Ana Maria Morais, lisboeta “desde há sessenta e alguns anos”, segundo palavras da própria, escreve para o Artéria um bonito texto sobre as suas memórias de infância, passadas na Mouraria dos anos 50 — bairro onde vivia a família do pai. Um tempo distante, mas muito presente na formação da sua personalidade.
A avó Aurora morava no Largo da Guia, na Mouraria. Todos os domingos íamos, eu, os meus pais e a minha irmã almoçar a casa dela. Estamos nos anos 50! Era uma casa pobre, sem casa de banho. Tinha, aliás, uma pia na escada que servia todos os andares. Eu nunca fazia xixi ao domingo!
A minha tia Micaela fazia borrego ou cabrito no forno. Mas, não era um forno qualquer, era o forno da padaria ao fundo do largo. E então, quando chegávamos íamos ajudar a transportar o tabuleiro desde a padaria até casa. Ainda hoje me lembro do sabor e do cheiro do borrego no forno! As minhas tias, irmãs do meu pai, eram todas pobres e muito divertidas. Cada assunto era observado e comentado como uma paródia. Eram tardes passadas a rir. Foi aí que aprendi a contar com humor, acontecimentos reais e por vezes muito duros.
Cada domingo era uma novidade. Havia sempre uma nova história sobre alguém do bairro, ou o orelhudo, assim chamado porque não tinha orelhas, tinha morrido, o Félix que tinha um novo namorado, os preparativos para o enterro do Carnaval que não tinham corrido bem, a Etelvina que tinha bebido vinagre para emagrecer e foi parar ao hospital, a Maria Aurora que tinha casado com um canalizador 20 anos mais velho que ela.
Tudo contado com pormenores que me seduziam por serem tão diferentes da minha vida quotidiana. Sim, eu andava num grande colégio de Alvalade, vivia numa casa com jardim e tinha roupa feita especialmente para mim. Foi nesta dualidade de vivências que me formei, que formei a minha maneira de ver o mundo. Muito cedo, por isso, tive consciência de classe.
No centro do Largo da Guia havia um chafariz onde se ia buscar água em bilhas. Em casa não havia água canalizada. A água existia numa enorme bilha de barro com uma pequena torneira, na cozinha ao lado de uma chaminé escura que me fazia medo. Também não havia luz eléctrica. Ao fim da tarde o meu avô, republicano ferranho, acendia o candeeiro a petróleo e jogávamos às cartas quase às escuras.
Do lado esquerdo da casa, numa pequena rampa havia um barracão. Sentados no chão ao longo da rampa, viam-se, todos os domingos, homens e mulheres de tijela na mão a comerem sopa. Era a “sopa dos pobres” na Mouraria. Perguntei quem eram aquelas pessoas, achava estranho a indiferença com que a minha prima, por exemplo, olhava para elas. Parecia-lhe normal a sua existência miserável.
Recordo ainda hoje as lágrimas que me rebentavam nos olhos quando me apercebi do significado daquela imagem. Mas a Mouraria tinha uma alegria cantada nas ruas pelas suas figuras típicas. Lembro os bailes dos Santos Populares vistos da janela namoradeira da casa da minha avó. Mulheres dançavam com mulheres, cantavam fados, riam muito, talvez sem saber porquê.
De vez em quando havia uma zaragata. Normalmente entre dois homens que gritavam palavras que eu não conhecia e tentavam bater um no outro. Havia sempre alguém que os separava, agarrando um deles. As mulheres gritavam, as crianças choravam, o baile parava. Mas em breve tudo voltava ao normal e as gargalhadas apareciam de novo, a música voltava a tocar e eu com 8 anos pensava com estranheza na intensidade dos comportamentos tão diferentes do mundo em que eu vivia.
Ao lado da rampa onde havia a sopa dos pobres estava a casa dos gelados do Bazaruca. O Bazaruca vendia gelados que eram só água com açúcar. Tinha uma carrinha branca com pedais e dois buracos em cima de onde saiam os tão famigerados Rajá fresquinhos. Nunca provei, o meu pai, com muita pena minha, não me deixava comer aquilo.
Da Mouraria tenho as memórias mais marcantes da minha vida. Tudo era exuberante.
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