“Marquês de Pombal” e a cidade de Lisboa, de Louis-Michel van Loo (1707-1771) e Claude-Joseph Vernet (1714-1789), Museu da Cidade, Lisboa
Já nos habituou a dele esperar nada menos que textos com ambição e profundidade, e elegantemente escritos, sobre os grande temas definidores da identidade da nossa cidade. Mas, desta vez, o leitor Vítor Oliveira Jorge atira-se ao “tema maior”, discorrendo sobre o terramoto de 1755 e suas consequências sobre o que viria a ser Lisboa a partir daí. E, claro, sobre o papel único que Sebastião Carvalho e Melo desempenharia no escrever desse futuro. Um ensaio ambicioso, à escala do terramoto e da vontade reformista do marquês.
Tento aproximar-me do mais difícil e, ao mesmo tempo, do mais fascinante: do grande tremor de terra de 1 de novembro de 1755 e da figura do Marquês de Pombal. É preciso redobrada precaução. E prevenir: esta é apenas uma primeiríssima, modesta, timorata visita ao tema. Um vídeo da RTP (2005) da autoria da Maria Júlia Fernandes dará uma primeira ideia: https://ensina.rtp.pt/artigo/lisboa_1755/.
De facto, como qualquer pessoa sabe, ocorreu em Lisboa naquele dia o que podemos designar um teras, um fenómeno tremendo, horrível, monstruoso, algo que transcende o entendimento humano mais imediato, algo de surpreendente, prodigioso, o que quer dizer um evento, de causas desconhecidas, totalmente inesperado, que corta de súbito com a realidade habitual das coisas e que instala um antes e um depois.
A Lisboa ainda muito “medieval” iria em parte acabar, em poucos minutos de terramoto, e logo depois de avassalador tsunami, mas também de invasivos, demorados e persistentes incêndios…e dos seus escombros começaria a sair, nos anos seguintes, uma Lisboa moderna e o seu grande impulsionador: Sebastião José de Carvalho e Melo. Prodigioso fenómeno que retirou aos seres humanos, literalmente, o chão debaixo dos pés, produzindo morte, dor, perdas patrimoniais imensas, espanto e horror, estupefação…é difícil encontrar palavras para descrever o que se passa quando o real nos toca.
Mas também, depois, a prodigiosa oportunidade para um homem de ação, vindo de uma pequena nobreza, ascender definitivamente a grande estadista e, em tempo de um rei fraco, poder comandar a ressurreição de Lisboa. Eis o tema e o mote: a ferida imensa e a sua sutura! A cidade e o reino abalados, e a coragem e empenho imenso no seu restauro.
Sobre tal tema, desdobrado em outros mil, já se escreveu tanto, tanto, que até o escriba se senta, timorato, à espera de inspiração, ou, se se quiser, este visitante que sou se demora no hall do texto, criando fôlego para entrar.
Irá ele de novo descrever o tremendo terramoto que Lisboa sofreu em 1755, e o que isso teve de repercussão no país e em boa parte do mundo – chegou a sentir-se do outro lado do Atlântico – tanto do ponto de vista material, das destruições de vidas e de bens, de mais uma perda do imenso património de Portugal, como do sobressalto das consciências relativamente a uma natureza que, de súbito, acordava estrondosamente, mostrando ao ser humano a sua pequenez?
E esse acordar, essa catástrofe – volta a pergunta – era um fenómeno natural, como hoje a maior parte de nós pensaria, ou um castigo divino? Que consequências teve em toda a Europa, e em particular no pensamento de tantos intelectuais? Por que razão o tremor de terra de Lisboa se tornou por excelência no próprio paradigma da catástrofe, lembrando outras, é certo, mas tendo um relevo, na memória e no pensamento, que outras de comparável calibre não tiveram?
