Crónica

Vítor Oliveira Jorge

A cada um a sua Lisboa, celebra o leitor Vítor Oliveira Jorge, numa inspirada reflexão sobre a forma singular como todas as pessoas apreendem a vida nesta urbe. “Porque nenhum de nós, urbanitas, alguma vez consegue abarcar o corpo infinito de uma cidade e, portanto, constrói, a partir dos seus percursos, e ao longo de uma vida, a sua própria cidade imaginária”, escreve.

Considero esta iniciativa, “Artéria”, como particularmente feliz, a começar pela sua designação, porque, como todos sabemos, artéria é não só um vaso sanguíneo pelo qual flui algo de essencial à vida, ao nosso corpo e sua respiração, como também um elemento fundamental do urbanismo, uma via de comunicação na cidade, e portanto também aludindo à própria cidade como um corpo vivo…e em tudo isto, evidentemente, está presente, central, essa ideia de comunicação, metáfora da própria vida.

Comunicação neste caso entre os leitores de um jornal e este mesmo, aberto à colaboração da comunidade, e assim estabelecendo uma via de contacto mais direto, de respiração, de vida renovada, entre uma instituição jornalística e o seu público, tendo como pano de fundo a cidade de Lisboa. Excelente!

Excelente porque estabelece uma multiplicidade de cidades a partir deste nome, Lisboa, como seria a partir de outra urbe qualquer. Porque nenhum de nós, urbanitas, alguma vez consegue abarcar o corpo infinito de uma cidade e, portanto, constrói, a partir dos seus percursos, e ao longo de uma vida, a sua própria cidade imaginária. É a evidente multiplicação das artérias, das vias de respiração, em cada um de nós, na cidade em si, a qual se metamorfoseia por si mesma, mas também através do imaginário com que cada um(a) a constrói e reconstrói para si, a partir da sua experiência.

Se formos perguntar a dois habitantes, ou utentes, ou simplesmente visitantes, de Lisboa, quais os seus percursos, as artérias em que respiraram, os momentos em que sustiveram a respiração perante uma experiência marcante, um sítio de paragem, um local em que encheram os pulmões e os olhos se abriram ao espetáculo urbano, um sítio ou percurso ligado a uma experiência afetiva, será sempre diferente o que cada pessoa tem a dizer, não só a partir da sua própria vivência, mas também ao longo da sua história da descoberta citadina.

Porque a cidade, ambiente artificial por excelência, criado pelo ser humano em contraposição à sua outra face, o mundo rural, é um pouco como a própria natureza, surpreende-nos sempre com qualquer coisa de inesperado. Quanto mais não seja porque a própria cidade é penetrada, ou mantém, muita “ruralidade”, muito “campo”, muito “verde” de que em princípio pareceria querer descartar-se… mas não, é o contrário, logo existem múltiplas hortas, escondidas ou expostas, jardins, avenidas arborizadas, espaços onde o espírito – e o corpo, a apresentação, a vaidade até de alguns habitantes, claro – se pode expandir e mesmo pavonear, sabendo olhar mas também sabendo ser olhado, porque a cidade é mesmo isso, um teatro, uma encenação, um mundo de infindas performances.

Sem os “pulmões” que são esses espaços verdes, uma cidade não respirava, fenecia. Basta lembrar o Parque Florestal de Monsanto, com o seu jardim dos Montes Claros, mas…muito mais que isso. Num âmbito geográfico maior, as próprias serras que rodeiam a cidade de Lisboa, Sintra a noroeste, com a sua vegetação predominantemente atlântica, frondosa e alta, e Arrábida, com o seu “maquis” de tipo mediterrânico, são, não só tradicionalmente espaços de fruição e veraneio (e habitação de muitas pessoas, evidentemente), mas também pulmões da cidade-capital.

Quando o Barreiro era uma zona fabril muito poluída, na margem sul do Tejo, e quando, do lado de cá, existia todo um complexo industrial na área onde em boa hora foi depois instalada a Expo 98 (hoje, Parque das Nações), o meu mestre Orlando Ribeiro costumava dizer que o que valia a Lisboa, para contrariar a poluição, eram essas duas montanhas tão contrastantes que de algum modo a abraçavam, como espaços onde se podia respirar, e de onde vinha, um ar mais puro.

