Ilustração: Sofia Tomás
Viver numa grande cidade é também estar atento ao outro. Aqui e ali, “roubar” as conversas da mesa ao lado. Sofia Tomás, jurista e apaixonada pela escrita, volta a escrever para o Artéria e a demonstrar o seu excelente poder de observação.
Quando o R. e eu éramos um casal e, não apenas amigos, íamos com frequência aos domingos almoçar a um nepalês situado na Artilharia Um.
Nesse dia atribuíram-nos uma mesa de dois lugares muito próxima de outra, igualmente de dois lugares, onde estava sentada uma senhora quinquagenária, de ar moderno e com óculos de massa bordeaux, e um rapaz na casa dos 20/30 anos, vestido de forma despreocupada (a primeira roupa semi-limpa que apanhou à mão?) e de cabelo preso num pequeno rabicho.
Enquanto eu e o R. olhávamos para a ementa, ia ouvindo a conversa que decorria nas minhas costas, o que era inevitável dada a proximidade das mesas.
O rapaz, que parecia ter levado uma lavagem ao cérebro por parte de alguma seita new age, ia dizendo coisas que passavam do yoga ao budismo, do hinduísmo ao pensamento simbólico, da mitologia egípcia a Jung, do vegetarianismo ao ideal de viver da terra, intercalando expressões como “tipo”, “género”, “cenas” e “m….s” com frases tiradas de um livro de autoajuda de algum duvidoso guru oriental: “o homem está entre a besta e o divino”, “o homem aspira ao infinito”, “o homem tem de transcender as suas pulsões e praticar o desapego”, “o homem é o único animal adulto que bebe leite”, “a morte é apenas a transição para um patamar mais elevado de consciência “, etc.
Enquanto escolhíamos naan de alho, chicken tikka masala, prawn karahi e lassi de manga, nas minhas costas a senhora mostrava-se apreensiva com a ideia do miúdo deixar Lisboa para ir cultivar um terreno para os lados de Peniche e, no embalo de um novo começo de vida, abandonar a namorada, com a desculpa dela ser pouco espiritual. A mãe (a minha atenta auscultação, para não dizer cusquice, permitiu-me rapidamente descobrir a relação familiar) dizia-lhe que ele tinha de ser autosuficiente e, quanto à namorada, não havia nenhum mal em a rapariga ser bonita.
O rapaz ia debitando a sua cassete de que o mundo era demasiado materialista, que não se dava valor aos alimentos, porque bastava ir a um supermercado comprá-los, que nada batia o prazer de comer os frutos diretamente da árvore, que adorava cavar porque isso lhe libertava a mente e que não queria ser como um dos seus amigos que trabalhava 10 horas por dia num emprego estúpido para ganhar apenas 800 euros por mês. Já relativamente à namorada ele afirmava precisar de alguém mais forte, que o motivasse a concretizar os seus ideais. Também me pareceu que o facto de a namorada ser do Norte da Europa e de o inglês ser a língua com que comunicavam podia ter algo a ver com o anunciado fim da relação. Afinal o rapaz gostava de dissertar e ter ouvintes e não deve ser fácil explicar filosofia transcendental numa língua que não é a sua.
A comida tinha chegado e provei o que o R. tinha escolhido (coitado do R., nesse almoço foi ostensivamente preterido face à minha tentativa de não perder o fio à meada da “telenovela” da outra mesa), um prato com o nome de prawn karahi, achando-o muito vivo pelo sabor dos pimentos.
Enquanto isso, nas minhas costas a mãe falava em Espinoza e Platão e o rapaz contrapunha com o corpo só precisar de alimento de 12 em 12 horas e que o seu objetivo era chegar ao intervalo de 18 horas entre refeições, invocando Jesus, Maomé e arquétipos. Nessa altura ainda não se falava muito em jejum intermitente e a minha, então ativa, helicobacter pylori forçava-me a fazer refeições frequentes, pelo que aquilo pareceu-me uma loucura, quase tão grande como a V-Steam (“vaporizar” as partes íntimas femininas) defendida pela Gwyneth Paltrow.
De repente, a mãe passou para assuntos mais terrenos (desistira de tentar chamar o miúdo à razão?), falou com orgulho que a filha ia tirar um Mestrado na Católica e perguntou como estava o ex-marido e a namorada. Pois, pois, fala-me de Espinoza que o que tu queres saber sei eu.
Bebi o licor de manga e comi o sortido de especiarias com bolinhas de açúcar de várias cores enquanto esperávamos a fatura. O rapaz respondeu com algum desconforto à pergunta da mãe e falou cautelosamente sobre a namorada do pai, que ela era descontraída, que eles estavam numa fase em que não fazia sentido viverem juntos, etc. A mãe disse que o ex-marido seria sempre um marco na sua vida, por tudo o que tinham passado e por ser o pai dos seus filhos. Notei-lhe alguma nostalgia na voz, mas se calhar era o efeito das sementes de funcho e das bolinhas multicoloridas que eu comia a meias com o R.
Cá para mim, mal o rapaz deixe a casa do pai (duvido que tenha forma de pagar a renda, a menos que seja a namorada escandinava a pagá-la e não está a viver com a mãe se está a almoçar com ela a um domingo e a contar-lhe novidades) a porreira quase-madrasta não demorará muito a instalar-se. Qual modernice de cada um viver na sua casa, qual quê? Ela não deve é estar para levar com o rapaz a viver às custas do pai mais as suas filosofias da treta.
Chegou a fatura e levantámo-nos para sair. Olhei para os meus vizinhos que estavam nas sobremesas. Pensei que o rapaz precisava amadurecer um pouco para ser apanhado diretamente da árvore e que a mãe além de provavelmente ir pagar o almoço dos dois ainda teria de dar guarida ao aprendiz de místico quando a experiência agrícola falhasse. Isso a menos que ele decidisse ir até à Índia ou ao Nepal em busca de sabedoria ariana e de iluminação. Se calhar a escolha do restaurante era qualquer coisa simbólica e jungiana e Peniche talvez fosse apenas um desvio no percurso para o Oriente.
Saímos do restaurante e fomos ver os grafitti perto das Amoreiras, para digerir a refeição e tirar fotografias para pôr no Facebook (nada acontece de interessante na vida até se ter a certificação virtual de um “gosto”) deixando o rapaz a debitar a sua doutrina e a mãe a comer um pudim de aspeto estranho e a fazer contas à vida, preocupada de quanto a utopia rural do seu “menino” lhe ia custar e se teria de vender a serigrafia da Vieira da Silva.
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