Lisboa, na altura uma das cidades mais importantes do continente (depois de Londres, Paris, Nápoles), assim em boa parte – a mais central, a mais antiga, a mais nobre – destruída, quer por um abalo de terra fortíssimo, quer pela invasão de águas pela Baixa adentro, o maremoto, que se lhe seguiu, e logo depois pelo fogo, inimigo temível, que lavrou durante vários dias, reduzindo a cinzas e escombros muito do que restava?! Isto podia deixar indiferente toda uma época em que o Antigo Regime ia agonizando, e uma nova era, a Moderna, ia emergindo?… Claro que não. O tremor de terra veio sem avisar numa Europa que se ia transformando, também ela, de forma prodigiosa. E o prodígio, o teras, independentemente da sua dinâmica mais súbita ou não (depende da escala do observador) aparece sempre sem aviso.
De facto, tem hoje o leitor interessado à sua disposição um autêntico tsunami de fontes para visitar o tema e percorrer as, ou se quiser, deslizar pelas, suas infindas artérias. E desde logo permita-me aconselhar-lhe como primeiro guia “O Pequeno Livro do Grande Terramoto”, do historiador Rui Tavares, publicado pela Tinta da China, em 2005, mas de que já houve várias edições.
Que um evento é coisa súbita, que choca e fere, e exige explicação proporcional, mas também urgente, compactada, que tente explicar o prodígio, o teras acontecido, e que permita começar o seu luto. É fascinante a forma como Tavares evoca esta tragédia e seu contexto; digna de um romancista, mas também de um filósofo, sempre com a preocupação de manter o leitor interessado no que se segue. Os grandes espíritos estão na síntese, dizia um amigo meu, e o que se passou em Lisboa naquela segunda metade do século XVIII é algo de tão multifacetado que desafia qualquer esforço e fôlego nesse sentido.
E por falar de filosofia, da grande síntese a que muitos almejam, há que referir que este tema também nos abre, a seu modo, para uma questão mais geral, o pensamento das catástrofes, sobre o qual se têm debruçado tantos filósofos contemporâneos, como Jean-Luc Nancy ou Jean-Pierre Dupuy. A catástrofe, insisto e todos o sabemos, é sempre algo de imprevisível, e que aparece como não explicável aos olhos imediatos de quem a vivencia, com ela imediatamente sofre ou nela mediatamente ressoa: é, repito, um evento.
E este foi, de facto, como toda a gente sabe, um fenómeno de espantar e de assustar qualquer ser humano, como sempre acontece quando o mundo, que ele quer domar, lhe “mostra” que se trata, afinal, de fera imprevisível e indomável: a “mãe natureza” é sobretudo – sabemo-lo hoje bem – madrasta. E quem acredita numa “natureza humana”, diga-se a propósito, faz bem em desconfiar: trata-se de um recurso retórico demasiado fácil, e muito pouco histórico.
O que é histórico, o grande evento, o estrato profundo que de súbito aflora à superfície como vulcão acordado, afetando os estratos mais superficiais do devir, abala as próprias coordenadas subjetivas de todas as pessoas, e particularmente a consciência educada das mais letradas. E ainda mais especialmente nesta segunda metade do século XVIII, tempos que antecedem e já esboçam uma nova fase da história da humanidade, a da progressiva importância do pensamento racional e científico, e a da revolução industrial, as quais irão mudar por completo a face, não só da Europa, mas, em ondas sucessivas, a de todo o mundo.
Isso, tão irreversível mudança, acontecerá sobretudo através da navegação, forma primeira de conexão à distância: a partir destes tempos, o que passa num ponto do globo tem, a mais ou menos curto ou longo prazo, repercussões em qualquer outra parte. A Terra começa a estar “globalizada”. Na sequência da catástrofe de Lisboa, sucedem-se, aliás, as cartas a tentar descrever este fenómeno aos que tiveram a sorte de estar longe dele, e as gazetas, que se publicavam em catadupa, impressas algumas numa cidade ainda fumegante, assustada, com muitos sobreviventes, incluindo a Corte, a viver em tendas espalhadas pelos pontos altos, limítrofes, então ainda campestres, da urbe.