Se o urbanismo moderno procurou romper com a teia de pequenas vielas e praças que constituía a cidade medieval, tantas vezes amuralhada e defensiva, ele visou introduzir na cidade grandes “artérias”, não só avenidas para a circulação dos transportes e monumentalização de edifícios carismáticos, mas também para a abertura de espaços verdes, de que pode ser exemplo a Alameda D. Afonso Henriques, o Parque Eduardo VII, ou o alongado jardim do Campo Grande.

Espaços de afirmação do poder, um elemento que anda sempre de braço dado com a arquitetura e o urbanismo, e de inculcação de certos comportamentos, espaços simbólicos sempre, claro, mas também áreas onde o olhar se pode alargar e o passo sempre estreito dos “passeios” laterais das ruas pode dar lugar ao movimento de um corpo mais descontraído, se não mesmo repousando nos bancos públicos ou esticando-se na relva.

Nada disso acontece por acaso, é óbvio, e tudo isso fomenta em cada pessoa, habitante, utente, ou visitante da cidade, memórias e comportamentos que são sempre diferentes de sujeito para sujeito. A cidade é um lugar de infindas formas de subjetivação, e, como tal, se ela é um corpo físico inalcançável no seu todo (a não ser olhando um mapa, uma maqueta, uma foto aérea, mas isso já não é nunca a mesma cidade), ela de facto só existe como uma ideia, uma construção do espírito, em cada um(a) sempre em relação com esse próprio micro espaço que é o seu corpo pessoal em movimento.

Por isso, mais do que falar deste ou daquele lugar ou aspeto específico de Lisboa, o que é importante também, creio que o mais interessante, ainda, será abordar aqui a cidade como um corpo vivo, pelo qual cada um(a) se enamora (ou não…) à sua maneira. Em que cada um(a), através dos seus percursos, rotineiros ou não, estabelece pouco a pouco, desde a infância, a sua cidade imaginária, a Lisboa dos seus afetos. Dos seus sonhos, dos seus dias cinzentos ou ensoleirados, dos seus trajetos desinteressantes, que fazem parte das rotinas, e dos seus momentos de júbilo, de alegria, de convívio, de enamoramento. Das esplanadas onde, com amigos, o riso pode brotar de uma forma aberta, extrovertida, aos recantos mais recatados, porventura sombrios ou privados, onde foi dado o primeiro, secreto, beijo de amor, a cidade multiplica-se em cada um(a) de múltiplas maneiras.

Assim, cada rua, cada bairro, cada monumento, cada sítio da cidade desperta em mim inevitáveis recordações que aqui só podem ser muito sucintamente evocadas: é a minha Lisboa de que falo, calcorreada a pé ou atravessada com pressa, de carro, ao longo de muitas décadas. E toda uma história que me ultrapassa, mas marca, vem ao de cima. Olha, aqui foi onde mataram o rei; olha, era por aqui que vinham as procissões da Santa Inquisição com os destinados à fogueira; olha, foi daqui que a corte se apressou a embarcar para o Brasil, para não ser capturada pelos franceses; etc., etc. A cidade é um complexo infindo de signos sobrepostos. Esta ponte, vês, já se chamou Ponte Salazar, e agora é a Ponte 25 de abril; e, a propósito, sabes o que representou o 25 de abril de 1974 para o nosso país? Não sabes?!

Então eu explico-te, porque há lugares de Lisboa onde se passaram acontecimentos decisivos para que hoje possamos estar aqui a falar sem medo, em artérias abertas ao sangue vivo da vida, em imaginação livre para associarmos o que quisermos e podermos partilhar, cada um(a), com os(as) outros(as) todos(as) a nossa particular Lisboa. A que se vê bem, altaneira, no seu castelo medieval, de bandeira erguida, ou no Rossio, antigo circo romano, encimado pelo teatro nacional; e a que se esconde sob os nossos pés, quer a do metropolitano, a dos muitos canais por onde correm as águas limpas ou sujas, as linhas elétricas ou os cabos de comunicações, quer as das galerias que ainda existem sob o solo de Lisboa, a Olissipo romana, e se podem visitar, como se pode (e deve…) visitar o seu – antigamente grandioso – teatro romano.

É que, sabes, se todo o território tem a sua história, se todas as paisagens mudaram ao longo dos tempos, a cidade, e logo a cidade-capital, a do grande terramoto e a do iluminado Pombal, essa é o próprio coração da mudança. Onde desde o começo do presente texto até este seu fim já muita coisa aconteceu. De certeza absoluta.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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