Caminhar, observar as pessoas e a cidade. Procurar vida e beleza nos sítios mais improváveis. Ana Ribeiro Nel, enfermeira de profissão, já nos habituou a tudo isto nas suas crónicas para Artéria. Eis mais uma prova.
Li há algum tempo um livro do Haruki Murakami1 que fala sobre o facto de como a corrida influencia a sua escrita, da sua necessidade de intercalar as duas atividades, como se elas se alimentassem mutuamente. Pois que eu não sou nenhuma atleta, mas percebo agora o seu ponto de vista.
Reservei uma tarde inteira para andar, comecei pela Almirante Reis onde primeiro me abasteço. Sento-me numa mesa de um café e pergunto pelos pratos do dia. A senhora que me atende tem os olhos pintados de azul e veste um avental, responde-me desviando o olhar para cima e não a deixo terminar a lista, interrompi-a no
– Bacalhau, meia dose.
Atrás de mim alguém fala em castelhano sobre a expansão marítima, enquanto uma senhora que chega senta-se à janela, pede uma taça de vinho branco e arruma o conteúdo da sua bolsa ao despejá-la sobre a mesa – uma agenda, uma caneta, um telemóvel com teclas grandes que limpa com um lenço de papel. O casal da expansão marítima paga e agradece.
– La comida es muy buena en Portugal, como en Mexico.
Vejo que alguma da clientela deste estabelecimento é frequente. Entram mais duas freguesas e a senhora do avental ajuda a que usa canadianas a sentar-se.
– O que vai ser hoje?
Na rua há muito movimento, sirenes de ambulância, de tempos a tempos o chão do café vibra, com certeza será o metro a passar. A cliente da taça de vinho está agora a ver o rodopio da rua, como se estivesse à janela do comboio a ver que estação se aproxima.
Senhores passageiros, vai dar entrada na linha número um o comboio com destino a…
Deixo a pausa de almoço e passo pela Praça do Chile para começar a subir a Morais Soares. Algumas montras estão decoradas com ovos da Páscoa de esferovite. Há uma loja de roupa em segunda mão com muita procura, cabides pouco organizados com vestes de cores e tamanhos diferentes. Mercearias têm fruta exposta, reparo que os preços são mais convidativos que os do supermercado, vende-se aqui de tudo, desde garrafões de azeite a cabos de vassoura. Todas as barbearias da rua anunciam o corte de cabelo a 4,5 euros, bazares económicos com tudo a 1 euro, um cantoneiro varre a rua enquanto conversa com a empregada de uma loja de roupa interior que está na entrada da mesma, falam sobre como gostam os dois de praia.
– Gosto de ir para o Meco, acordar bem cedo.
A subir a rua há uma senhora que abranda o passo para descansar, puxa um carrinho de compras. Há pessoas de chinelos, pessoas com malas de viagens, uma menina com cabelo entrançado que corre à frente da sua mãe, um homem de barba branca e demasiado encasacado sentado numa porta de prédio com um saco cheio de revistas.
No fim da Morais Soares passo pela Praça Paiva Couceiro, onde alguns idosos jogam cartas em pequenos grupos, ao mesmo tempo que há crianças a jogar à bola. Contorno o pequeno jardim e cruzo-me com uma senhora que é empurrada numa cadeira de rodas e as suas bochechas tremem pelo piso irregular da calçada.
Amorna o frenesi da Morais Soares e aparecem agora as funerárias e floristas conforme se aproxima o cemitério do Alto de São João, flutua um adocicado cheiro a flores. Está calor e algumas pessoas vestidas maioritariamente de cores escuras esperam atravessar a passadeira. O cemitério tem vista para o rio, é uma pequena cidade cinzenta de ruas numeradas e jazigos elaborados, enriquecidos com esculturas, leio algumas das dedicatórias. Há pessoas sentadas em bancos de jardim e pergunto-me se estarão aqui à espera de alguém ou em visita a um ente querido, ou será que simplesmente estarão aqui pelo silêncio?
Entretanto apercebo-me que está a haver um ritual fúnebre, os seus participantes estão todos vestidos de branco. Saio, sinto-me a mais. À saída do cemitério encontro o jazigo de Almada Negreiros, que diz:
“A alegria é a coisa mais séria da vida!”
Regresso à movimentada Morais Soares, vou eu própria entrar na loja da roupa em segunda mão, vi lá uma mala de verga que me lembra os lanches nas viagens de comboio pela linha da Beira Baixa.
Senhores passageiros, o comboio que vai dar entrada na linha número dois tem paragem em todas as estações e apeadeiros.
1 Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo; Casa das Letras (2009)
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