E, nos inícios do século seguinte, depois dos franceses, com Napoleão, terem perdido o sonho e a ambição de unificar a Europa continental sob um mesmo poder, será a Inglaterra, senhora dos mares, senhora da primeira indústria, a conquistar a primazia, construindo o primeiro grande império dos tempos modernos. Uma nova era, cujas “ondas de choque” continuamos e continuaremos a sentir, ainda hoje e no futuro!… E, nelas, o grande receio de um novo tipo de catástrofe destas poder vir a ocorrer, particularmente na nossa Lisboa, tão exposta geologicamente à repetição de sismos… quando pensa nisso, o escriba estremece de susto, só de imaginar o autêntico apocalipse que seria, se voltasse a ocorrer agora!
Enterrar os mortos, cuidar dos vivos, encetar um projeto de reconstituição da cidade arrasada, tal foi, como sabemos, a gigantesca missão urgente liderada por Pombal, cuja figura controversa se ergue assim bem alto no contexto da história de Portugal, tanto no que diz respeito à missão que lhe coube e ao poder que teve, como ao tsunami de ações e de opiniões a que, como sempre acontece com todas as “grandes personagens”, deu lugar. Pombal é uma figura complexa e contraditória, como todas as pessoas, notórias ou não, quando as conhecemos mais de perto…e, particularmente, quando se trata de um ator histórico deste calibre, num país pequeno e ainda arcaico, mas homem com poder suficiente para tentar acabar com o ensino escolástico dos jesuítas, ou atacar figuras da grande nobreza que eventualmente lhe faziam sombra, como os Távoras (cf. https://ensina.rtp.pt/artigo/a-execucao-dos-tavoras/), da forma bárbara, “primitiva”, com que foram eliminados…
Seria Pombal – e seus “arquitetos” (engenheiros militares) da nova Lisboa – uma figura das Luzes, neste caso no plano ortogonal da arquitetura e conceção urbanística que irão implementar na Baixa? Não nos precipitemos… Esse é um dos temas que tem feito correr muita tinta, contribuindo para fazer dos discursos sobre esta parte de Lisboa do pós-terramoto um autêntico tsunami de vozes, chegando alguns a ligar tal plano à Maçonaria – a Baixa lisboeta, desembocando na Praça do Comércio, teria a estrutura de uma loja maçónica -, o que não parece verdadeiro, e foi desmentido a este escriba por historiador abalizado no tema.
Uma coisa é certa: a ação racional e esclarecida do Ministro Carvalho e Melo perante o acontecimento sísmico trágico e o que se impunha fazer na sua sequência, apoiado em homens como António Ribeiro Sanches, autor do higienista “Tratado da Conservação da Saúde dos Povos” (1756), sobrepôs-se, na altura, e junto da Corte, à oratória inflamada e conservadora do conhecido jesuíta Gabriel Malagrida, que pretendia fazer crer na cólera de Deus para explicar o cataclismo geológico e suas consequências. O padre italiano, que pregava a penitência à população como forma de acalmar tal ira, acabaria aliás por ter destino trágico, pena de morte às mãos da Inquisição, sendo em Portugal o último réu a sofrer tão horrível desfecho, de óbvia motivação política, o que também daria azo a reações internacionais…
O muito discutido pretenso “carácter iluminista” da Baixa pombalina – assunto que, como é bem sabido, já o nosso José-Augusto França tinha abordado, em obra célebre, desde 1965 (conheceu várias edições – “A Lisboa Pombalina e o Iluminismo”) – exige outro desenvolvimento. Um bom estímulo é o texto da professora brasileira Beatriz Bueno intitulado “Lisboa pombalina: em que medida iluminista?” (de 2005, disponível em https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=351732195002).
Teríamos de comparar as conceções de “cidade-monumento”, típicas de iluministas como Voltaire (e a propósito lembrar o poema bem conhecido consagrado ao terramoto de Lisboa: https://www.france-em-portugal.com/40-actualite-au-portugal/culture/histoire/10-voltaire-at-le-grand-seisme-de-lisbonne, mas também o seu “Cândido”… cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cândido,_ou_O_Otimismo) com o que realmente se fez, e é tão bem exposto sinteticamente por Paulo Pereira no capítulo que a sua “Arquitetura Portuguesa” (Temas e Debates, 2022) consagra ao assunto…mas isso ficará para novas visitas…Promessa de escriba, obediente ao seu desejo de compreender.
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