza (?) ou ginásio. As obras deveriam começar em 2019, assim que estiver concluído o licenciamento (informação de agosto de 2018), mas como tantas iniciativas imobiliárias em Lisboa tudo foi adiado pela pandemia e, mais recentemente, pela resistência dos últimos inquilinos em abandonarem o local e do arrendatário actual, que encetou obras de recuperação da Vila — pelo que toda este projecto parece alterado (ou, pelo menos, adiado sendo que as casas térras da Alves Torgo continuam devolutas). De uma forma ou de outra, o fim da última Vila Operária do Areeiro está decidido: e não é um futuro de continuidade…

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